Setor elétrico

Modelo traz avanços, mas mantém distorções

Rita Casaro

Na forma das MPs (Medidas Provisórias) 144 e 145, o Governo editou, em 11 de dezembro, as novas regras para o setor elétrico brasileiro. A primeira define como será feita a comercialização de energia no País, que passa a ter dois ambientes. Um será regulado, voltado ao fornecimento dos consumidores cativos – as famílias e a grande maioria das empresas. Para ele, as compras de energia pelas distribuidoras se farão em pool, por licitação, pelo critério de menor tarifa. No outro, acontecerá a negociação entre comercializadores e consumidores livres. A segunda MP cria a  EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que será responsável pelo planejamento da expansão e a definição da matriz energética.

Além dessa, surgem mais duas estruturas, a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), que substitui o MAE (Mercado Atacadista de Energia), e o CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico). O ONS (Operador Nacional do Sistema) continua sendo um órgão privado, mas sua direção será indicada pelo Governo. O  Ministério de Minas e Energia passará a comandar os processos de concessão, seja na área de geração, distribuição ou nas linhas de transmissão, hoje a cargo da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). As bases do arranjo, afirma a ministra Dilma Rousseff, são  modicidade tarifária, segurança do suprimento, estabilidade do marco regulatório e inserção social.

A receita, na avaliação de especialistas que vinham apontando as falhas do modelo implantado a partir de 1996, representa avanços fundamentais. “Não há dúvida de que é melhor que o existente”, afirmou o secretário geral do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético), Renato Queiroz. Para ele, uma grande virtude das regras recém-editadas é a volta do planejamento. “A preocupação é se isso, feito por uma empresa isolada, funcionará adequadamente, mas o essencial é que se recuperou esse conceito, que havia sido desprezado”, pondera. Outro ponto positivo, na sua opinião, é a extinção do MAE, que se tornou instrumento de especulação.

Queiroz defendeu ainda a forma escolhida para introduzir o novo modelo. “Tinha que ser com medidas provisórias mesmo, o Governo já demorou muito e não havia mais tempo.” Não tem a mesma opinião a oposição. O PSDB ingressou, no dia 15 de dezembro, com uma ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, alegando que matéria relativa ao setor não pode ser legislada por MP. A reação aconteceu a despeito do fato de Fernando Henrique Cardoso ter lançado mão do instrumento nada menos que 13 vezes, entre 1995 e 2002, para estabelecer normas pertinentes a essa área, conforme divulgado pelo Ministério de Minas e Energia.


Herança nefasta
O novo modelo, apesar dos aspectos positivos, mantém sérios defeitos introduzidos no Governo FHC. “Não está claro –  e é preciso analisar melhor esse ponto – se recupera o princípio de serviço público para a energia, que havia sido tratada como commodity”, adverte o diretor do Ilumina.  Essa interpretação, considerada por ele o erro básico do arranjo anterior, deu margem a uma série de desvios. Um exemplo disso é o contrato firmado entre a AES Eletropaulo e a AES Tietê para compra de energia a R$ 109,94 o MWh, enquanto a Cesp, geradora estatal, dispunha do produto por R$ 78,30. Essa situação, que se repetiu em várias partes do País, tornou-se objeto de ação do Ministério Público Federal. Esse tipo de transação, conhecida como self-dealing, fica proibida a partir de agora, mas, obedecendo à lógica de não-rompimento de contratos, os que existem  valerão até o final e, excetuando-se mudanças por decisão da Justiça, continuarão a pesar na tarifa.

Porém, o disparate não atinge apenas o bolso do brasileiro, prejudica principalmente as geradoras estatais, federais e estaduais. A possibilidade de as distribuidoras migrarem da aquisição de energia barata para a mais cara se deu por dois motivos. Um, que deixa de existir com o novo modelo, era a obrigatoriedade de contratar não a totalidade da sua demanda, mas apenas 95%, restando a margem de 5% para negociar livremente. Outro foi a determinação pela Lei 9.648/98 de que os chamados contratos iniciais, entre geradoras e distribuidoras, fossem desfeitos à razão de 25% ao ano, a partir de 1º de janeiro de 2003.  Isso propiciou que as geradoras privadas funcionassem como atravessadores e tivessem lucros exorbitantes em detrimento da saúde financeira das estatais, que eram obrigadas a negociar no MAE as sobras de energia que passaram a ter. Por exemplo, Furnas, a principal geradora hidrelétrica federal, teria que vender o insumo a R$ 24,00/MWh, valor do mercado de curto prazo na região Sudeste, ao invés dos R$ 76,03 previstos em seus contratos iniciais. A feliz compradora seria a geradora térmica Norte-Fluminense, que simplesmente repassaria a energia à Light, mas por R$ 133,00, seu preço de produção, no qual está incluído o custo do gás natural.

Esse passe de mágica do capitalismo à moda tucana desaparece com as novas normas para a comercialização, agora regulada. No entanto, segue a imposição de cancelamento dos contratos, que em 2004 passa a 50%. Isso tornará ainda mais frágil a posição das empresas públicas. “Nessa situação, não sabemos se terão capacidade financeira no futuro”, alerta Queiroz, do Ilumina. A preocupação não é infundada. Em resposta a indagações do Ministério Público Federal, os administradores das geradoras estatais revelaram que são enormes as perdas de receita sofridas com a descontratação. Furnas, a maior geradora brasileira, terá neste ano perda de R$ 1,15 bilhão – e o dano poderá ser de R$ 2,8 bi em 2004.

Justiça pode obrigar Eletropaulo a baixar tarifa

Uma ação civil pública impetrada pela procuradora Inês Virgínia Prado Soares, do Ministério Público Federal de São Paulo, em 5 de dezembro, pode reduzir as contas pagas pelos consumidores da AES Eletropaulo. Ela pede à Justiça Federal que determine à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) o recálculo da revisão tarifária da distribuidora, autorizada em julho último.

Isso deve ser feito, afirma Soares, levando em conta o preço de mercado da energia elétrica, hoje em R$ 66,00 o megawatt-hora,  e não os R$ 109,94 pagos à AES Tietê e repassados integralmente à tarifa como “custos não-gerenciáveis”. Na ocasião, a Eletropaulo pôde elevar o preço em 10,95%. Se o pleito for atendido, esse índice terá de baixar para 6,26%.

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