Opinião

Bem-vindos à Idade das Trevas

Há profecias que se realizam rápido demais. Em 1o de agosto, a ONG estadunidense Grupo de Pesquisa sobre Interesse Público (Pirg, na sigla em inglês), lançou um alerta contra as leis de energia que tramitam no Congresso do país. O documento sustenta que a “nova” legislação insiste em eliminar o controle público sobre as empresas e continua iludindo a sociedade com a falsa idéia da “auto-regulamentação” dos mercados. Em certa altura, o texto é explícito: essa crença tornou os consumidores “mais vulneráveis que nunca a fraudes e a apagões”. Não foi preciso esperar duas semanas.

Em 14 de agosto, quando começou o blecaute, o jornalista e ex-advogado em favor das causas do consumidor, Greg Palast,  escreveu , “à luz de velas” e em forma de desabafo, um pequeno ensaio sobre as mudanças radicais sofridas pelo setor de energia nas duas últimas décadas. Seu estudo relaciona a desregulamentação com o domínio assombroso que as grandes corporações passaram a exercer sobre a política dos Estados Unidos nesse período.


Uma brecha contra Roosevelt
A história narrada por Palast começa em 1933, sob a presidência de Franklin Roosevelt. Decidido a enfrentar os grandes trustes que controlavam a geração e distribuição de energia, animado pelas idéias de John Keynes, Roosevelt criou  a Comissão Federal de Energia e a Lei de Empresas de Serviço Público. Por meio delas, impôs regras que limitavam as tarifas elétricas, estabeleciam controle estatal sobre o lucro das empresas, baniam o então existente “mercado de energia” e puniam a eventual interrupção do fornecimento com penas que podiam chegar à prisão dos empresários. As normas iam a detalhes: as empresas de energia foram proibidas de fazer qualquer tipo de contribuição financeira a políticos. Temia-se que elas usassem sua influência para obter o relaxamento da regulamentação.

Durante décadas, as leis de Roosevelt asseguraram energia abundante e barata. O sistema tinha tanto apoio popular que mesmo nos anos 90, quando a crença nas “virtudes” do mercado começou a crescer, as corporações de energia não ousaram pedir seu fim de imediato. Serviram-se de um artifício. Uma delas (a Houston Natural Gas, do conglomerado Enron) obteve na Inglaterra da primeira-ministra Margareth Thatcher concessão para instalar a primeira usina de energia “livre” de regulamentação estatal no hemisfério.

Lord Wakeman, o ministro inglês que concedeu o privilégio, seria agraciado com “um monte de notas de dólar por serviços de ‘consultoria’ e um posto na diretoria da Enron”. O ato inauguraria, conta Palast, uma história de promiscuidade entre o oligopólio privado do setor e os políticos do Ocidente.

Nos EUA, poucos souberam aproveitar tão bem as novas “oportunidades” como George Bush pai. Em 1992, já derrotado na disputa por um segundo mandato e poucos dias antes de deixar a Casa Branca, assinou as leis que começam a desfazer os regulamentos de Roosevelt. Oito anos mais tarde, o prêmio: as corporações de energia doaram US$ 16 milhões à campanha de seu filho rumo à presidência – sete vezes mais que o oferecido ao Partido Democrata.

A abertura oferecida por Bush pai ao cartel foi completada, pouco a pouco, por medidas semelhantes adotadas nos estados. Alguns dos casos mais típicos são a Califórnia – vítima de uma série de apagões entre 1999 e 2001 –, o Texas e... Nova York. Há poucos anos, o governador republicano George Pataki livrou a NiMo (Niagara Mohawk), principal fornecedora de energia, de regras que monitoravam os investimentos na rede de distribuição. Pouco mais tarde, o mesmo Pataki autorizou sua venda para uma companhia britânica, cuja primeira providência foi uma onda de demissões.


Quem apagou Nova York?
“Livres” para ganhar dinheiro sem se preocupar com controles sociais ou estatais, as empresas energéticas abandonaram investimentos que atendem ao interesse público, mas não são lucrativos. Um outro especialista, o engenheiro Abbas Akhill, da instituição estatal Sandia National Laboratories, lembrou que a reserva nas usinas despencou de 15%, à época da produção regulamentada, para apenas 3% ou 4% agora. Com sobras tão escassas, qualquer das hipóteses apontadas para o apagão – sobrecarga numa central nuclear da Pensilvânia, como sugere o gabinete do primeiro-ministro do Canadá, ou queda nas linhas de transmissão de Ohio, como prefere o Electric Reliability Council, monitor do sistema nos EUA – seria suficiente para interromper o fornecimento de energia. Operando sempre no limite, as usinas caíram uma a uma, como peças de dominó.

Num país onde os negócios das grandes corporações estão cada vez mais entrelaçados com os da mídia, esse debate não chegou à maior parte da população. No dia 16, os republicanos sentiram-se à vontade para cobrar do Parlamento a votação imediata de um pacote de leis que supostamente eliminariam as incertezas dos investidores e estimulariam a modernização do sistema. “Nós não podemos esperar mais. Nossa economia e  modo de vida estão em risco”, discursou o deputado Billy Tauzin, presidente da Comissão de Energia e Comércio da Câmara. O problema, mostram os estudos do Pirg, é que tais medidas aprofundarão as distorções provocadas pela desregulamentação. Melhor garantir o estoque de velas.


Antonio Martins
Editor do portal Porto Alegre 2003 
(www.portoalegre2003.org)

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