Ele terá sido talvez, entre os que se realizaram nestes 10 anos, o que mais surpresas nos reservou - que se sucederam umas às outras, desde o começo - e o que levantou mais questões para a reflexão sobre o futuro desse processo.
A animadora surpresa da grande marcha inicial
O Fórum se iniciou num domingo, e a surpresa desse dia foi bastante prazerosa: o grande número de participantes - 70.000, bem mais do que se esperava - na marcha com que já tradicionalmente se iniciam os Fóruns Sociais. As avenidas do seu percurso de quatro quilômetros, do centro da cidade ao campus da Universidade em que o Fórum se realizaria, se encheram da alegria que sempre as caracteriza. A forte presença africana e a diversidade das organizações presentes, quanto à sua origem e quanto aos objetivos de suas lutas, indicava que a mobilização prévia tinha conseguido superar a dificuldade do alto custo das viagens, nesse continente dividido artificialmente pelas potencias colonialistas do fim do século XIX: suas linhas aéreas, alem de serem um meio de transporte caro, ligam hoje seus países mais às antigas metrópoles do que entre si. Mas onde foi possível foram organizadas caravanas por terra, que cumpriram também o papel de difundir, por onde passavam, idéias e propostas rumo ao “outro mundo possível”.
Nesse quadro animador só era estranha a presença ostensiva de policiais com suas mundialmente conhecidas vestimentas de repressão a demonstrações de rua, bloqueando as entradas - ou saídas - do percurso previsto. Mas observadores mais avisados o explicavam pelo que ocorria naqueles momentos na Tunísia e no Egito: o poder no Senegal já vinha sendo contestado e estaria tomando suas precauções, temeroso de eventuais desdobramentos daquela manifestação.
Igualmente destoantes foram os enfrentamentos, presenciados somente pelos que se encontravam na proximidade, entre certo número dos participantes marroquinos1 e os representantes dos movimentos pela independência do povo sarahoui e seus apoiadores.2 Muitos asseguram que são provocados por agentes do governo marroquino.Trata-se no entanto de uma dificuldade que os próprios marroquinos estão procurando resolver, fazendo com que os Fóruns Sociais, no Maghreb, sejam um espaço efetivamente da sociedade civil, “não para se bater mas para debater”.
A surpresa desconcertante da Universidade ocupada
Pela informação fornecida ao Conselho Internacional do FSM, a data de realização do Fórum tinha que se adequar à do período de férias da Universidade, para que todas as suas dependências pudessem ser liberadas para o evento. Não foi por outra razão que se teve que aceitar, pela primeira vez em dez anos, que essa data não coincidisse com a do Fórum de Davos.
Surpresa geral, na segunda feira após a marcha de abertura: toda a população universitária ali estava - em torno de 50.000 estudantes - e seus cursos e provas se realizavam normalmente, ocupando praticamente todas as salas disponíveis. Posteriormente nos foi informado que uma greve dos estudantes, no inicio do ano, obrigara a um remanejamento do calendário escolar e, como não havia compromissos escritos, não foi possível recuperar os espaços prometidos...
Mas essa difícil situação teve algumas conseqüências positivas:
- o Fórum mergulhou num ambiente africano, com os milhares de brancos presentes mesclando-se naturalmente aos seus milhares de irmãos negros, numa intercomunicação respeitosa que poderá produzir muitos frutos;
- muitos relatam que entre esses frutos surgiram novas articulações entre participantes do Fórum e estudantes senegaleses, até então pouco informados sobre aquela invasão de sua Universidade mas que se interessaram pelas atividades em curso ou pelas dezenas de estandes das organizações presentes;
- o espaço físico do Fórum teve que ficar totalmente aberto, diferentemente de muitos realizados anteriormente, em que o fechamento do seu território chegou a determinar tensões desgastantes, como no Fórum de 2007 em Nairóbi. Os crachás de identificação pessoal - indicando o país do participante - serviam quase somente para ativar a curiosidade, nos diálogos que aconteciam. Não se podia ser “barrado” pela necessidade de provar sua inscrição no Fórum, que muitos aliás até deixaram de fazer. Em Dakar o FSM foi, fisicamente, realmente um “espaço aberto”...
- os vendedores ambulantes da cidade, diante da concentração de estrangeiros no campus, não perderam tempo para instalar seu comercio nas vias mais movimentadas, ao lado ou na frente dos estandes. Essa imprevista e incontrolável presença criou então um intenso fervilhar humano, que terminou sendo favorável ao ambiente do Fórum, graças à extrema cordialidade dos senegaleses em geral;
- ficamos livres da obrigação de realizar os Fóruns Mundiais nas datas de Davos, com todos os inconvenientes dessa limitação, que impede sua realização em lugares de clima mais frio. É preciso ainda verificar, mais precisamente, se a não concomitância entre os Fóruns teve reflexos na cobertura dada ao FSM pela grande mídia, necessária para que se apresente à opinião pública mundial como uma alternativa ao outro, voltado para a crença cega no Deus mercado. Mas o tabu foi derrubado.
A desorganização costumeira
Durante o Fórum de Belém, em 2009, numa uma video-conferência com participantes de um Fórum Social Local da Alemanha4, eles nos disseram que um jornal de sua cidade noticiara que aquele FSM era o mais desorganizado de todos até então realizados...
É certo que algum grau de desorganização já se tornou quase uma marca do FSM. De fato, para realizar os Fóruns não se contratam empresas ou profissionais promotores de eventos, que os planejariam de cima para baixo, com todo o detalhe. As centenas ou milhares de atividades que neles se desenvolvem são auto-gestionadas. Seu programa é portanto construído progressivamente, de baixo para cima, com uma grande margem de imprevisibilidade. A responsabilidade de preparação dos espaços em que elas se desenvolverão fica nas mãos das organizações locais que se disponham a prestar esse serviço aos demais, num esforço de natureza militante.
A Carta de Princípios do FSM estabelece por outro lado que o Fórum não tem uma direção, um chefe ou responsável último, que concentre algum tipo de poder. Estruturado não em pirâmide mas na horizontalidade própria à organização em rede, todos os seus participantes assumem uma quota de co-responsabilidade. Com isso, ninguém se coloca numa posição de espera de algo que venha pronto desde cima, mas procura encontrar o modo de solucionar os problemas que surgem. Já se disse que a capacidade de improvisação exercitada nos Fóruns Sociais Mundiais é em si mesma uma preparação para o “outro mundo possível”, onde a competição pelo poder será substituída pela cooperação. E certamente isto também explica a alegria que caracteriza esses encontros, por se constatar que a ação e a contribuição de todos e de cada um, coletivamente corresponsáveis, permitem que os resultados visados sejam alcançados.
Por isso mesmo, quando me convidam para apresentar o processo Fórum a alguma delegação, com ou sem novos participantes, sempre alerto para a necessidade de preparar-se para enfrentar as insuficiências organizativas e improvisar para superá-las. Em Dakar o fiz em duas ocasiões: na reunião de acolhida das 600 pessoas que vieram com a ONG francesa CRID5, e no encontro prévio de uma delegação suíça de 60 pessoas, organizada pela ONG “Echanger”. Mas confesso que ao fazer esses alertas, desta vez, não esperava que o nível de desorganização chegasse ao patamar em seguida constatado...
O susto do primeiro dia de atividades
O caos do primeiro dia de atividades, dedicado às lutas na África, foi completo: não se dispunha de um programa impresso; quem teve acesso pela Internet à programação desse descobriu que para 15 a 20% das atividades anunciadas não havia indicação de salas; não se dispunha de um mapa do campus que facilitasse a busca dos locais indicados; quem os encontrava - quando funcionários não diziam que a sala não existia... - se deparava com uma grande quantidade de estudantes assistindo aos cursos normais da universidade ou fazendo provas... Houve participantes que ocuparam uma sala vazia ao lado da prevista, mas tiveram que a deixar com a chegada dos estudantes e do seu professor. Com a eventual possibilidade de não concretizar atividades longamente preparadas, algumas organizações se viram obrigadas a buscar espaços fora do campus. Pode-se imaginar os esforços adicionais necessários para divulgar onde se realizariam essas atividades.
A confusão criada poderia ter levado a uma frustração generalizada. Houve quem considerasse que o processo FSM estava recebendo o mais duro golpe em seus 10 anos de existência, e que a continuidade do processo estava sendo definitivamente posta à prova, com um enorme risco de implosão: muitos poderiam decidir afastar-se dele, depois de todo o esforço pessoal e financeiro que tinham feito para vir ao Fórum sem conseguir realizar as atividades que tinham programado.
A inexistência de um programa accessível - essencial para que os participantes possam encontrar outros para intercambiar experiências e se articularem - na verdade não era uma novidade. Tínhamos vivido uma situação similar em Porto Alegre, no Fórum de 2003, por problemas técnicos surgidos no uso de computadores. Mas naquele caso o tradicional grande caderno impresso foi distribuído com o Fórum já começado. E tinha sido possível consultá-lo no seu site na noite anterior - ensejando até a que uns e outros ganhassem alguns trocados, vendendo-o impresso aos mais ansiosos.
Essa enorme surpresa do primeiro dia do FSM de Dakar, extremamente negativa, se acoplou no entanto à boa surpresa ocorrida nos dias seguintes. Como reportou o correspondente da Radio Televisão Belga Francófona, aquele parecia ser um Fórum natimorto. Mas ele completou sua análise dizendo que surpreendentemente o “bebê” se mostrava em plena forma. Assim como o correspondente do hebdomadário francês Politis colocou como título de sua matéria: “Desorganizado mas mágico”.
A força da retomada desde abaixo
Essa demonstração de resistência se deveu em minha opinião a dois fatores: primeiro a própria natureza do Fórum, firmada pela sua Carta de Princípios, que faz dele um evento no qual a co-responsabilidade é condição de existência; segundo, dez anos de articulações crescentes construídas pelo processo, dentro da sociedade civil, permitiram que muitos fossem a Dakar melhor preparados, com mais ligações e objetivos melhor definidos, e decidissem não perder a oportunidade de encontro que lhes era propiciada.
O que se viu nos dias seguintes, e mesmo já no primeiro dia, foi a intensa busca de soluções para os problemas enfrentados, cada um e todos optando por não se deixar vencer pela confusão e tirar proveito dos encontros possíveis, sem se preocupar em encontrar os culpados pelo quadro em que todos estavam mergulhados.
Uma informação que então circulou ajudou a dar a esse esforço uma dimensão de solidariedade política aos “organizadores” do Fórum: no inicio de janeiro o reitor da Universidade tinha sido substituído, e o novo reitor não respeitou os compromissos assumidos verbalmente pelo anterior... Um odor de ação política contrária ao Fórum pairava no ar, ainda mais depois que, já no primeiro dia, o Presidente da República do Senegal declarou sua opção neoliberal. Em sessão a que compareceu porque Lula dela participaria, como cidadão mas sempre como ex-presidente brasileiro, ele disse, alto e bom som, que não concordava com nenhuma das idéias que eram debatidas no FSM, mas, democraticamente, não o impedia de realizar-se em seu país...
A onda positiva que tomou conta do Fórum, nessa retomada da iniciativa desde abaixo, permitiu que um grande número de atividades pudesse de alguma maneira ocorrer. Pouco a pouco seus organizadores - embora muitos tenham sido bastante prejudicados - foram encontrando seu lugar ou algum lugar para realizá-las, contando então com tendas armadas de última hora em diversos lugares do campus. Um bom exemplo dessa capacidade de iniciativa foi dada pela equipe encarregada de “Dakar-expandida”. Essa modalidade de participação havia sido bastante divulgada anteriormente, para multiplicar ao máximo as ligações via Internet com organizações pelo mundo afora que não tinham condições de vir até o Fórum e, em Dakar, com grupos da periferia da cidade que não podiam vir até a Universidade. Muitos “encontros virtuais” desse tipo tinham sido programados. Mas esta atividade exigia equipamentos e condições técnicas especiais, que não foram colocados à disposição dos seus responsáveis. Eles improvisaram então como puderam com seus próprios equipamentos, constrangidos a se agruparem numa única sala e a buscarem outros espaços fora do campus. Mas chegaram a realizar 70% dos encontros previstos.
Esse esforço persistiu até o final, uns com mais sorte do que outros no uso das salas da programação inicial, em geral concentradas na área da Universidade em que também se tinha podido erguer os estandes solicitados pelas organizações participantes. E no final foram realizadas 38 assembléias de “convergência para a ação”, de dia e meio de duração - não necessariamente nos locais inicialmente previstos - com dezenas, centenas e mesmo milhares de participantes, consolidando e dando mais consistência à opção metodológica das plenárias temáticas experimentadas no Fórum de 2009 em Belém.
No correr dos dias, o ambiente foi ficando suficientemente desanuviado para que os membros do Conselho Internacional do FSM que se cruzavam pudessem dizer, com humor: “provamos neste Fórum que não é preciso Comitês Organizadores”. “Nem precisamos de Davos”, diziam outros. Ou, “este Fórum não foi um 'espaço aberto', como especifica sua Carta de Princípios, mas um 'espaço agarrado como se pode'”, numa referência aos esforços para obter um lugar onde se reunir...
A boa surpresa da avaliação pelo Conselho Internacional
Não foi outro o tom do dia e meio da reunião realizada pelo Conselho Internacional do FSM depois do Fórum, embora se deva dizer que dele só participam representantes de organizações internacionais. Ou seja, não estavam presentes as pequenas organizações e redes que foram as mais prejudicadas pela desorganização.
Em sua primeira sessão, pela manhã, deveria se iniciar o processo de avaliação daquele Fórum - foi dito explicitamente somente iniciar porque se tornava necessária uma boa avaliação mas a sabedoria coletiva aconselhava a que se deixasse passar o calor das situações vividas e esperar a poeira baixar. Fui designado, pelo Grupo de Ligação do Conselho - que organiza suas reuniões - para coordenar os trabalhos dessa primeira sessão, juntamente com a representante da organização que promovera a grande participação francesa no Fórum. Certamente fui escolhido porque meus cabelos brancos poderiam ajudar a arrefecer eventuais ânimos mais exaltados. Mas fomos logo de inicio ajudados pelos ventos que sopravam do norte da África e que nos haviam presenteado com a notícia da renúncia de Mubarak na tarde do dia anterior, exatamente quando realizávamos o ato-festa de encerramento do Fórum. A palavra tinha que ser dada necessariamente, de inicio, a um representante egípcio, como uma homenagem aos seus conterrâneos. Daí em diante uma postura positiva tomou conta da sala, para seguir em frente diante do muito por fazer para ajudar a construir o “outro mundo possível”.
Nas intervenções seguintes não se deixou de fazer criticas e levantar questões, como, por exemplo, sobre algo pouco aceito por muitos membros do Conselho: quem teria decidido que um Chefe de Estado - no caso Evo Morales - assim como um Ministro enviado por um governo - no caso o governo brasileiro - falariam no seu ato de abertura? Esta decisão era frontalmente contraria a uma orientação, longamente discutida e adotada pelo Conselho em 2008, antes do Fórum de Belém, a partir de experiências negativas anteriores, pela qual Chefes de Estado não deveriam falar nem na abertura nem no fechamento dos Fóruns6.
Mas mesmo havendo espaço para críticas, o tom geral desse início de avaliação foi de muito respeito aos organizadores africanos, e mesmo solidariedade com eles frente aos problemas de diferentes tipos que enfrentaram, agradecendo-se o enorme trabalho que tiveram. Pareceu até desnecessário, aos coordenadores da sessão, que ao final lhes fosse dada novamente a palavra, como se tivessem que responder às críticas. Falaram, como não poderiam deixar de fazer, mas até um pouco surpresos com a boa vontade demonstrada por todos.
No seguimento da reunião, a Comissão de Estratégia do Conselho apresentou um balanço dos 55 Fóruns realizados ao longo de 20107 - em 28 diferentes países - sem contar o que aconteceu em 2009 depois de Belém e em 2011 antes de Dakar. Claramente positivo, ele indicava nitidamente o avanço do processo, expandindo-se pelo mundo afora, inclusive e especialmente em regiões em que tinha entrado mais recentemente, como o Maghreb e o Machrek, onde se realizaram 10 dos 55 eventos recenseados. A Comissão apontou então para o vigor desse avanço e para as pistas que se abriam com os Fóruns Temáticos, que permitiam um maior aprofundamento das reflexões e uma maior preparação das atividades nos Fóruns Mundiais.
O inicio de discussões sobre onde realizar o FSM de 2013 coroou o ambiente otimista. Várias possibilidades foram levantadas, a serem examinadas na próxima reunião do Conselho, em maio em Paris. Surgiram propostas desafiadoras, como a de realizá-lo na Europa, que estaria necessitada do sopro de esperança e otimismo que os FSM têm a capacidade de provocar. Mas o mais importante era o consenso total sobre a necessidade de continuar a organizar Fóruns Sociais Mundiais, como um marco essencial da busca dos caminhos da ação política da sociedade civil, na transformação do mundo. Assim como multiplicar cada vez mais, nessa perspectiva, os Fóruns Sociais regionais, nacionais e locais, para que cada vez mais gente se associe ao imenso esforço que tem que ser feito para superar a dominação do mundo pela lógica do dinheiro.
As reuniões das Comissões do Conselho, com as quais ele se encerrou, demonstraram, em sua animação e intensidade, o interesse efetivo de todos nessa continuidade, cada uma atribuindo a si mesma tarefas precisas para assegurá-la.
Faltaria, neste balanço, tratar dos Fóruns paralelos que já se tornaram tradicionais nos FSM, como aquele que, no dia imediatamente anterior ao Fórum, levantou na Ilha de Gorée o grande drama das migrações, que viria a se tornar um dos temas mais presentes nas discussões de Dakar. Mas não só não disponho de muitos dados a respeito como isto aumentaria demasiadamente este já longo texto. Como também deixo de citar os temas que se consolidaram, como a busca de novos paradigmas diante da crise de civilização, ou os temas novos que emergiram - como o acaparamento de terras e a ameaça da geo-engenharia - uma vez que as avaliações posteriores ao Fórum, de que trato a seguir, já o estão trazendo ao conhecimento de todos.
A boa surpresa das avaliações posteriores
Tradicionalmente, após os Fóruns, começam a circular, nas listas de discussão do Conselho Internacional na Internet, avaliações diversas de organizações e pessoas participantes8.
As críticas mais fortes iriam então aparecer nessas avaliações? Os muitos descontentes iriam trazer suas dúvidas e preocupações? Isto não ocorreu, até agora pelo menos, na escala que se poderia eventualmente esperar. Pouco se fala da desorganização a que me refiro neste texto. As pessoas preferem tratar das perspectivas que se abriram, do futuro que há a construir. Chega-se até a dizer que não se deve dar tanta atenção ao que ocorreu no aspecto organizativo, para centrar a atenção nos resultados políticos do processo Fórum. E se aponta o que há a fazer para que esse processo preste efetivamente o serviço que pode prestar à luta pela superação do neoliberalismo e pela construção do “outro mundo possível”.
Na verdade uma boa avaliação dos resultados políticos só poderá ser feita quando dispusermos dos resultados de todas as assembléias de convergência para a ação, que ainda estão sendo reunidos. Assim como quando, mais adiante, for possível fazer um balanço da efetiva concretização de todas as novas iniciativas que os participantes do FSM de Dakar decidiram realizar em 2011 e 2012, e das repercussões dessas iniciativas nas mudanças pelas quais lutamos. Para isso precisamos ainda assegurar que toda a informação necessária seja recolhida e publicada.
O importante a observar, por enquanto, é que prevalece o otimismo. Ou como resumiu em sua primeira frase uma das avaliações que circulam: “contrariamente ao que alguns gostariam de acreditar, o processo do Fórum Social Mundial está vivo e empolgante, e mais forte do que nunca”.
Lições a tirar
Obviamente, no entanto, não se deve passar por cima, irresponsavelmente, do ocorrido. Este texto talvez destoe, neste sentido, da maior parte das avaliações que li até agora, porque dá especial importância aos aspectos organizativos que não funcionaram. Mas sem dúvida será necessário tirar todas as lições possíveis para que não se repita o que houve de negativo no Fórum de 2011.
Todos os FSM têm tido muitas insuficiências organizativas, mas não temos o direito de minimizar a importância das condições em que se realizem. A participação em um Fórum Mundial implica em dispêndio de muitos recursos de diferentes tipos, nem sempre facilmente disponíveis e que não se pode desperdiçar. Assim como não se pode perder a oportunidade de fazer crescer as articulações da sociedade civil que um Fórum Social Mundial torna possíveis. Aqueles que assumam a responsabilidade de organizar Fóruns Sociais Mundiais têm que fazer o máximo ao seu alcance para não mais colocar os que a eles vierem na condição em que muitos se encontraram em Dakar. Seria o mesmo que trair a confiança neles depositada.
Nesse aspecto, ganha especial importância a questão das traduções, essencial para os diálogos entre pessoas que falem diferentes línguas. Se considerarmos as dificuldades de tradução que se apresentaram, quanto a tradutores e a equipamentos - apesar dos intensos esforços feitos pela rede Babels para que se soubesse onde havia tradutores à disposição dos interessados - teremos um quadro ainda mais negativo do FSM de Dakar para os que não falavam francês, língua dominante no campus9.
As redes grandes e médias, que tinham sido construídas nos dez anos do processo, puderam buscar e encontrar saídas para os impasses em que foram colocadas. Mobilizaram durante o Fórum os recursos organizativos de que dispõem, e já sabem como se sair da desorganização costumeira. Mas o mesmo não ocorreu com organizações que vieram pela primeira vez ou que se propunham a consolidar redes incipientes. Muitos não conseguiram realizar as atividades que tinham preparado ou divulgá-las junto a outros eventuais interessados - obviamente não bastava afixar de manhã o programa do dia em paredes dos prédios da Universidade. Eu mesmo não fiquei nem mesmo sabendo se uma atividade que organizara com outros, e na qual tinha um particular interesse10, como membro da Comissão de metodologia do Conselho Internacional, chegou a aparecer em algum programa. Assim como deixei de lado muitos contatos que pretendia aprofundar.
O “rendimento” do Fórum, se assim se pode dizer, quanto ao intercâmbio de experiências, ao aprendizado mútuo, à identificação de convergências e à construção de novas articulações - objetivos diretos da criação desses “espaços abertos” - foi portanto muito baixo. Muitos diziam que o Fórum foi ótimo, o ambiente muito bom, mas que de fato eles ficaram somente entre eles, sem alargar o âmbito de suas articulações, como pretendiam fazer ao vir ao Fórum.
Pode-se concluir que todo o cuidado é pouco nos próximos passos a serem dados. Temos que tirar todas as lições que pudermos.
O FSM como Bem Comum da humanidade
Tirar lições foi a tarefa a que se propôs a Comissão de Metodologia do Conselho Internacional, até sua reunião de maio. Ela pretende analisar o Fórum de Dakar à luz do roteiro adotado há vários anos - antes mesmo de Belém - pelo Conselho Internacional, completá-lo e melhorá-lo. Assim como examinar eventuais mudanças a introduzir no formato do Fórum, como foi sugerido na reunião do CI. Não vou portanto pretender me antecipar a essa análise, que deverá ser extensa e meticulosa.
Mas já tiraria uma primeira grande lição geral: a necessidade de tomarmos consciência de que um Fórum Social Mundial - assim como Fóruns Sociais a qualquer nível - não podem ser privatizados, como não se podem ser privatizados os Bens Comuns da Humanidade, entre os quais já se pode dizer que o processo FSM se insere. Não podemos correr o risco de vê-lo ser apropriado por uma ou outra corrente ideológica, que queira colocá-lo ao serviço de seus objetivos, mas também não podemos correr o risco de vê-lo desaparecer por simples falta de capacidade organizativa. Ou de transformá-lo num grande encontro mundial daqueles que já se encontram articulados ou das redes organizadas planetariamente.
Gerir qualquer Bem Comum, para que ele não se esgote e se garanta o seu acesso a todos que dele necessitem, é um enorme desafio. Essa gestão tem que ser necessariamente coletiva, com a mais absoluta transparência, negando-se todo verticalismo e toda possibilidade de concentração de poder nas decisões que devem ser tomadas, como ocorre no “mundo velho” que queremos superar, para que se eleve sempre mais a qualidade democrática da nossa ação política. Gerir um Bem Comum de dimensão mundial, como é o caso do FSM, de que tem necessidade a sociedade civil do mundo todo para atuar, respeitada sua diversidade, como ator político autônomo em relação a partidos e governos, é um desafio ainda maior. Em torno disto talvez se situe uma das dimensões mais decisivas do processo do FSM, em sua caminhada.
A responsabilidade de realização de Fóruns Sociais não pode portanto ser atribuída a uma ou umas poucas organizações. Menos ainda sempre as mesmas, que os burocratizem ao se tornarem “donas” do Fórum, como muitas vezes ocorre com Fóruns regionais, nacionais ou locais. A privatização dos Fóruns prejudica sua continuidade. Talvez isto explique porque se diz que alguns Fóruns Regionais - como o Europeu por exemplo - se encontram “em crise”. E talvez seja essa dinâmica que fez com que muitos Fóruns Locais não se repetissem ou não se expandissem.
No caso do FSM de 2011 muitos apontam essa privatização como estando na base dos problemas vividos em Dakar, assim como daqueles vividos no Fórum de Nairobi. A limitação dos coletivos que organizaram um e outro, assim como a centralização das decisões em poucas pessoas e a dificuldade em assimilar ajudas, foram apontados, pelos que procuravam entender o que estaria acontecendo, como uma das mais fortes razões para os problemas surgidos. E de fato podemos nos perguntar se a dificuldade básica enfrentada - a decisão do novo reitor da Universidade de não mais ceder as salas do campus ao Fórum - não poderia ter sido superada se essa decisão, com todas as suas conseqüências absolutamente previsíveis, tivesse sido comunicada a tempo a todo o Conselho Internacional do Fórum. Seguramente, dada a sua gravidade, uma delegação internacional teria ido a Dakar, mudando completamente a relação política de forças nos entendimentos em curso, com o que se evitaria atingir o patamar de desorganização que encontramos ao chegar.
Mas vamos em frente, que a caminhada é longa.
(Chico Whitaker, Fonte: Ciranda.net)
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