Soraya Misleh
O anúncio de que a gestão municipal pode vir a extinguir a São Paulo Transporte (SPTrans) acendeu o alerta quanto ao risco de colapso do sistema de transporte numa cidade que já enfrenta enorme desafios relativos à mobilidade urbana. Técnicos, trabalhadores e população devem ser ouvidos antes da tomada de qualquer decisão quanto ao futuro da empresa estratégica, defendem sindicalistas e especialistas ouvidos pela reportagem do JE.
Confirmada pelo prefeito da Capital, Ricardo Nunes, em 13 de novembro último, a pretensão é transferir suas funções de fiscalização dos contratos de concessão para a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo (SPRegula). Entre outros, o órgão é responsável pela fiscalização dos 22 cemitérios concedidos à iniciativa privada, o que tem sido objeto de críticas e denúncias.
A SPTrans completará 30 anos em março de 2025. Criada após o encerramento das atividades da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) para cuidar da gestão e planejamento do transporte público sobre pneus na Capital, é responsável por garantir serviço de qualidade a cerca de 7 milhões de passageiros/dia.
Com um orçamento total de R$ 11,5 bilhões (dados de 2023), conta 1.700 funcionários. Seu escopo abrange desde fiscalização, monitoramento e controle de operação da frota de aproximadamente 13 mil ônibus e 1.319 linhas até desenvolvimento tecnológico e modernização da estrutura de prestação de serviço.
Além disso, como ressalta Francisco Ernesto Graminholli, funcionário da SPTrans e diretor do Sindicato dos Empregados nos Escritórios de São Paulo, a companhia também inspeciona cerca de 37 mil táxis e 4 mil vans escolares que integram o TEG (programa de transporte escolar gratuito).
Engenharia de ponta
Como detalha o diretor do SEESP Edilson Reis, a empresa conta com uma área de engenharia responsável pelo desenvolvimento de projetos e inovações premiados, que são referência e reconhecidos internacionalmente. Entre eles, menciona o Atende+, serviço gratuito porta a porta, destinado a pessoas com autismo, surdocegueira e deficiência física severa.
De acordo com Graminholli, são cerca de 20 mil pessoas beneficiadas. “É um leque de serviços, muitos deles de cunho social. Outra empresa que for contratada não vai ter esse foco. Também não terá a mesma qualidade técnica, com funcionários experientes”, alerta Geraldo Meireles, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Fiscalização de Transporte (Sindficot).
Reis cita ainda o Bilhete Único, a revitalização do sistema de trólebus e o Aquático SP, transporte hidroviário na zona sul da Capital. A equipe, de apenas 20 profissionais da categoria, assevera, é responsável por toda a modernização e especificação técnica dos veículos “para conferir segurança e qualidade no sistema de transporte por ônibus”.
Agraciado em 2024 com o prêmio Personalidade da Tecnologia em Transporte e Mobilidade Urbana, outorgado pelo SEESP, o presidente da empresa, Levi dos Santos Oliveira, ratificou na ocasião: “Fomos responsáveis por iniciar o processo de eletrificação da frota de ônibus na cidade, começamos o ‘Domingão Tarifa Zero’ e o projeto inovador ‘Aquático SP’, que em quase sete meses de implantação já transportou 290 mil passageiros, com média de 1.800 por dia.”
O objetivo, explicitou no ensejo, não é simplesmente transportar pessoas, mas assegurar dignidade. Como observa Gley Rosa, diretor do SEESP, o AquáticoSP está em linha com a demanda por sustentabilidade, mediante despoluição dos rios navegáveis. Ainda, segundo pontua, a SPTrans tem atuado na eletrificação da frota, ao encontro da necessidade de mudança da matriz energética de transporte.
Na integração do sistema, além do Bilhete Único, ele cita ainda o Plano de Apoio entre Empresas de Transporte frente às Situações de Emergência (Paese), também desenvolvido pela engenharia da empresa. Este é acionado caso haja algum problema em algum modal de transporte, por exemplo, uma interrupção no Metrô. No caso, a SPTrans direciona as linhas para suprir a demanda.
E chama atenção para fato de a empresa ser responsável também pela inspeção de táxis e vans quanto a itens de segurança. “Isso é muito importante para a população e causa dúvidas se a SPRegula, que enfrenta problemas com a fiscalização de cemitérios, vai conseguir absorver todo esse know how”, alerta.
Como parte desse quadro de engenheiros, Edilson Reis conta também sobre a participação em projetos, por exemplo, voltados à segurança pública municipal. Um deles destinava-se à transferência de prisioneiros quando o Complexo Penitenciário do Carandiru foi desativado. A SPTrans, além de planejar a operação em 20 ônibus e duas aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB), cuidou da operação técnica para o transporte dos detentos.
A população vê com bons olhos os serviços prestados pela SPTrans. Pesquisa por posto de atendimento, divulgada no Relatório Integrado da Administração, relativo ao ano de 2023, indica satisfação geral de 90,9%. De um a cinco, o público pesquisado atribuiu a nota 3,74 à companhia, ante 3,46 em 2022.
Excelência
Gley Rosa destaca: “Hoje a SPTrans faz tudo isso porque veio da CMTC toda expertise da equipe que fazia transporte, fiscalização e projetos de ônibus como aquele com dois andares, igual ao que havia na Inglaterra, apelidado de ‘fofão’.” Reis vaticina: “São técnicos altamente capacitados.”
Francisco Christovam, diretor executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), indaga: “Como gerenciar esse sistema de transporte, sem pessoas que tenham alto conhecimento técnico sobre todos os elementos fundamentais que o integram? Como criar/planejar linhas de ônibus para atender a população da cidade de São Paulo de forma efetiva e eficaz, sem conhecimento técnico sobre a questão? Como saber qual modelo de coletivo mostra-se apropriado para operar em determinada região para melhor atender a população usuária do sistema?”
Para ele, essas questões não podem ser desprezadas, pois, “se não realizadas por técnicos extremamente capacitados, o sistema de transporte coletivo urbano de São Paulo pode colapsar”. Para evitar isso, sugere debate à exaustão que contemple essas preocupações, “antes de se tomar qualquer decisão sobre o futuro da SPTrans”.
É o que defende Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, que considera inadmissível o simples anúncio de decisão tão importante para a cidade, sem qualquer discussão: “Além do risco de esvaziamento na engenharia da empresa, o plano de extinção conforme anunciado traz a ameaça de problemas na gestão pública como os que vêm sendo denunciados no serviço funerário a partir da privatização. É preciso ouvir os técnicos, os trabalhadores em geral e a população.” O sindicato vai solicitar audiência com o Prefeito neste mês de janeiro para apresentar informações e argumentos, de modo a demovê-lo dessa ideia.
O tema foi objeto de reunião no dia 4 de dezembro último, na sede do SEESP, na Capital, com a presença dos representantes dos trabalhadores da empresa e parlamentares. No ensejo, o deputado estadual Simão Pedro (PT) ratificou: “Não tem sentido a SPTrans ser absorvida pela SP Regula. Há uma série de atribuições que não têm como ser transferidas. De toda forma, ainda não existe nada concreto, esse processo terá que passar pela Câmara Municipal. Se preciso for, vamos marcar audiência com o Prefeito.”
Em vez de sua extinção, Gley Rosa propugna que deveria se discutir mais investimento público em melhorias e renovação da equipe, lembrando que foram contratados recentemente somente 200 novos profissionais. “É ainda pouco, considerando-se o número de pessoas que saíram. Precisa de mais gente”, frisa. Meireles corrobora, lembrando o sucateamento e déficit de mão de obra ao longo dos anos. “Mesmo assim a população vê com bons olhos e a empresa segue sendo reconhecida internacionalmente”, orgulha-se.