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28/06/2013

Opinião – Na contramão da perplexidade

O surgimento de perfis falsos do Movimento Passe Livre, apontado em reportagem do Globo de segunda-feira (24/6, ver aqui), deveria servir de alerta para as dificuldades e os riscos de mobilizações nesse ambiente fluido e permeável das redes sociais, já brevemente abordados neste Observatório (ver “Redes sociais, boatos e jornalismo“). O campo aberto pelo mundo virtual costuma ser enaltecido por suas potencialidades libertárias, mas também amplia exponencialmente a possibilidade de manipulação, essa tática tão antiga quanto a política. A intenção, nesses casos, é aumentar a confusão, como vem ocorrendo nesse momento particularmente sensível da vida nacional.

A reportagem indica, e uma olhada nas redes confirma, a maneira pela qual esses agentes – cuja origem não se dá a conhecer, pelo menos imediatamente – ajudam a embaralhar as coisas, alternando publicações legítimas da página verdadeira do MPL com mensagens que fogem às pautas originais, como o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o combate à PEC 37 e mesmo a esdrúxula convocação de uma “greve geral”, que já contava, na manhã do dia 24, com mais de 800 mil confirmações. (Reportagens e entrevistas publicadas sobre essa proposta, como fez o Estado de S.Paulo no sábado, 22/6, deram o perfil do organizador desse “evento”, mas foram incapazes de alguns questionamentos elementares, seja quanto à generalidade da pauta – “fim da roubalheira”, “punição para os corruptos” –, seja quanto ao perfil dos que aderiram à ideia: quantos serão trabalhadores?).

O cultivo do caos
Curiosa, entretanto, foi a interpretação do “especialista” convocado pelo repórter a falar sobre as consequências dos perfis falsos: ele considera que o fenômeno não tem “a menor importância”, porque, a partir do estopim – no caso, o movimento contra o reajuste das tarifas de ônibus –, as convocações deixaram de ser centralizadas:

“Agora não temos rebanhos. Temos interativismo, no qual cada pessoa comparece nos seus próprios termos e desobedece aos que querem mandá-la, compondo uma espécie de sistema nervoso fractal de imensas multidões. E temos a formação de um fenômeno chamado de enxameamento da população, ou swarming, que acontece quando distintos grupos e tendências, não coordenados explicitamente entre si, vão aumentando o alcance e a virulência de suas ações. E isso é bom, porque distribui a energia transformadora pela sociedade”.

Conviria indagar por que esses grupos rebeldes necessitariam utilizar perfis falsos para disseminar sua “energia transformadora”. Parece óbvio que a intenção é aproveitar-se das reações automáticas e irrefletidas incentivadas pelo ritmo veloz da internet e induzir a erro pessoas que pensam estar apoiando um movimento quando estão colaborando para algo que não sabem o que seja, o que apenas contribui para aumentar a sensação de caos a ser devidamente aproveitada por quem se esconde atrás dessas máscaras.

Referências para a credibilidade
A cacofonia própria das redes impõe, pelo contrário, tentativas de organizar esse caos, o que sempre foi tarefa do jornalismo, embora a grande imprensa não venha cumprindo esse papel, em parte porque – como se verá a seguir –, aparentemente deseja contribuir para ele. Reportagem do Estado de Minas (22/6, ver aqui) confirma que, de alguma forma, é preciso filtrar as informações: assim, um grupo de estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais criou no Facebook uma página dedicada à cobertura das manifestações, que, “em três dias, já contava com 65 mil seguidores”.

Além de divulgarem reportagens próprias e presenciais, procuravam checar a veracidade do que circulava nas redes e nos meios tradicionais (sites e portais jornalísticos e telejornais). “Como não havia fonte de informação mais concisa e confiável no Face, nos mobilizamos”, diz o estudante responsável pela iniciativa.

Ou seja: como sempre, de algum modo, é preciso estabelecer referências para a informação confiável, o melhor antídoto para o comportamento de manada – ou será enxame? –, irresponsavelmente enaltecido pelos entusiastas acríticos das redes.

“Coisas muito estranhas”
Na contramão do elogio à dispersão e à falta de foco das reivindicações, associadas à suposta – e reiteradamente aplaudida, inclusive pela mídia tradicional – inexistência de lideranças, o depoimento do professor Pablo Ortellado, em debate ocorrido no sábado (22/6), oferece argumentos bem fundamentados para a tentativa de compreensão desses dez dias que abalaram o Brasil e, de quebra, contraria a ideia de que a grande imprensa deixou de ser importante no mundo das redes – pelo contrário, ela conseguiu “ressignificar o movimento” e transformá-lo “no oposto do que era originalmente”.

Pablo começa pelo histórico das demandas pela tarifa zero, que foram crescendo diante da falta de sensibilidade do establishment político. Deixa claro que, desde o início, as mobilizações foram politicamente dirigidas pelo Movimento Passe Livre e aponta a evolução das manifestações, até começar a analisar os últimos acontecimentos.

“Na quarta-feira da semana passada [12/6] – parece um ano, parece lá atrás, mas foi semana passada – o Jornal Nacional fez uma matéria pedindo sangue. Pedindo ordem. (...) Na quinta-feira de manhã [13], dia da manifestação marcada pelo MPL, os dois editoriais da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo pediam sangue, pedindo o rigor da polícia. (...) Para a nossa polícia (...) isso é senha para violência irrestrita. (...) E havia uma mobilização muito grande, já superando os padrões brasileiros, e foi uma violência sem precedentes”.

Foi então que “coisas muito estranhas” começaram a acontecer, com a guinada radical do enfoque da mídia hegemônica. O professor não acredita que tenha sido por causa dos jornalistas agredidos – as empresas “não têm tanto cuidado assim com seus trabalhadores” – e insinua que “telefones tocaram” – como, de fato, costumam tocar em situações críticas.

Então Arnaldo Jabor, comentarista da Rede Globo que havia desqualificado o movimento, pede desculpas pelo “erro”; a Folha de S.Paulo publica editorial se retratando e, mais interessante – ou “estranho” –, a Veja sai com uma capa sobre “a revolta dos jovens” e indaga: “Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”. Foi então que surgiram “novas pautas”, inexistentes até então; e é aí que as mobilizações começam a perder o foco.

Ninguém está entendendo nada?
Pablo argumenta que era previsível um adensamento na passeata marcada para a segunda-feira (17/6), em São Paulo, por causa da indignação provocada pela violência policial na semana anterior, mas não se previa mais do que 40 mil pessoas na Paulista. Só que apareceram 100 mil: pessoas “completamente despolitizadas”, com “as pautas mais variadas”. Mais significativo: “Várias delas com cartazes com a listinha da Veja”.

Por isso o professor suspeita da articulação pelos tais telefones que possivelmente tocaram:

“Foi incrível a capacidade que os meios de comunicação tiveram em ressignificar um protesto popular por uma demanda socialista. A demanda do MPL é a tarifa zero, é transformar o transporte num direito universal gratuito. E foi completamente ressignificado. (...) Parece muito armado, porque houve uma mudança, (...) todos eles passaram a dizer: as manifestações são cívicas, são um exemplo de cidadania. Vocês já viram a imprensa falar isso?”

Junte-se a isso o aparecimento de “pessoas estranhas, fortes, com cabelo raspado”, que atraíram manifestantes para o prédio da prefeitura de São Paulo e começaram a vandalizar: “Durante duas horas e meia eles barbarizaram o Centro e a polícia não fez nada”.

O futuro em aberto

Para começar a entender alguma coisa é preciso prestar atenção a esse tipo de coincidências. Afinal, na origem estava um movimento de esquerda, que obteve enorme adesão e conseguiu uma significativa vitória, articulando objetivos de curto prazo – a revogação do aumento das tarifas – com os de longo prazo, pela transformação da sociedade em benefício de mais justiça e participação. “Mas hoje”, diz Pablo, “temos uma mobilização que não se desfaz e está pautada pelos meios de comunicação, e temos que entender como é que os meios de comunicação conseguiram transformar uma coisa no seu avesso”.

Ninguém sabe dizer para onde vão essas pessoas que, agora, estão nas ruas. Mas não é possível ignorar a quem serve a dispersão de objetivos, oportunamente confundida com o florescimento supostamente espontâneo de múltiplas demandas de cidadãos anônimos.

* por Sylvia Debossan Moretzsohn, jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. Artigo publicado originalmente no site Observatório da Imprensa




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