No começo do século 20, esse canto então remoto da Amazônia, perto da atual Porto Velho, era crucial para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
O pedaço de louça achado pelos arqueólogos, fragmento de um jarro que se quebrou em algum momento dos anos 1910, tem dois carimbos diferentes indicando sua procedência: o de uma firma brasileira, provavelmente a importadora, e o do fabricante escocês, de Edimburgo.
"Este lugar era extremamente cosmopolita. Havia caribenhos de Barbados, alemães, italianos, ingleses", conta o arqueólogo britânico Alastair Richard Threfall, enquanto tenta explicar a sucessão de camadas de detritos na antiga vila de Santo Antônio do Madeira (RO).
No começo do século 20, esse canto então remoto da Amazônia, perto da atual Porto Velho, era crucial para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Planejada para escoar a produção de borracha dos seringais brasileiros e bolivianos, a via férrea logo se tornou irrelevante com a queda dos preços do produto no mercado internacional. Agora, Threfall e seus colegas estão usando os dados arqueológicos para entender a ocupação-relâmpago que acompanhou a chamada "ferrovia do diabo".
As escavações, sob responsabilidade da empresa Scientia Consultoria Científica, fazem parte do pacote de compensações exigidas por lei para a construção de um grande empreendimento -no caso, a Usina Hidrelétrica Santo Antônio, no rio Madeira.
O trecho da vila escavado pelos cientistas não será impactado diretamente pela usina e pode, inclusive, virar uma espécie de museu a céu aberto quando a obra terminar. "É um sítio de alto potencial", diz o arqueólogo Renato Kipnis, sócio da Scientia e coordenador do trabalho.
Por enquanto, a equipe está centrando esforços num conjunto de construções na margem da antiga ferrovia. Vários dos prédios não chegaram a ser fotografados, embora constem em mapas da época. "A questão é que nem sempre o mapa reflete o cenário da época, ele pode ser apenas reflexo de um projeto para a área", diz Threfall.
Com base nos dados já obtidos, os pesquisadores já conseguem fazer uma primeira tentativa de reconstruir a sequência de ocupação e abandono no local.
"Sabemos que o muro desta estrutura, provavelmente residencial, recobriu toda esta área quando caiu, o que nos dá uma altura de uns 3,5 m para o prédio quando estava de pé. Depois, o concreto ficou misturado ao sedimento", diz o britânico, que é casado com uma mineira.
Uma área mais elevada ao lado abrigava o que parece ser um escritório ou loja. "A arquitetura é mais imponente, parece que eles estavam querendo causar boa impressão", afirma Threfall.
Construída a duras penas, com centenas de trabalhadores europeus vitimados pela malária -daí a fama macabra-, a ferrovia acabou sendo fechada nos anos 1960. Pistas vindas da área escavadas pela equipe indicam um período de florescimento ainda mais curto, de 1914 aos anos 1940, diz o arqueólogo.
Obras geram falta de arqueólogos no país
"Está faltando arqueólogo no mercado. Arqueólogo bom, então, nem se fala", brinca Renato Kipnis, da empresa Scientia, ao comentar a situação inusitada em que as atuais grandes obras de infraestrutura estão colocando o país.
Isso porque, para salvaguardar o possível patrimônio do passado brasileiro em áreas que serão terraplenadas, inundadas por barragens ou afetadas de outras maneiras, a legislação determina que operações de salvamento arqueológico sejam realizadas antes.
Como qualquer outra obra pública, esses ações de arqueologia "preventiva" ou "de contrato" são licitadas. Em Santo Antônio, a licitação foi vencida pela Scientia, que também foi escolhida para trabalhos em Aripuanã (MT) e num punhado de outros locais Amazônia afora.
A ideia é que todo o acervo obtido na operação, tanto arqueológico quanto paleontológico (envolvendo restos de animais extintos, como preguiças-gigantes e mastodontes, por exemplo), fique sob os cuidados da Universidade Federal de Rondônia.
A instituição já conta com um recém-criado curso de graduação em arqueologia. Alunos da universidade já utilizaram as escavações na vila de Santo Antônio como sítio-escola.
(Reinaldo José Lopes, Folha de S. Paulo)
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