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16/11/2020

Artigo - Vacina é assunto da ciência, não da política

Herton Escobar, Jornal da USP
 

O presidente Jair Bolsonaro indignou a sociedade novamente esta semana com mais uma declaração de desrespeito à vida, à saúde pública e à ciência. Em uma postagem de seu perfil oficial no Facebook, na terça-feira (10 de novembro), ele celebrou como uma vitória o fato de os testes clínicos da vacina CoronaVac, conduzidos pelo Instituto Butantan, terem sido suspensos por causa da morte de um participante do estudo. A paralisação da pesquisa durou apenas um dia, mas os danos causados pela contaminação política do episódio tendem a ser muito mais profundos e duradouros do que isso, segundo especialistas que monitoram a evolução do discurso antivacinal no Brasil.

 

coronavac Arte Moises Dorado Jornal da USP internaArte: Moises Dorado / Jornal da USP

 

“Essa declaração do presidente, considerando o alcance que ele tem nas plataformas digitais, é algo sem paralelo na história do movimento antivacinas no Brasil”, diz o pesquisador João Rafael, analista de comunicação do Instituto de Estudos Avançados da USP em Ribeirão Preto (IEA-RP) e idealizador da União Pró-Vacina (UPV), uma iniciativa multi-institucional de monitoramento e combate à desinformação sobre vacinas.

A repercussão do episódio nas mídias bolsonaristas simboliza uma crescente incorporação do discurso antivacinas — antes restrito a pequenos grupos radicais nas redes sociais — por movimentos políticos mais amplos, com um poder de influência muito maior sobre a opinião pública e, consequentemente, sobre as políticas públicas de saúde relacionadas à imunização, avalia Rafael. O tema deixa de ser tratado como uma questão científica — que é a sua verdadeira natureza — para ser discutido como uma questão de ideologia política.

 

A maneira atravessada como a decisão da Anvisa chegou à sociedade — noticiada pela imprensa, na noite de segunda-feira, antes mesmo de a agência ter se reunido com o Butantan para discutir o assunto — também contribuiu para alimentar a polêmica, dando margem para todo tipo de especulações sobre a segurança da vacina e interferências políticas no processo. Em vez de uma comunicação oficial bem contextualizada, o que se viu no dia seguinte foi um confronto público de narrativas apresentadas pelo Butantan e Anvisa, ao mesmo tempo em que a imprensa revelava dados sobre a causa da morte do voluntário (um aparente caso de suicídio, ou overdose) e repercutia a fala de Bolsonaro no Facebook.

Não foi a primeira vez que Bolsonaro se referiu de maneira depreciativa à vacina do Butantan, que foi originalmente desenvolvida na China, pela empresa Sinovac, e está sendo testada agora no Brasil, em parceria com o instituto paulista. Cerca de 10 mil voluntários já receberam a vacina, que é considerada uma das mais promissoras no mundo para ajudar no combate à pandemia do novo coronavírus. O próprio Ministério da Saúde chegou a anunciar um acordo para a aquisição de 46 milhões de doses da vacina, em 20 de outubro, mas Bolsonaro desautorizou a compra no dia seguinte, dizendo que o povo brasileiro não seria “cobaia” da “vacina chinesa de João Doria”. Os ataques derivam do fato de os testes com a vacina no Brasil terem sido negociados pelo governador paulista, que se elegeu como aliado mas agora é adversário político de Bolsonaro.

 

Se as críticas até agora vinham embrulhadas numa conotação mais xenofóbica, no sentido de desmerecer a vacina pelo fato de ela ser chinesa, a declaração de que a CoronaVac pode causar “morte, invalidez, anomalias” eleva a gravidade do discurso a um patamar especialmente preocupante, segundo Rafael.

Ainda que os dados científicos e a cobertura da imprensa profissional desmintam sistematicamente essas afirmações, diz o pesquisador do IEA-RP, o simples fato de elas serem veiculadas na mídia contribui para pautar o debate social e semear dúvidas na opinião pública sobre a segurança da vacina. Ele compara o caso ao do médico britânico Andrew Wakefield, que em 1998 publicou um estudo fraudulento, dizendo que vacinas causavam autismo. Mesmo décadas depois de o estudo ter sido provado falso, o mito de que as vacinas podem causar autismo em crianças permanece vivo nos meios digitais e no imaginário popular.

Da mesma forma, mesmo que não haja qualquer evidência de que a morte do voluntário possa ter relação com a vacina, a simples suposição do fato já foi suficiente para suscitar diversas teorias especulativas (sem qualquer embasamento científico) de que a “vacina chinesa” poderia induzir à depressão e levar as pessoas a se suicidar. Teorias, essas, que poderão perseguir a CoronaVac por muito tempo, não importa quão descabidas sejam. “Esse pode ser o caso Wakefield do Brasil”, avalia Rafael.

O prejuízo não é só para a CoronaVac. “É claro que essa desconfiança vai respingar em outras vacinas”, diz o médico e pesquisador José Gallucci Neto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Querendo ou não, diz ele, o presidente está contribuindo para o crescimento do movimento antivacina no Brasil. “Qualquer discurso que gere uma hesitação da população em se vacinar pode se considerado parte do movimento antivacina”, diz. Especialmente, diz ele, quando esse discurso parte da autoridade máxima da nação. “Mesmo que não seja uma agenda explícita, ele está contribuindo para isso.”

A hesitação em se vacinar é classificada pela Organização Mundial da Saúde como uma das 10 maiores ameaças à saúde pública mundial. As vacinas previnem a morte de 2 milhões a 3 milhões de pessoas por ano, segundo a agência.

 

Isso tudo acontece num momento especialmente preocupante, em que a cobertura vacinal no Brasil já está abaixo da meta para diversas doenças infecciosas extremamente perigosas, como o sarampo, tuberculose e poliomielite. Um problema que vem se ampliando há cinco anos, e que tende a se agravar ainda mais este ano em função da pandemia, que manteve as pessoas afastadas do sistema de saúde. Segundo dados divulgados em outubro pelo Ministério da Saúde, as coberturas vacinais não atingem nenhuma meta no calendário infantil desde 2018.

Nesse cenário, há um risco cada vez maior do retorno de doenças já consideradas erradicadas pela vacinação, como já ocorre com o sarampo no Brasil. O discurso presidencial adotado nas últimas semanas, de questionar a obrigatoriedade da vacinação e levantar dúvidas sobre a segurança das vacinas, só piora essa situação.

Panorama global

A CoronaVac é apenas uma entre 12 vacinas contra a covid-19 que passam atualmente pela etapa final de testes em seres humanos (a chamada Fase 3). Esses testes são feitos com milhares de pessoas, em vários países, justamente para testar a segurança e a eficácia de cada vacina, e é absolutamente normal que os projetos sofram paralisações temporárias para a avaliação de possíveis efeitos adversos — que podem ou não ter relação com a vacina.

Além da CoronaVac, três outras vacinas estão em teste no Brasil, com aval da Anvisa. Uma delas, patrocinada pelo governo federal, foi desenvolvida pela empresa AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford. As outras duas são das empresas Pfizer e Janssen. Os testes da vacina da AstraZeneca/Oxford e da Janssen também sofreram paralisações para averiguação de efeitos adversos, e depois foram retomados.

Importante enfatizar que uma vacina não substitui a outra. Especialistas ressaltam que nenhuma dessas vacinas será capaz de frear a pandemia sozinha, no curto prazo; e ter mais de um imunizante disponível será essencial para proteger o maior número de pessoas, o mais rápido possível, e alcançar a tão desejada imunidade coletiva (“de rebanho”). A conclusão dos testes clínicos e a aprovação dessas vacinas — se comprovadas sua eficácia e segurança — são o único caminho para a superação definitiva da pandemia. Que isso ocorra no menor tempo possível é a esperança de todos nós.




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