logo seesp ap 22

 

BannerAssocie se

19/04/2021

De Matrix à realidade: a inteligência artificial criada pela ciência

A história da IA começa há 77 anos com pesquisas para modelagem de neurônios artificiais.

 

Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
A
tualização 20/4/2021.

 

É provável que as máquinas se tornem mais inteligentes que os seres humanos? O cientista da computação e professor na Universidade Sorbonne, em Paris, Jean-Gabriel Ganascia, em artigo publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), responde categoricamente que não. A questão, todavia, está longe de um consenso. O fato é que a inteligência artificial (IA), que entendemos como uma máquina que imita os humanos, virou quase um lugar comum no dia a dia das sociedades. Por isso, ela está presente em produções cinematográficas, do cult “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, de 1968, com o ameaçador computador HAL 9000, à “Matrix”, dos irmãos Lana Wachowski e Lilly Wachowski, de 1999. Esta última, inclusive, é a favorita do professor e pesquisador Alexandre Barbosa de Lima, que, hoje, se dedica ao pós-doutorado no Departamento de Energia e Automação da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), que nos ensina: “Matrix quer dizer útero, em latim.”

 

Matrix 3Cenas do filme Matrix. Reprodução da internet.

 

Fã incondicional da película estadunidense, o docente inicia a série especial sobre inteligência artificial, que será desenvolvida pela área Oportunidades na Engenharia, do SEESP. A IA tem mais de 70 anos de história que congrega muita pesquisa, experiências, estudos, diversos saberes. Para Lima, a questão realmente suscita reflexões filosóficas, como ele define. Por isso, ressalta, a ética e o compromisso com o bem da humanidade devem ser fundantes na atuação no campo da IA. “O filme Matrix aborda a questão da singularidade: será que as máquinas podem realmente pensar? Isso está em aberto. Há opiniões divergentes”, observa.

 

Nesta entrevista especial, o docente traz um breve contexto histórico dos primeiros passos da IA até os dias de hoje, e como essa construção não se dá apenas por uma pessoa; fala sobre os três pilares básicos, das tecnologias e dos usos da IA.

 

350 Alexandre Lima PoliUSPProfessor Alexandre Barbosa de Lima. Foto: Acervo pessoal.Todos falamos de inteligência artificial, o que também gera muita confusão e distorção. Como surge as primeiras pesquisas nessa área? O que ou “quem” ela é?
A história da IA é muito longa, tem 77 anos. Ela começa na década de 1940 com a gestação desse novo campo do conhecimento. Dois pesquisadores, o neurocientista Warren McCulloch [1898-1969] e o matemático Walter Pitts [1923-1969], em 1943, propuseram um modelo de neurônio artificial, o MCP [das iniciais dos pesquisadores, McCulloch e Pitts]. Foi uma contribuição seminal. Durante esse período, tivemos muitas contribuições, como a do psicólogo Donald Hebb [1904-1985] que demonstrou uma regra de atualização simples para modificar as intensidades de conexões entre neurônios, em 1949, regra conhecida aprendizado hebbiano, muito influente até hoje.

 

Por volta de 1950, dois alunos de Harvard, Marvin Minsky [1927-2016], conhecido como um dos “pais” da inteligência artificial, e Dean Edmonds construíram o primeiro computador de rede neural do mundo, o Snarc. Ele usava três mil válvulas eletrônicas e um mecanismo de piloto automático retirado de um bombardeiro B-24 e simulava uma rede de 40 neurônios. Nessa época, tivemos o trabalho do grande matemático Alan Turing [1912-1954] que escreveu, em 1950, o famoso ensaio Computing machinery and intelligence, em que ele apresenta um teste comportamental para a inteligência, chamado de jogo da imitação.

 

São diversas as contribuições ao longo desse tempo de muitos pesquisadores. Mas quando podemos atribuir o nascimento da IA?
O nascimento da inteligência artificial se dá, em 1956, quando o pesquisador John McCarthy [1927-2011] reúne Marvin Minsky, Claude Shannon [1916-2001] – considerado o pai da teoria da informação – e o cientista da computação Nathaniel Rochester [1919-2001], da IBM, num seminário de dois meses, na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire, Estados Unidos, no verão de 1956. A IA nasce oficialmente nesse momento. Eles assumiram uma hipótese – que os filósofos chamam de inteligência artificial fraca – baseada na pergunta: as máquinas podem simular a inteligência? Eles assumiram que sim.

 

Desde o início, a IA abraçou a ideia de reproduzir faculdades humanas, como criatividade, auto aperfeiçoamento e uso de linguagem; até por isso ela se tornou um campo separado da computação. Ela se propõe a construir máquinas que funcionarão de forma autônoma em ambientes complexos e mutáveis.

 

Dos anos 1950 a 1960, foi uma época de grande entusiasmo e expectativas em que a IA teve muito sucesso. Em 1952, outro pesquisador da IBM, o engenheiro Arthur Samuel [1901-1990], o pai da machine learning (aprendizado de máquina), escreveu uma série de programas para jogos de máquinas que eventualmente aprenderam a jogar num nível elevado.

 

A IA se baseia em quais pilares da inteligência humana?
A inteligência artificial funciona a partir de três blocos básicos: conhecimento, que é a representação do mundo; raciocínio, que é manipulação da representação; e a tomada de decisão. Três blocos construtivos: conhecimento, raciocínio e decisão.

 

Quais outros marcos importantes da história da IA?
A literatura fala que, a partir de 1987, a IA se torna uma ciência porque passou a adotar o método científico. Este ano passa a ser o marco temporal da IA como ciência. Agora é possível replicar experimentos a partir da utilização de repositórios compartilhados de códigos e dados de teste.

 

Outro marco, foi o formalismo denominado rede bayesiana que é a representação eficiente do conhecimento incerto – vivemos um mundo incerto – talvez tenha sido esta a causa do fracasso de abordagem puramente lógica. Vivemos num mundo randômico, então uma abordagem puramente determinística, a meu ver, está fadada ao fracasso.

 

No final da década de 1980, surgem as redes bayesianas que permitem a representação eficiente do conhecimento incerto e isso é o estado da arte, domina a pesquisa da IA até hoje sobre raciocínio incerto. Hoje, o core, o núcleo da IA, é a técnica deep learning [Métodos de Aprendizado Profundo], que são redes neurais de múltiplas camadas, tipicamente de 100 a 150. Um dos pais desse método foi o engenheiro eletricista francês Yann LeCun, Prêmio Turing em computação de 2018.

 

O deep learning – rede neural artificial – surgiu entre os anos 2000 e 2010, fazendo explodir o interesse pela IA, porque alcançou um desempenho excepcional na classificação de imagens super humana; reconhecimento de voz em nível quase humano; transcrição de escrita à mão quase humana; tradução automática; conversão de texto em fala; assistente digitais como a Alexa, da Amazon; condução autônoma de veículos em nível quase humano; segmentação de anúncios usado por empresas como a Google; desempenho super humano em jogos digitais de xadrez; capacidade de responder perguntas em linguagem natural.

 

Em resumo: já passamos por dois invernos de IA. Hoje existe um grande entusiasmo, mas acho difícil termos outro inverno, pois estamos hoje na era do big data. Temos uma disponibilidade de dados muito grande, com o advento da web. Existem artigos científicos que mostram que, com a web, com essa fartura de dados, passamos a ter ênfase nos dados e menos exigência e ênfase no algoritmo. Isso porque com os dados eu consigo fazer o aprendizado de máquina, passar para o meu programa, o agente inteligente, uma representação de mundo de alguma maneira computacional e preencho uma lacuna que a primeira década da IA não conseguia. Por isso, que o machine learning, mais especificamente o deep learning, é estratégico. Não é à toa que temos uma explosão de IA hoje em dia porque temos uma fartura de dados.

 

Como separar ficção, que está muito presente em filmes, como “Matrix”, “Eu, Robô”, “Blade Runner” etc. –, e realidade no caso da IA?
Essa questão está muito ligada a questões filosóficas. O engenheiro e o cientista da computação estão preocupados em fazer a IA funcionar. No caminho filosófico é preciso considerar o que significa pensar e se os artefatos podem e devam fazê-lo. O filme Matrix, o melhor que já assisti, aborda a questão da singularidade: será que as máquinas podem realmente pensar? Isso está em aberto. Há opiniões divergentes. É um tema que realmente desperta atenção e preocupação.

 

Matrix trata da questão das máquinas ultra inteligentes. Nele, ocorre uma singularidade tecnológica que é uma explosão de inteligência quando, num dado momento da história humana, alguém projeta uma máquina ultra inteligente que projeta máquinas ainda melhores que superam, de longe, todas as atividade intelectuais de qualquer homem inteligente deixando o ser humano para trás. As máquinas dominam a humanidade.

 

Matrix é um filme muito bem feito e isso é tratado na literatura. Ele traz a história do cérebro numa cuba. Pegam seres humanos e simulam uma realidade, que lembra o mito da caverna de Platão onde as pessoas pensam que estão vivendo uma coisa, uma realidade simulada. Matrix é útero em latim.

 

Matrix utero 2Cena do filme Matrix, que quer dizer útero em latim. Imagem reproduzida do filme.


Hoje, existem sistemas especialistas que demonstram alguma inteligência. Isso pode ser visto com o robô Atlas, da Boston Dynamics, que demonstra comportamento inteligente com as aplicações do deep learning. Já existe algum comportamento inteligente na execução – coisas que humanos fazem - muitas vezes melhores do que os humanos fariam como a classificação de imagem nível super humano.

 

Existe a hipótese de IA fraca. Podemos simular inteligência? Essa é a premissa do nascimento da IA, em 1956, que eles assumiram como verdadeira. E a premissa da IA forte: as máquinas podem pensar. Tem gente que acredita nisso. Do ponto de vista do engenheiro isso é transparente. Se a máquina vai pensar ou não – queremos fazer algo que demonstre inteligência. 

 

A impressão que temos é que a IA é independente da inteligência humana.
Como vou implementar um agente inteligente num computador mimetizando algo que não sei como funciona? Na verdade, não sabemos como o cérebro ou a mente humana funciona. A teoria Monista da mente diz que o cérebro gera a mente; e tem a teoria dualista [dois tipos de fundamento: mental e corporal], de [René] Descartes.

 

A consciência é um mistério até hoje, mesmo com os avanços da neurociência. A IA, hoje em dia, está dissociada de como funciona a inteligência humana, procuramos construir agentes inteligentes. Até porque não sabemos como funciona na totalidade a mente. Dizer que alguém compreende totalmente o que é a mente é falso.

 

Quais são as tecnologias por trás da IA?
A abordagem lógica sempre estará presente, mas isso nem conta como tecnologia. Mas vamos às tecnologias. Pela abordagem de inteligência computacional os três pilares seriam: as redes neurais – o deep learning, que usa o cérebro humano como fonte de inspiração e de capacidade de aprender e generalizar a partir de exemplos; os sistemas Fuzzy – sistemas nebulosos utilizados para o raciocínio onde é usada a linguagem humana como fonte de inspiração e modelam a imprecisão linguística e resolvem problemas incertos a partir de uma generalização da lógica tradicional, permitindo a realização de raciocínios aproximados.

 

Outra tecnologia importante é a computação evolucionária onde é usada a evolução biológica como fonte de inspiração resolvendo o problema de otimização. Ela inclui algoritmo genético, programação evolucionária, estratégias de evolução, programação genética, inteligência de enxame, hardware evolutivo etc. Tem também as redes bayesianas e outras relacionadas à economia, muito importantes para a tomada de decisões, teoria de jogos, teoria da utilidade.

 

hal9000 HAL 9000, o computador central que a tudo vê e tudo controla do filme "2001: Uma Odisseia no Espaço".

 

O cenário de “Matrix” traz um futuro sombrio com os humanos escravos das inteligências artificiais. Isso é possível ou não?
Será que o sucesso da IA poderia significar o fim da raça humana, com livre arbítrio e independência, como no filme Matrix? Quase toda tecnologia tem potencial para causar danos em mãos erradas. O assunto é altamente especulativo, mas precisamos conversar sobre isso.

 

O que seria explosão em inteligência? Ocorreria quando uma máquina inteligente pudesse projetar outras máquinas melhores ainda e a inteligência do homem ficaria para trás. Desse modo, a primeira máquina ultra inteligente seria a última invenção do homem.

 

Essa explosão em inteligência foi chamada de singularidade tecnológica, em 1993, pelo professor Vernor Vinge. Este assunto está em aberto, não sabemos se poderá ocorrer. O que sabemos é que existem limites sobre computabilidade e complexidade computacional. O professor Vernor disse, em 1993: “Dentro de 30 anos teremos os meios tecnológicos para criar uma inteligência super-humana.”

 

O engenheiro, principalmente quem está no campo da IA, precisa estar atento às implicações ética do seu trabalho. Não são preocupações laterais e não significativas. O engenheiro quer que um equipamento ou artefato funcione sim, mas não pode perder a noção ética de que o trabalho, qualquer que seja em IA, deve visar o bem da humanidade. O cenário do filme Matrix não é impossível, ele é plausível. É o cenário da simularidade, e sombrio.

 

Como evitar o cenário de Matrix? Essa deve ser uma preocupação dos profissionais de engenharia, levando em conta as três leis da Robótica de Isac Asimov [confira no quadro abaixo].

 

IsacAsimov

 

Lido 8302 vezes
Gostou deste conteúdo? Compartilhe e comente:
Adicionar comentário

Receba o SEESP Notícias *

agenda