Um lago de água tão pura que não precisa nem ser tratada para ser bebida vai servir de fonte para um projeto que pode confirmar as previsões de que este recurso natural será cobiçado como o petróleo. Cercado de florestas e alimentado pela neve e o derretimento de glaciares, o Blue Lake (Lago Azul) está localizado próximo à cidade de Sitka, no Alasca.
Dele, duas empresas pretendem retirar nos próximos meses cerca de 320 milhões de litros que serão transportados em um tipo de navio semelhante a um superpetroleiro até uma fábrica na Índia, onde a água será engarrafada e depois levada para países sedentos do Oriente Médio, justamente de onde vem a maior parte do petróleo consumido pelo mundo.
Uma das empresas, a True Alaska Bottling, comprou o direito de usar até aproximadamente 12 bilhões de litros de água anuais do lago. Já a segunda, a S2C Global, é responsável pela construção e operação do centro de processamento da Índia.
Caso seja bem-sucedida, a associação vai criar uma indústria que renderá US$ 90 milhões para a pequena Sitka, de apenas 10 mil habitantes, e alimentar a polêmica sobre a transformação em commodity - entregue nas mãos da iniciativa privada - da substância que é a base de toda a vida na Terra.
- Essa transformação de um recurso natural tão fundamental em uma commodity bruta é um desrespeito tremendo a qualquer ação de negócio que vise a sustentabilidade - considera Paulo Costa, diretor comercial da H2C, consultoria especializada no uso racional da água.
- Um projeto como esse me deixa chocado. Ele não só reforça e apressa o processo de comoditização da água como banaliza todas as iniciativas de redução do desperdício e consumo responsável, numa postura que quase beira o terrorismo ambiental, sem falar no perigo de causar danos irreversíveis a um ambiente que já sofreu e sofre muito com abusos.
Aproximadamente dois terços da Terra estão cobertos de oceanos de água, mas toda ela, cerca de 97% do total no planeta, é salgada e, portanto, imprópria para o consumo. Restam assim pouco menos de 3% sob a for ma de água doce, mas destes mais de 2,5% estão congelados na Antártica, no Ártico e em geleiras, indisponíveis para uso imediato. Por fim, do menos de 0,5% que sobra, grande parte está em aquíferos subterrâneos.
Isso faz com que o Brasil, dono de cerca de 12% das reservas de água doce superficial do mundo e de alguns dos maiores destes reservatórios subterrâneos de água líquida, seja considerado por muitos especialistas a "Arábia Saudita da água".
Mesmo assim, o país deverá manter distância de projetos como o do lago do Alasca, afirmam especialistas. Para eles, o Brasil deve usar de uma forma diferente as enormes vantagens estratégicas que possui em um cenário futuro de escassez global.
- Já tiramos vantagem do fato de termos água em abundância - diz Antonio Felix Domingues, coordenador de Articulação e Comunicação da Agência Nacional de Águas (ANA).
- E vamos poder aproveitar ainda mais essa vantagem estratégica, mas nunca vendendo água bruta.
Opinião parecida tem Paulo Costa, diretor comercial da H2C, consultoria especializada no uso racional do recurso natural.
- Não vejo esse tipo de mercado como premente para o Brasil, assim como não vejo o país apoiando esse comércio nem explorando sua água dessa forma - afirma.
Segundo Felix, atualmente o custo de transporte de um metro cúbico de água (o equivalente a mil litros, pesando uma tonelada) em navios de grande porte para granéis líquidos está em torno de US$ 0,25 a US$ 0,50 por dia. E, como uma viagem para os países sedentos do Oriente Médio leva vários dias, este tipo de comércio de água bruta para abastecimento público a grandes distâncias ainda é inviável.
- É uma conta simples, que depende do valor do produto que você transporta e o meio utilizado - explica.
- Mesmo se encontrarmos enormes reservas de ouro na Lua, por exemplo, talvez não compense explorá-las devido ao alto custo do frete. A lei que governa o mundo é a econômica e só louco é que rasga dinheiro.
Assim, não acredito que veremos uma comoditização da água, pelo menos no médio prazo, o que talvez seja até uma infelicidade para o Brasil, porque aí seríamos um país "condenado" à riqueza.
Isso não quer dizer, no entanto, que o Brasil já não esteja exportando água de forma indireta. Aproximadamente 70% de toda a água doce consumida no país vão para o setor agrícola, enquanto outros 12% são destinados para o consumo animal e 7% para o setor industrial, que depois vendem sua produção para mercados mundo afora, exportando o que se convencionou chamar de "água virtual".
- A água é uma das grandes riquezas que temos e que já estamos aproveitando de alguma forma - conta Felix.
- Para se produzir um quilo de soja é preciso consumir mil quilos de água. E, no Brasil, quase toda a água usada para isso é "verde", isto é, da chuva, e não "azul", de reservatórios, rios etc.
Um cenário bem diferente, por exemplo, do encontrado na China. Enquanto que no Brasil a agricultura irrigada cobre 5 milhões de hectares, na China esta área salta para 66 milhões de hectares.
- Vai chegar um momento que esse número vai bater no teto e a China não vai mais ter água para irrigar suas culturas - avalia Felix.
- Para eles, só restará abandonar as áreas onde a produção é ruim e transferir essa água para o uso industrial, que normalmente gera produtos de maior valor que a agricultura para cada metro cúbico utilizado.
Alguns produtos, como grãos, frutas, carnes, aço, papel, açúcar e álcool demandam grandes quantidades de água para serem produzidos e muitos países já encontram dificuldades ambientais para sua produção e, por isso, precisam importá-los de países com água e solo em abundância, como o Brasil - completa.
A mesma linha de raciocínio é defendida por Paulo Costa, da H2C.
- Somos um país com áreas cultiváveis extensas e ainda ociosas, o que já nos coloca em uma posição extremamente estratégica - considera.
- O Brasil deve explorar a sua abundância de água na agricultura e na pecuária, até porque a água com um todo não é cara. Devemos agregar o máximo de valor possível a essa grande disponibilidade de água. Assim, podemos usar o recurso de uma forma melhor e com mais lucro.
(Cesar Baima, O Globo, reproduzido no JC Online)
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