O governo federal começou o ano de 2016 anunciando uma reforma na Previdência Social que propõe a unificação de todos os regimes de aposentadoria a partir de uma idade mínima, com elevação de 60 para 65 anos no caso das mulheres. Além disso, advoga-se a desvinculação dos benefícios do salário mínimo. A proposta vem sob a justificativa de haver um envelhecimento da população e de que há um déficit explosivo nas contas de seguridade social. Tais argumentos, contudo, não se sustentam. Quem afirma é a economista Denise Lobato Gentil, professora de Macroeconomia e Economia do Setor Público do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A Previdência é superavitária e não o contrário”, afirmou ela em entrevista ao Engenheiro.
Foto: Thiago Júnior
Denise Lobato Gentil: "A Previdência é superavitária e não o contrário."
Existe ou não déficit na Previdência Social?
Denise Lobato Gentil – O déficit da Previdência é um falso discurso. É baseado numa contabilidade que não tem nenhum respaldo legal, completamente alheio à Constituição Federal. E está sendo usado para alardear a população que se trata de um sistema quebrado, que é um déficit explosivo e que, portanto, é necessária uma reforma, que implica corte de gastos e, por sua vez, corte de benefícios. Repare que há todo um discurso ideologicamente montado para que a população chegue à conclusão que não pode contar com uma renda futura, digna, pelo sistema público brasileiro de previdência e, por isso, é levada a fazer um plano de previdência privada. A minha hipótese é que se trata de um processo de financeirização de um serviço que é público.
Mas qual a situação hoje então?
Gentil – Existem outras receitas previstas para o sistema de seguridade social público, nos artigos 194 e 195 da Constituição. São cinco receitas que apresentam grande capacidade de arrecadação: a contribuição previdenciária ao INSS, a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o PIS/Pasep, ou seja, o Programa de Integração Social e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, e receita de loterias esportivas. Somando todas essas receitas e descontando todos os gastos do governo com o Sistema Único de Saúde (SUS), Bolsa Família e demais programas sociais do País, incluindo a máquina pública e o pagamento dos 27 milhões de benefícios pela Previdência, entre aposentadoria, pensões, auxílio-doença, auxílio-acidente, seguro-desemprego, ainda assim sobra um montante de recursos. Ou seja, esse déficit não existe. Em 2015, mesmo com recessão, com a queda do PIB em 4%, teve um superávit de R$ 16 bilhões. Nos anos anteriores sempre teve superávit. O auge do superávit foi em 2012, com R$ 78 bilhões.
Como o discurso da aposentadoria pública inviável se sustenta?
Gentil – A população não se mobiliza e isso para mim é resultado de uma desinformação muito grande. Ficamos brigando pelas migalhas, para não acontecer uma redução maior dos benefícios. Na verdade, deveríamos brigar por uma outra postura de Estado com relação a tudo. Temos um orçamento público completamente financeirizado, a maior despesa do nosso orçamento é com os juros da dívida. Isso é impensável num país como o Brasil quando vivemos um momento de crise mundial. Destinamos no último ano R$ 501 bilhões para pagamento de juros. É um escândalo. Somos o país que mais paga juros. E nosso segundo maior gasto, no mesmo período, foi da Previdência, com R$ 380 bilhões. Só que o primeiro atende a menos de 100 mil pessoas, de renda alta, que são praticamente rentistas, que possuem aplicações em instituições financeiras, enquanto o segundo destinou-se a pagar 27 milhões de benefícios. A mídia tem uma enorme influência nisso. Mas quem libera os dados para a mídia é o próprio governo.
E para onde vão esses recursos?
Gentil – Desde a década de 1990, o governo federal, de Fernando Henrique Cardoso, vem retirando sistematicamente recursos do orçamento da seguridade social para o orçamento fiscal. Quando o orçamento da seguridade dá superávit, que sempre dá, ele destina aos gastos do orçamento fiscal, que é onde se pagam os juros da dívida pública, e aos aposentados do serviço público. São gastos que não tem nada a ver com a seguridade. Quer dizer, a Previdência está dentro de uma lógica de benefício ao sistema financeiro. Tanto pelo lado que você tem que cortar os gastos da Previdência para poder sobrar para pagar juros, quanto pelo lado que você tem que precarizar um serviço público para que as pessoas tenham que buscar um serviço privado em um banco. Então o discurso do desastre demográfico, o catastrofismo é muito útil ao sistema financeiro.
Mas de fato existe uma preocupação sobre o envelhecimento da população?
Gentil – Essa pressão demográfica está acontecendo e será mais forte no futuro. Mas isso não quer dizer que no futuro tenhamos um grande problema pela frente. Eu advogo uma ideia totalmente diferente desse catastrofismo. Quando o governo repassa essas aposentadorias, elas só passam pelas mãos dos idosos, já que se destinam à compra de alimentos, medicamentos, energia, transporte. Tem uma proposta de visão muito mais ampla de perceber que esse gasto é dinamizador da economia, que ele gera crescimento e assim gera mais arrecadação.
O aumento do superávit da Previdência também está relacionado com o crescimento do País?
Gentil – Sim, essa relação existiu até o ano de 2014. Daí para a frente não mais. Quando o País estava crescendo, e cresceu muito entre 2003 e 2010, o número de pessoas que passaram a fazer parte do sistema aumentou muito. E esse aumento se deve efetivamente ao crescimento econômico. Quanto mais aumenta o volume de pessoas formalizadas, mais contribuições vão existir. O que prejudicou o superávit da seguridade social nos últimos três anos, que fez diminuir, não gerar déficit, foi a política de desoneração tributária do governo Dilma, que atingiu as receitas da seguridade social. A ideia do governo era reduzir carga tributária para estimular os investimentos, o que foi um tremendo fracasso.
* Por Deborah Moreira. Entrevista publicada, originalmente, no jornal Engenheiro, nº 167, de abril de 2016, da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE)