Renato Vargas*
Recomendo a todos os engenheiros a concessão de um pequeno espaço de tempo para outras áreas de conhecimento e, em especial, às artes. São visões e formas de expressão diferentes da realidade que podem estimular a nossa sensibilidade para a adoção de abordagens alternativas às metodologias tradicionais empregadas na solução dos problemas de engenharia.
Pois foi em um destes momentos que me permiti a seguinte conjectura: fosse um engenheiro, Graciliano Ramos encerraria as melhores qualidades. Sua literatura simples e generosa, propõe e resolve questões da vida cotidiana, sem renunciar à profundidade e à beleza. O texto límpido, despido de qualquer adereço, consegue nos transportar ao sertão em apenas um parágrafo e, na frase seguinte, já estamos na companhia de Fabiano e baleia, atravessando as trilhas demarcadas pelos mandacarus para cumprir a sina dos retirantes nordestinos (Ramos;1938). Seus livros marcados pela síntese e a clareza – exaustivamente trabalhadas – são fontes de aprendizado para qualquer profissão. Como a dos engenheiros, que se inicia com o esforço para reunir o máximo de conhecimento para entender uma determinada situação e sintetizar um modelo que permita alcançar soluções factíveis mediadas pela simplicidade, para manter todo o processo nos limites do entendimento dos envolvidos em um projeto. O simples, como o resultado de fatores complexos pensados, refletidos, no contínuo refazimento, até a extração daquilo que uns dos maiores engenheiros, Leonardo da Vinci, um dia definiu: “o simples é o auge da sofisticação”.
Por que retomar este tema? Porque na sociedade em rede do mundo informacional, onde no dizer de Umberto Eco (1932-2016) “as mídias sociais deram voz a uma legião de imbecis”, o simples está sendo confundido com o simplório. As facilidades para publicar nas mídias sociais, fazer uma live ou ainda promover um curso à distância são responsáveis por uma produção de informações sem precedentes. Até aí, poderia fazer parte de um processo salutar para a sociedade na medida que disponibiliza conhecimento e democratiza os meios de comunicação. Mas ocorre um problema: poucos possuem a formação necessária para falar sobre os temas com responsabilidade, e, portanto, ocorre a profusão de informações falsas ou de conteúdo leviano estimulados pela busca de soluções mágicas descomprometidas com o estado da arte do assunto. Ao mesmo tempo, o critério de aceitação deste conteúdo baseado fundamentalmente sobre a contagem de visualizações considera elementos de empatia e verbalização que estão mais conectados à forma do que ao conteúdo. A informação foi banalizada e rebaixou o nível dos debates por meio da construção de palpites baseados em argumentos duvidosos que criam a ilusão de manifestação e participação. Mas não vai além da ilusão, porque aquela informação não está conectada a um corpo de conhecimento metodológico e não ultrapassa os limites do simplório, que ganha sentido apenas por meio de lógicas conectadas ao imediatismo do mercado. Para fechar este quadro preocupante está a ausência de mecanismos sociais e legais para a responsabilização sobre as informações falsas e a impunidade é uma rotina. É bom lembrar que este processo não pode ser considerado um imprevisto porque já nos anos 60, o educador e filósofo da cibernética, Marshall McLuhan (1911-1980), antecipava a supremacia dos meios sobre a mensagem.
Evidentemente, era uma questão de tempo a Engenharia tornar-se vítima deste processo também. Para tratar deste assunto vou descrever um caso tragicômico que testemunhei há um par de anos. Na época fui convidado para participar de um seminário sobre "Democratization na Área de Tecnologia CAE*" realizado por uma empresa representante de um programa. Esta nova onda propõe que os usuários dos programas CAE não necessitem de conhecimentos teóricos, porque seriam um encargo dos acadêmicos e, portanto, suas atividades seriam restritas à operação da ferramenta. Nesta quebra de requisitos o público usuário seria expandido exponencialmente e, naturalmente, um novo mercado estaria pronto para ser conquistado. A chamada do evento chamou a minha atenção porque havia um querido colega entre os palestrantes que, assim como eu, é intransigente na questão de que a tecnologia CAE – assim como qualquer tecnologia – deve estar associada aos fundamentos teóricos. Antes da palestra troquei um par de palavras com este colega, suficientes para entender que não estava ciente do tal conceito de democratization. Bom, ele tomou a palavra e, em perfeito desacordo com o título da palestra, falou o que pensava, e o organizador – que também ignorava o conceito – assim como todos os participantes, gostaram da palestra e tudo se concluiu em um almoço animado. Verdadeira marcha da insanidade que, infelizmente, acontece com frequência quando importamos ideias e informações sem nos preocuparmos em aprofundar os conceitos. Este caso é uma versão simplória de uma ideia enviesada pela abordagem comercial no mínimo questionável. Desta confusão, que sempre foi presente, pouco se salva. A sedução das mídias, as promessas de “ferramentas inovadoras”, o recorrente apelo para pensar “fora da caixa” e o emprego de técnicas milagrosas aplicadas indiscriminadamente na solução de todo o tipo de problema tecnológico apenas constroem uma ilusão do simples e entregam-nos o simplório, adiando e confundindo a formação de um engenheiro e, portanto, acomodando a nossa histórica dependência das correntes tecnológicas provenientes dos países desenvolvidos.
Separar as boas informações e manter a distância segura de uma avalanche de conteúdo falso ou sem fundamentos passou a constituir uma tarefa árdua e um exercício de paciência. Buscar o entendimento dos problemas nas contínuas investigações, estudos e testes, refazendo premissas, avaliando critérios é um processo trabalhoso, mas constrói o simples e aproxima da solução. Ignorar este trabalho é ceder ao simplório.
Recorro à bela imagem descrita nas palavras do mestre Graciliano sobre o ofício de escrever, uma lição que pode ser estendida para qualquer profissão, até mesmo para a nossa maltratada engenharia.
“deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá do Alagoas fazem o seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja, na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois enxáguam, dão mais uma molhada agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para ser dita”.RAMOS, G., Vidas Secas, Ed. Record, 1938.*A tecnologia CAE (Computer Aided Engineering) é constituída por programas baseados em formulações teóricas implementadas por meio de métodos numéricos – em especial elementos finitos - para a solução de problemas de engenharia. *Renato Vargas é engenheiro mecânico com mestrado e doutorado na área pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda. (NEP) e coordenador da Relief, plataforma EAD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural por elementos finitos.