A empresa M5 Indústria e Comércio, dona das marcas M. Officer e Carlos Miele, foi condenada em primeira instância a desembolsar R$ 6 milhões por ter peças confeccionadas por trabalhadores em condição análoga à de escravo. A juíza do Trabalho Adriana Prado Lima estabeleceu que a empresa pague R$ 4 milhões por danos morais coletivos e mais R$ 2 milhões por dumping social, ou seja, pela subtração de direitos trabalhistas para reduzir seus custos e obter vantagens sobre os concorrentes. O valor será destinado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Ainda cabe recurso à decisão. A marca pode ainda ser banida do estado, se condenada em segunda instância.
Foto: Daniel Santini
Em oficinas diferentes, fiscalização flagrou escravidão na produção da M. Officer.
A sentença, assinada em 21 de outubro, tem como base ação do Ministério Público do Trabalho de São Paulo. Os procuradores Christiane Vieira Nogueira, Tatiana Leal Bivar Simonetti e Tiago Cavalcanti Muniz argumentaram que peças da M. Officer eram produzidas por trabalhadores em moradias inadequadas e com jornadas exaustivas (que colocam em risco a saúde, a segurança e a vida), além de relacionarem o caso ao tráfico de pessoas. Segundo os procuradores, isso “constitui um modelo consagrado de produção da ré, como forma de diminuição de custos, através da exploração dos trabalhadores em condições de vulnerabilidade econômica e social”.
A juíza acatou a maior parte dos argumentos dos procuradores e descartou o principal argumento da defesa, de que não a empresa não seria responsável pela situação encontrada nas confecções.
“Não é possível (…) deixar de responsabilizar as grandes empresas do final da cadeia produtiva pela manutenção deste sistema exploratório, que não pode ser tolerado, seja com relação a imigrantes, seja em relação a brasileiros,” escreveu a juíza. Leia a íntegra da decisão, clicando aqui.
Trabalho Escravo
A ação não se baseia somente em um caso de trabalho escravo, mas na situação verificada pelos procuradores em cinco diferentes oficinas nos anos de 2013 e 2014. No primeiro caso, em 13 de novembro de 2013, a fiscalização, feita em conjunto com o Ministério do Trabalho, encontrou dois costureiros bolivianos que produziam peças exclusivamente para a marca no Bom Retiro, região central de São Paulo.
O casal de bolivianos informou trabalhar, diariamente, das 7h às 22h. O local, sem divisão entre moradia e trabalho, estava em péssimas condições de higiene e tinha grande risco de incêndio.
O segundo caso de trabalho escravo na empresa foi encontrado pela fiscalização em 6 de maio de 2014. Na ocasião, outros seis trabalhadores bolivianos que costuravam peças em condições degradantes foram libertados na Zona Leste da capital paulista.
Posteriormente, os procuradores também visitaram outros três fornecedores da M. Officer, a partir de investigação utilizando dados obtidos junto à Receita Federal. Segundo eles, “a degradação humana e a sonegação de direitos trabalhistas, sociais e previdenciários é nota presente em todas as oficinas visitadas.”
Em todos os casos, as oficinas de costura eram contratadas a partir de confecções e intermediários que mantinham o contato direto com a M. Officer. Segundo os procuradores, os costureiros eram informados detalhadamente sobre o tamanho das peças, suas cores, a quantidade, os modelos a serem costurados e a data de entrega. Também recebiam botões e etiquetas da M. Officer, além de modelos para fazer as peças.
Em sua defesa, a M. Officer afirma que sofreu uma injusta perseguição “ideológica e desassociada da realidade”. A M. Officer argumenta, entre outros pontos, que as próprias oficinas desenvolviam as roupas. Dessa forma, a M. Officer não teria qualquer “ingerência ou controle” sobre as atividades das empresas contratadas.
A juíza afirmou, em sua sentença, que o argumento da empresa “não é crível”: “A documentação demonstrou que a ré [M. Officer] definia em detalhes a produção das peças que seriam comercializadas.”
A procuradora Tatiana Leal Bivar Simonetti afirma que a postura da M. Officer foi distinta de outras marcas de roupa flagradas com trabalho análogo ao de escravo, que buscaram, ao menos, sanar os problemas emergenciais dos trabalhadores. “Desde o início, a M. Officer recusou a responsabilidade e nunca mostrou sensibilidade ao tema. Não teve nenhum diálogo e eles se recusaram a firmar qualquer acordo. Foi uma conduta bem peculiar,” explica.
Em nota enviada à Repórter Brasil, no dia 10 de novembro, a M5 afirma que ela e suas fornecedoras jamais foram condenadas pelo crime de reduzir empregados à condição análoga à de escravo. Segundo a empresa, “algumas notícias foram divulgadas pela imprensa, com erros de informação ou omissão de fatos relevantes.” A empresa diz ainda “dedicar-se intensamente a combater a precarização do trabalho e o trabalho em condições análogas à de escravo.”
A procuradora do trabalho Christiane Nogueira afirma que “a sentença reconhece expressamente o trabalho escravo na empresa.” Segundo ela, “a condenação por dumping social e danos morais coletivas é justamente pelo trabalho análogo ao de escravo, reconhecido na esfera trabalhista”.
Desde 2013, o Estado de São Paulo possui uma lei que pode banir do empresas que comercializem mercadorias produzidas com escravidão contemporânea em qualquer etapa da sua produção.
A regulamentação da Lei Paulista de Combate à Escravidão (14.946/2013) prevê que as empresas condenadas por trabalho escravo em segunda instância, nas esferas trabalhista ou criminal, tenham o registro do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) suspenso por dez anos. E, sem ele, é impossível vender no Estado. Além disso, seus proprietários ficam impedidos pelo mesmo período de exercer o mesmo ramo de atividade econômica ou abrir nova empresa no setor em São Paulo.
A ação do caso da M. Officer foi a primeira em que o Ministério Público do Trabalho pediu a aplicação da lei. Em sua ação, os procuradores solicitam que a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo de São Paulo (Coetrae), ligada à Secretaria de Justiça e Cidadania, e a Secretaria da Fazenda sejam informadas do andamento do processo. De acordo com a regulamentação da lei, o processo que pode levar ao banimento da marca, em São Paulo, só se inicia após a decisão de segunda instância, ou seja, de um colegiado de juízes.
“Se essa decisão for mantida em segunda instância, será um divisor de águas na história das lutas contra o trabalho escravo no Brasil. Sobretudo em um momento em que nossa história tem se mostrado tão frágil nas garantias de direitos da coletividade frente a interesses individuais ou de alguns grupos,” afirma o deputado estadual Carlos Bezerra (PSDB), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais da Assembleia Legislativa de São Paulo e autor da lei.
Fonte: Repórter Brasil