O Brasil não está condenado a participar desse processo. Seu novo desenvolvimento e aspectos produtivos podem ser capazes de romper com o atraso secular da condição subordinada no mundo.
Artigo de Marcio Pochmann
A estrutura da economia mundial se altera rapidamente desde a virada do século XX. Países asiáticos assumem cada vez maior participação relativa na produção global. Sem contabilizar o Japão, o conjunto das economias asiáticas responde por quase 43% da produção global, enquanto em 1973 representava apenas 16,4%.
Em contrapartida, nações como os Estados Unidos e a Inglaterra, que juntas respondiam por 26,3% do produto global em 1973, representam atualmente 21,5%. Essa inversão no sentido da composição da produção mundial sinaliza a conformação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho assentada no movimento combinado e desigual da desindustrialização do velho centro manufatureiro global com a industrialização acelerada de países periféricos, sobretudo asiáticos.
O curso atual do enfraquecimento das antigas economias manufatureiras está longe de expressar a desindustrialização regressiva verificada no século 19, quando o avanço na internalização das bases do capitalismo industrial inicialmente na Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos e outros poucos países, foi acompanhada pelo retrocesso na base produtiva artesanal existente em outras regiões. Em 1913, por exemplo, a Ásia sem o Japão respondia por 22,3% da produção global, contra 56,4% em 1820.
A Inglaterra e os Estados Unidos, que, por outro lado, representavam juntos somente 7% da produção mundial de 1820, passaram a responder por 27,1% no ano de 1913. Em grande medida, o ciclo de industrialização original e retardatária na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente, se fortaleceu na medida em que a globalização liberal do século XIX destravou o livre comércio e, com isso, ocasionou o esvaziamento da base produtiva artesanal em antigas regiões com elevados excedentes exportadores.
Em síntese, o século XIX possibilitou que o avanço do capitalismo industrial em alguns poucos países ocorresse simultaneamente ao esvaziamento da desindustrialização da produção artesanal até então existente. A Índia, por exemplo, que era a grande exportadora de produtos têxteis no início do século XIX (sedas e artesanato), conviveu com a destruição de sua base produtiva diante do comércio livre com a Inglaterra produtora e exportadora de manufaturados têxteis oriundos da mecanização (tear mecânico), da logística ferroviária e da reorganização do trabalho industrial.
Assim, no final do século XIX, três quartos do consumo têxtil indiano eram abastecidos por importações inglesas. Em compensação, o artesanato foi sendo substituído pela produção de algodão, juta e índigo. A especialização da produção de mercadorias primárias não se mostrou suficiente nem mesmo para oferecer segurança alimentar, considerando-se problemas de fome constatados na Índia.
A Inglaterra exportava manufatura e importava matéria-prima e alimentos dos países sem indústria moderna. Dessa forma, a Índia, que abandonou sua produção local para atender ao consumo interno por meio da importação da Inglaterra, não tinha a garantia de que os ingleses fariam a mesma coisa. Ou seja, a Inglaterra vendia manufatura para a Índia, mas não importava o trigo e outras culturas de subsistência da própria Índia, pois as adquiria dos Estados Unidos.
Também para os chineses, a liberação dos entraves ao comércio externo, como o Tratado de Nanquim, em 1842, encerrou a "Guerra do Ópio" em favor dos ingleses. Com o ingresso do ópio na China, seus efeitos se mostraram desastrosos sobre a estrutura produtiva total. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito da situação do Ceilão, que, ao aceitar os pressupostos da globalização liberal do século XIX, perdeu a sua base produtiva artesanal em favor da dependência das importações manufaturadas em troca da exportação de chás.
Pela globalização neoliberal da virada do século XX, o antigo centro produtivo mundial tornou-se crescentemente oco, com o esvaziamento do parque manufatureiro. Indústrias centenárias como siderurgia, têxtil e vestuário, estaleiros, entre outras, são esvaziadas por força da pujança da produção manufaturada dos países que rapidamente se industrializam. A defesa da liberalização comercial nos dias de hoje parte do pressuposto de que o setor terciário (serviços) poderia ocupar mais satisfatoriamente o espaço vazio deixado pela desindustrialização. Ainda que o avanço da tecnologia nos serviços possa ajudar a minorar os problemas das finanças desindustrializantes, o comércio mundial assentado nos bens manufaturados tende a reorganizar a produção global em poucas localidades, sobretudo na Ásia.
A relação entre países deficitários e superavitários no comércio global não revela necessariamente a força da nova Divisão Internacional do Trabalho. Tal como no século XIX, o Brasil cresceu sua participação relativa na produção global à taxa média anual de 0,6%, passando de 0,4% para 0,7% entre 1820 e 1913, enquanto a sociedade agrária era atrasada e exportava bens primários. No período de sua industrialização, o peso crescente da manufatura permitiu que a presença brasileira na produção global crescesse 2,5% ao ano (de 0,75%, em 1930, para 2,6%, em 1980). O dinamismo do seu mercado interno e a modernização da sociedade foram seus principais trunfos. Na virada do século XX, a aceitação da globalização neoliberal fez com que a sua base manufatureira regredisse, reduzindo a participação relativa na produção global não fosse o aumento da exportação primária. Na década de 2000, o peso relativo do Brasil no produto industrial mundial foi de apenas 1,9%, ante 2,9% da década de 1980.
Sem ter passado pela velha desindustrialização do século XIX, o Brasil não está condenado a ter que participar da nova desindustrialização. O cenário atual de moeda nacional valorizada, combinada com taxas de juros elevadas, faz avançar a reprimarização da pauta exportadora e a geração interna de manufatura com alto conteúdo importado. Com taxa de investimento inferior a 20% do produto, prevalece a contenção da inovação tecnológica, geralmente suprida pelas compras externas. Os esforços em educação seguem importantes, ainda que doutores e mestres em profusão sigam mais ativos na docência do que na pesquisa aplicada no sistema produtivo.
A negativa à nova desindustrialização requer reafirmar a macroeconomia do desenvolvimento sustentada pelo maior valor agregado industrial e conhecimento. A impulsão dos investimentos é estratégica, seja pela agregação de valor às cadeias produtivas e às exportações, seja pela ampliação da inovação tecnológica e educacional exigida. Assim, o novo desenvolvimento brasileiro pode convergir com as estruturas produtiva e ocupacional de qualidade, capazes de romper com o atraso secular da condição subordinada do Brasil no mundo.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais
e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Escreve mensalmente às quintas-feiras.