Renato Vargas*
São raros os espaços concedidos para discussão sobre o significado da função social dos engenheiros em um país com dimensões continentais, imensos problemas políticos e econômicos e uma sociedade marcada pela desigualdade. Nestes países, as suas atribuições vão além do tecnicismo e das demandas empresariais, e a reflexão sobre a relação da engenharia e o seu contexto social é obrigatória. Ou, pelo menos, deveria.
No Brasil, poucos grupos subsistem nesta área por meio do esforço obstinado de alguns professores na geração de subsídios teóricos e criação de espaços de discussão para reflexão deste tema fundamental na formação dos engenheiros.
O NEPET (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica), criado há 30 anos na Universidade Federal de Santa Catarina (http://www.nepet.ufsc.br) é um profícuo núcleo de geração de conhecimento e continuamente instiga os alunos de engenharia a despertar para a necessidade de formação de uma engenheiro reflexivo e consciente de sua responsabilidade social por meios dos estudos de CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Desta forma o professor Walter Bazzo defende o estudo do tema CTS: “Entender ciência e tecnologia como processos sociais que respondem em parte por valores e interesses externos e que têm um considerável interesse público pelas consequências que deles derivam é também, em qualquer país em que a palavra democracia goza de algum sentido, defender a renovação dos tradicionais conteúdos educativos e a transformação das atuais estruturas políticas. Só desse modo é possível promover uma gestão informada e participativa das mudanças científico–tecnológicas” (Bazzo, 1998)
Outro grupo fundamental na manutenção de discussões sobre as implicações sociais da tecnologia e da engenharia e a sua relação com o contexto social é o Centro Interunidades de História da Ciência da Universidade de São Paulo (http://www.usp.br/chc/), que sob a direção do professor Shozo Motoyama, durante mais de 30 anos promoveu intensos debates e a publicação de dezenas de livros. Há mais de 15 anos, em uma chamada para um dos inúmeros seminários para a discussão do tema manifestava as suas preocupações com o avanço da cibernética: “É possível desenvolver um país – em especial o Brasil – em um mundo opressor e interligado como o dos dias de hoje? Como se livrar da prepotência das redes de internet espalhadas como tentáculos a esmagar qualquer movimento perturbador da ordem internacional estabelecida? Como fugir do avassalador domínio das tecnologias avançadas que impõe o toque de recolher aos excluídos da ciência? Como escapar ao rolo compressor das potências que não admitem outra lógica a não ser a sua? Esses são os desafios que se colocam para aqueles que aspiram a um mundo melhor, sobre tudo, de um Brasil melhor. É necessário pensar no desenvolvimento – no sentido pleno da palavra – aproveitando-se das benesses da globalização e não ficar à mercê apenas de suas mazelas. E, nesse contexto, qual o papel da ciência e da tecnologia?” (Motoyama, 1995)
Na virada do milênio algumas escolas se dispuseram a discutir a “engenheiro do século XXI” tentando refletir as novas demandas da modernidade na sua grade curricular. Nesta época, um artigo em co-autoria do professor Gildo Magalhães e Renato Vargas, integrantes do grupo do CHC, diante da proposta de aprofundamento do conteúdo técnico que era aparente nas manifestações das escolas de engenharia no Brasil, marcavam a sua posição sobre os novos desafios para a formação dos engenheiros: “Não já dúvida de que a prosperidade da nação dependerá fortemente da capacidade de seus engenheiros conseguirem relacionar os conhecimentos técnicos com a compreensão da sociedade, bem como da política, economia e meio ambiente. A prática da engenharia requer a síntese e aplicação do conhecimento adquirido num grande número de campos técnicos e não-técnicos, todos num contexto de pressões sociais. Por este motivo, a crescente especialização técnica se opõe à natureza complexa e transdisciplinar de uma resolução satisfatória dos problemas que a engenharia contemporânea exige (Magalhães, Vargas; 1999)”.
Passados mais de 20 anos deste artigo e nada foi feito e ocorreu a consolidação de conteúdos refratários ao estudo das humanidades por meio de reformas curriculares “para adequação ao mercado”, ao mesmo tempo em que a criação de escolas de engenharia particulares embaladas por estas reformas tomou uma escala exponencial. Na realidade, houve um retrocesso se lembrarmos que os professores Milton Vargas e Villen Flusser, docentes da Escola Politécnica da USP, há mais de 50 anos ministravam disciplinas de humanidades com conteúdo social e filosófico para os politécnicos (Vargas,1994).
A atual crise político-econômica do Brasil é um produto da imaturidade e da frágil formação política e social de suas elites perdidas em seus interesses imediatistas. Neste momento, mais do que competência técnica, os órgãos de classe e as escolas de engenharia têm a responsabilidade pela formação de cidadãos conscientes de suas atribuições sociais e capacidade crítica para estabelecer respostas e encaminhar soluções. Somente com uma Engenharia consciente de sua função social e comprometida com a formação de engenheiros aptos como cidadãos poderemos entender as implicações de nossa efetiva participação no processo de desenvolvimento do país.
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BAZZO, W. A., Ciência, Tecnologia e Sociedade, 2015. 5° Edição.
MOTOYAMA, S. (1995), Educação Técnica e Tecnológica em Questão, Editora Unesp, São Paulo, SP.
MAGALHÃES, G. Vargas, R. T., Uma Reforma “Radical” das Escolas de Engenharia, Congresso Brasileiro de Engenharia Mecânica, 1999.
VARGAS, M. (1994) Para uma Filosofia da Tecnologia, Editora Alfa Omega, São Paulo, SP.
*Renato Vargas é engenheiro mecânico com mestrado e doutorado em Engenharia Mecânica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP); diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda (NEP); coordenador da Relief, plataforma EAD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural por elementos finitos.