Já existem movimentações para que o ESG não seja uma escolha, mas uma obrigação das empresas.
Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
Da primeira revolução industrial, no século XVIII, aos tempos contemporâneos, os modos de produção passaram por muitas mudanças tecnológicas. Por isso, não dá para prosseguir num molde produtivo que exaure a natureza e coloca em risco a sobrevivência humana. A questão se apresenta com mais protagonismo com a nova abordagem que avalia até que ponto uma empresa ou corporação trabalha em prol de objetivos sociais e ambientais, representada pelo padrão ESG, acrônimo em inglês para as palavras environmental, social and governance, ou, em português, ambiental, social e governança.
O que está colocado para o mundo econômico, adverte a engenheira química Ana Luísa Mayumi, é que a mudança é necessária para a sobrevivência humana na Terra. Para além da maximização do lucro, o que está colocado é como prosseguimos com o estilo de vida da sociedade moderna. “Não podemos pensar em economia neutra, mas em economia regenerativa”, destaca.
Engenheira química formada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com MBA em Gestão e Tecnologia Ambientais pela Universidade de São Paulo (USP) e extensão em Business Sustainability Management pela University of Cambridge, Mayumi exerce a profissão voltada à consultoria em ESG.
Mayumi trabalhou como na ForFuturing, consultoria internacional focada em integração estratégica ESG em companhias e tem experiências em projetos nos setores de transporte, energia, químico e financeiro. Atualmente, trabalha como gestora de projetos no Quintessa, aceleradora de impacto.
Paralelamente as essas experiências, a engenheira se desenvolve nos temas de empreendedorismo e impacto por meio de voluntariado na ONG Litro de Luz Brasil, atuando como coordenadora geral da célula de São Paulo, e membro do Global Shapers- Hub de São Paulo.
Nesta entrevista especial, a engenheira descortina todos os aspectos importantes para que a prática ESG seja verdadeira e não apenas uma peça de marketing positivo. A transparência, para ela, é a palavra-chave de uma estratégia que deve envolver respeito à natureza, à sociedade. “Só se faz isso reunindo todos os atores sociais envolvidos para um grande e sincero diálogo, afinal, estamos falando do futuro de todos nós”, ensina.
Associar engenheira química a processos sujos e poluentes é muito comum, porque a primeira imagem que nos vem à mente é um chaminé saindo fumaça. Isso foi de fato uma realidade e, infelizmente, ainda é a regra.
Desde a primeira revolução industrial, na metade do século XVIII, realmente tivemos diversos acidentes industriais, mas não só. A sociedade por muitas vezes foi impacta e sofreu os acidentes para além dos muros das fábricas que estão na história da civilização moderna. Cito o caso do famoso smog quando milhares de pessoas, em Londres, na Inglaterra, morreram de falta de ar por causa dos particulados no ar. Aprendemos sobre isso na nossa vida e na escola, principalmente.
Smog
O Nevoeiro de 1952, conhecido também como Big Smoke, foi um período de severa poluição atmosférica, entre os dias 5 e 9 de dezembro de 1952 que encobriu a cidade de Londres. O fenômeno foi considerado como um dos piores impactos ambientais até então, sendo causado pelo crescimento incontrolado da queima de combustíveis fósseis na indústria e nos transportes. Acredita-se que o nevoeiro tenha causado a morte de 12.000 londrinos, e deixado outros 100.000 doentes.
Mas a tecnologia vem avançando e nos permitindo conhecer, com mais precisão e certeza, os impactos e resultados que os processos industriais geram. Sabemos, agora, que se se queima muito combustível vamos ter muito material particulado no ar, muito monóxido de carbono. Isso foi se aprendendo ao longo da história.
Hoje, temos muita informação sobre gases de efeito estufa e quais as consequências mundiais desse tipo de ambição. Temos tecnologia para medir o quanto está se emitindo e contabilizar tudo, não só nas emissões de gases, mas nos efluentes líquidos. Temos tecnologia, insisto, para sabermos o impacto de todas as atividades econômicas.
É uma consciência importante para tangibilizar qual o custo que estou criando com a minha produção. Ou seja, é crescente vermos um mercado mais preocupado com o que produz e como. Por exemplo, cada vez mais se fabrica plástico biodegradável ou verde proveniente de fontes renováveis, produtos de limpeza que não agridem a natureza. Hoje temos muita tecnologia disponível para se auferir e conhecer impactos e resultados.
Uma das ferramentas que gosto muito é a economia circular, na verdade, é uma filosofia. Ela mostra desde a retirada da matéria-prima da natureza, o círculo do processo, produção, venda, utilização do cliente e o descarte.
É no descarte que a economia circular se faz: é a matéria-prima que entra de novo numa cadeia produtiva, não apenas como resíduo. Exemplifico: na reutilização do plástico de uma garrafa de água sem rótulo, que não tem nada escrito, diminui a quantidade de resíduos não reciclados. Então, produzir coisas mais duráveis, fazer logística reversa com os resíduos, são outros exemplos da economia circular.
A legislação ambiental brasileira é um exemplo para que tudo seja feito respeitando o meio ambiente. A nossa lei é um exemplo. A questão se ela está sendo eficiente é outra história e envolve outros elementos.
As três partes principais do padrão ESG envolvem aspectos ambientais, sociais e de governança. Já na sua experiência e como consultora da área, quais os tipos de ações que as empresas devem adotar nesses três eixos? Você poderia trazer exemplos para cada um dos aspectos?
É difícil falar que existe uma regra em relação ao ESG. Mas acredito e pratico, como consultora, que a estratégia ESG não pode estar desvinculada da estratégia de negócio. Não podemos fazer ações sociais, de governança ou ambientais que não estejam vinculadas diretamente à atividade core e objetivos do negócio. Trago a prática da Natura: ela tem muitos produtos ligados à biodiversidade brasileira, ou seja, fazer ações sociais na Amazônia é uma questão importante para a empresa. Isso está conectado aos produtos dela, cujo propósito é ter a “cara” do Brasil. A Amazônia representa isso com muita força e originalidade. É um belo exemplo de conexão do ESG com as estratégias e o objetivo do negócio.
O que é mais visível, vamos dizer assim, para a sociedade na sigla ESG?
Acredito que o ambiental [Environmental] e o social [Social] são mais perceptíveis para os consumidores. A profusão do debate sobre as mudanças climáticas ajuda muito a ter mais esse olhar, sem dúvida nenhuma e isso é muito bom.
Trago exemplos porque talvez fique mais fácil entender. Então, quando uma marca de água ou de bebida vai falar sobre mudanças climáticas, o gancho é falar sobre o risco da falta do principal insumo dela, ou seja, a água; e não dar ênfase na produção ou na emissão de gases de efeito estufa, porque a quantidade dessa atividade comparada a uma fabricante de plástico, resina, cimento ou tinta, é muito menor. Ou seja, sempre conectar e trazer de novo o objetivo do negócio à estratégia ESG.
Quando falamos de qualquer tipo de bebida, a questão da água precisa estar relacionada a ações dessa empresa no meio ambiente, falar sobre o acesso à água potável e de qualidade pelas pessoas, preservação de aquíferos, rios e outras nascentes etc.
Já falar em governança é um pouco mais generalista. Mas, para mim, a governança parte de um princípio básico: transparência. Não adianta a empresa fazer diversas ações e não conseguir mostrar isso e não engajar os stakeholder, os colaboradores, o entorno da fábrica, a comunidade, os governos.
A transparência vai no sentido de mostrar o que se está fazendo, aonde a empresa já chegou e aonde ela quer chegar. Se ela está se comprometendo de verdade, ou se está fazendo apenas greenwashing.
Quando você é transparente se consegue falar e dialogar com diferentes atores para conseguir novas soluções e parcerias.
Greenwashing
Expressão em inglês que significa “maquiagem verde” ou “lavagem verde”. Figura de linguagem usada para definir marcas ou empresas que criam uma falsa aparência de sustentabilidade, sem necessariamente aplicá-la na prática.
O padrão de atividade econômica que conhecemos, desde a primeira revolução industrial até praticamente os tempos atuais, infelizmente, é o da superexploração dos recursos naturais, sociais e humanos, numa economia praticamente predatória. Você acredita que o ESG é uma inflexão desse paradigma verdadeiramente?
É uma pergunta difícil de ser respondida agora. Estamos no começo dessa mudança, que será gradual. Não será de uma hora para outra. Mas a estratégia ESG vem sendo muito cobrada pelo mercado financeiro, dos financiadores de grande parte das empresas, atualmente.
Se antes ter responsabilidade socioambiental era visto como filantropia, como custo e desvinculado do negócio, hoje ganha centralidade. No Brasil, estamos no começo dessa mudança. Repito: vemos o mercado financeiro sedento para falar sobre isso e exigir, mas as empresas estão correndo atrás para de fato atender a algumas demandas desses financiadores e desse capital.
A questão está colocada para todos: como fazer a transição da atividade econômica predatória para a regenerativa, e não neutra. É difícil? Mas não impossível. Basta colocar energia e dinheiro nos lugares certos.
Vejo que essa tendência está crescendo, mas, ao mesmo tempo, existe uma dualidade no ESG quando a empresa pensar ou numa vantagem competividade ou numa necessidade. As empresas terão de mudar sim por ser uma vantagem competitividade e por regulamentações ambientais que estão sendo criadas. Os países da Europa estão mais adiantados, acredito, inclusive já com o mercado de carbono regulado, os Estados Unidos também. Já o Brasil está em vias de mercado regulatório de carbono.
A gente percebe, então, que já existem movimentações para que o ESG não seja uma escolha das empresas, mas uma obrigação. Hoje, se entende essa prática como investimento, que tem retorno, e não apenas como um custo que não tinha retorno. O ESG está englobando todas essas práticas socioambientais e de sustentabilidade vistas como investimento, e não custo. Essa é uma importante inflexão que a prática traz, acredito.
Precisamos entender qual é o custo do carbono, da água, mas não como custo, mas como valor em termos de valoração do capital natural. Saber o quanto custa e os impactos de se jogar uma água suja [de um processo industrial] no rio vai. Pergunto: quanto custou o Rio Doce [MG] ter sido poluído pela Vale? E não estou falando em termos de multas aplicadas pelos órgãos públicos, mas estou falando das vidas que foram perdidas e de comunidades inteiras que perderam o seu trabalho. O quanto custa o acesso à água potável hoje para quem vivia às margens desse rio.
A natureza não tem e não coloca um preço na “prateleira” de quanto custam os seus recursos. Lá na frente, quando tivermos escassez de água, vamos sentir o custo vindo. E não estamos falando de longo prazo de cinco anos, mas de 30 anos. Qual a quantidade de água que vamos ter disponível para produzir para refrigerante, por exemplo? Qual a quantidade de terra produtiva disponível para plantar soja? Tudo isso vai precisar ser olhado de um ponto de vista de longo prazo maior, que não é financeiro, mas da sobrevivência do nosso estilo de vida como sociedade. Inclusive, recentemente o secretário-geral da ONU fez um discurso comparando a não atuação nas questões climáticas como um suicídio coletivo.
A declaração
António Guterres, secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), afirmou no dia 18 de julho último, na Alemanha que, sem ações mais efetivas contra as mudanças do clima, o mundo caminha para um “suicídio coletivo”.
Os ramos que estão mais propensos a adotar o ESG são os que têm ligação direta com o impacto socioambiental e conectados aos impactos à sociedade e ao meio ambiente. Outros ramos, como as indústrias química, de aviação, já são mais regulados há bastante tempo.
A prática ESG significa também um canal mais direto com a sociedade.
Acredito que a prática ESG seja um canal mais aberto com a sociedade. Não só empresa e sociedade, mas entre empresas. Precisamos da academia, do governo, do terceiro setor, da sociedade em geral pensando soluções para os desafios que estamos passando, sociais, ambientais e até políticos.
Colocar esses atores na mesma sala para conversar sobre isso é o primeiro passo à a transparência, com apresentação de relatórios de sustentabilidade e financeiro. E é importante seguir o dinheiro, ter metas. Ligar essas metas e métricas com o financeiro porque isso não para em pé. Não adiante ter uma meta de redução de custo e comprar de um fornecedor que se utiliza de trabalho escravo ou que não segue as legislações ambientais. Aprender a entender como essas metas financeiras de redução de custos e maximização de investimentos precisam respeitar as metas ambientais e sociais.
A prática ESG pode estar, por exemplo, numa atividade portuária, na indústria da construção civil, na extração de minério, na indústria do petróleo e petroquímica, na área de energia etc.?
Todos os setores citados na pergunta devem ter práticas ESG. Quando falamos de minério, quanta coisa usamos no dia a dia que vem da mineração? Alumínio, cobre e muitos outros metais. Tudo o que a gente olha e usa é proveniente dessas indústrias de bases, mas elas precisam ser mais sustentáveis e regenerativas.
Na construção civil, principalmente na questão do cimento, já vemos pesquisas de uso de biomassa ao invés de queima de coque. Muita coisa sendo pesquisada e já aplicada, a Votorantim [Cimentos] tem uma planta de cimento que usa a semente do açaí no lugar do coque.
Já a extração de minério é mais complexa. Muito se falou à época do acidente na barragem em Mariana [MG] que existiam outras maneiras de fazer a barragem, mas eram mais caras. Uma maneira era fazer uma pilha de rejeitos que fossem secos, o que reduziria a utilização da água e a poluição dos rios por aquele minério.
A indústria de petróleo e petroquímica é mais difícil de pensar. Mas a Braskem tem uma iniciativa grande de inovação aberta com startups para trazer novas soluções de plásticos biodegradáveis, de origem vegetal. Não deixaremos de usar o plástico, mas precisamos entender onde ele é vilão e pode ser substituído, como a sacolinha plástica de supermercado. Mas em outras situações ele é necessário. Por exemplo, no setor hospitalar não é possível voltar a usar seringas de metal, não faz sentido sanitariamente. Então, essa indústria vai ter uma mudança no foco onde o plástico é realmente necessário e onde não.
Ana Luísa, se você pudesse fazer uma “fórmula” química da ESG como seria?
Bem, uma “fórmula” combinaria cooperação – para não se pensar sozinho esses problemas –, inovação – tem muita gente fazendo coisa legal, precisamos de dinheiro para fazer tudo isso – e compreensão, trazer as pessoas para o centro sem esquecer que fazemos parte da natureza. Uma fórmula com as iniciais CIC.
Por fim, qual o país ou quais os países em que o padrão ESG já está mais avançado? E como estamos aqui no Brasil?
Depende de qual letra da sigla estamos falando. A Europa tem trabalhado isso de forma forte nas questões de transparência e governança. Os EUA, depois da eleição do [Joe] Binden, trouxeram um pouco mais de protagonismo para a questão, mas ainda estão atrasados. E o Brasil já foi, em outros tempos, exemplo de preservação, de combate à desigualdade, e não estou falando só em relação às empresas, mas tudo isso está muito ligada à política, pois o segundo setor sozinho não dá conta.
Precisa de legislação e respeito às leis para as coisas acontecerem, com uma maneira única de reportar e comunicar isso à sociedade. Tudo isso esbarra em legislação e em políticas públicas. Infelizmente, no Brasil ainda estamos numa fase de entendimento e ignição do que numa fase de escala e de aprofundamento e entendimento mais estruturado.