Anunciado com pompa pelos dois presidentes, o acordo remete às origens do Mercosul, criado como resultado da distensão entre Brasil e Argentina nos anos 80, após uma minicorrida nuclear na década anterior
Os governos do Brasil e da Argentina assinaram dia 3 um acordo para aumentar a cooperação na área nuclear e trabalhar em conjunto na engenharia de construção de dois reatores atômicos de multipropósito. À margem da 39ª reunião de cúpula do Mercosul, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Kirchner prometeram transferir mutuamente tecnologia no setor e fazer o desenho dos reatores em parceria - será construído um em cada país.
Anunciado com pompa pelos dois presidentes, o acordo remeteu às origens do Mercosul, criado como resultado da distensão entre Brasil e Argentina nos anos 80, após uma minicorrida nuclear na década anterior. O novo reator não tem relação com o projeto da Marinha brasileira para construir um reator em Iperó (SP), voltado ao desenvolvimento de tecnologia para o futuro submarino nuclear.
O objetivo dos dois novos reatores não será gerar energia elétrica. No caso brasileiro, o que se quer é ter produção local de radioisótopos, hoje inexistente. Trata-se da matéria-prima para medicamentos, usados principalmente com fins de diagnóstico em exames clínicos que envolvem tecnologia nuclear, como tomografias. O maior problema diz respeito ao fornecimento do isótopo molibdênio-99, que era importado pelo Brasil do Canadá.
A redução das atividades do reator canadense, nos últimos anos, gerou uma crise no abastecimento do insumo e o Brasil foi salvo graças ao envio de radiofármacos da Argentina, que hoje atende 30% das necessidades brasileiras, segundo um diplomata envolvido nas negociações. Outro uso dos radioisótopos foi no mapeamento do aquífero Guarani, quando eles foram injetados no leito subterrâneo para medir a extensão e a capacidade do reservatório de água.
O novo acordo de cooperação prevê troca de peças e de conhecimento tecnológico. Brasil e Argentina são os dois únicos países da América do Sul que já têm reatores nucleares para produzir energia, mas usam tecnologias completamente diferentes.
Em Angra, o urânio é enriquecido e a água usada no processo é natural. Na Argentina, que está atualmente construindo seu terceiro reator para geração de eletricidade, o urânio é natural e a água é pesada. O país vizinho está bem mais adiantado, no entanto, na produção de radioisótopos. Já vendeu, inclusive, reatores multipropósito para a Austrália, Argélia e Peru.
À primeira vista, o Brasil parece ganhar mais na cooperação, mas há benefícios mútuos. "Queremos aprender o que for possível sobre enriquecimento de urânio", disse o embaixador da Argentina no Brasil, Juan Pablo Lohlé. "Não se trata de ser fabricado, mas desenhado em conjunto", afirmou o chanceler Celso Amorim. Ele lembrou que a área nuclear é "pilar" das relações estratégicas entre os dois países.
Não foram divulgadas estimativas de custos dos reatores. Fala-se apenas em algo perto de US$ 500 milhões por unidade. Também não houve menção ao financiamento. O Ministério de Ciência e Tecnologia, no Brasil, já havia liberado recursos do orçamento próprio e de fundos à pesquisa para o projeto.
O acordo também prevê o fortalecimento da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc). A entidade é responsável por verificar o uso pacífico dos materiais nucleares. Foi a primeira organização conjunta entre Brasil e Argentina e é a única entidade bilateral do mundo a cuidar de salvaguardas nucleares. Nasceu em 1991, justamente o ano em que foi assinado o Tratado de Assunção, documento de criação do Mercosul.
Daniel Rittner, Valor Econômico
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