O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Crimes Cibernéticos, apresentado em 30 de março último, recomendou medidas e sete projetos de lei que podem significar ameaças aos usuários da internet, como cercear a liberdade de expressão, quebrar a neutralidade da rede e criar um clima de vigilância indiscriminada. O resultado do trabalho, instalado em agosto de 2015 na Câmara dos Deputados pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), atendeu a requerimento do deputado Sibá Machado (PT/AC).
Embora esteja em vigor desde 2012 a Lei 12.737, apelidada de Lei Carolina Dieckmann, que tipifica infrações como invadir computadores, violar dados de usuários ou “derrubar” sites, o parlamentar apontou a necessidade de se investigar o desvio de recursos de correntistas bancários e o tráfico de pessoas por meio da internet para justificar a CPI. Numa visão oposta a essa, o engenheiro Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR), especialista em internet, questiona a própria noção de crime cibernético: “Qual crime só é cometido na internet? A rede é um meio. É verdade que se praticado na internet tem maior potencial de abrangência, mas estelionato continuará sendo estelionato e assim por diante”, pondera.
Entre as medidas propostas no documento estão bloqueio de sites e aplicativos, requisição do endereço de IP sem a necessidade de ordem judicial e a tipificação de atos denominados “crimes contra a honra de maneira acintosa”. A comissão também fez recomendações a outros órgãos, como a indicação ao Conselho Nacional de Justiça para criação de varas especializadas com a mesma nomenclatura.
Um dos PLs mais polêmicos, excluído do rol de sugestões após pressão de deputados e dezenas de organizações da sociedade civil, previa a retirada, sem ordem judicial, de conteúdo considerado ofensivo à honra. Se mantida a regra, os provedores teriam que excluir o conteúdo em até 48 horas após serem notificados pelo ofendido; qualquer outro material igual ou semelhante que viesse a ser publicado também deveria ser retirado. “Esse PL impunha um monitoramento feito por grandes e pequenos provedores que teriam um custo alto, sem contar que estimulava o vigilantismo sobre a rede, o que o Marco Civil da Internet (MCI) proíbe”, afirma a advogada Flávia Lefèvre, da Associação Proteste, referindo-se ao artigo 3º da Lei 12.965/14, que garante a liberdade na internet e proteção da privacidade.
Ela ressalta ainda que tudo o que está sendo apontado pelo relatório já foi amplamente debatido durante o processo de aprovação do Marco Civil e continua em discussão na atual fase de sua regulamentação. “Existe ainda uma consulta pública que acabou de ser encerrada, em que diversas propostas foram apresentadas e o Ministério da Justiça está sistematizando”, explica.
Considerando desnecessária a aprovação de novos projetos de lei ou outras normas para regrar o uso da internet, Lefèvre aponta a indústria do copyright (direitos autorais) como grande interessada no resultado da CPI. Segundo ela, a indústria vem tentando interferir no processo desde a votação do MCI, defendendo a possibilidade de bloqueio de acesso a sites estrangeiros que supostamente disponibilizam conteúdo que infringiria direitos autorais.
Getschko, da NIC-BR, também aponta o risco de, a pretexto de se combaterem crimes cibernéticos, colocar-se por terra o esforço feito pela sociedade civil para aprovação do MCI: “Meu medo é que se você começa a rediscutir a lei inteira, esse pessoal (indústria do copyright) se aproveitará para alterá-la.”
Previsto para ser votado no plenário da Câmara no final de abril, o relatório da CPI foi questionado também pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), que apontou equívocos em propostas como a de que o IP seja considerado dado cadastral. Em nota, a entidade esclarece que “IP não é um número fixo que possa ser utilizado para identificação de um usuário, mas apenas um número de localização de uma máquina”, que pode ou não pertencer a um eventual criminoso.
Leia a nota do CGI sobre a CPI: http://goo.gl/CvOUpc
Acesso também sob risco
Enquanto a CPI dos crimes cibernéticos traz o fantasma do cerceamento à liberdade, outra ameaça pode deixar usuários sem acesso à internet. Isso porque as operadoras de telefonia podem começar a oferecer pacotes de internet fixa com limite de dados, a exemplo do que é feito na telefonia celular. Em dado momento, a velocidade seria reduzida ou simplesmente o acesso bloqueado. Após diversos protestos contra a medida, anunciada inicialmente pela Vivo/GVT, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou a suspensão da medida por tempo indeterminado.
Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR), explica o equívoco na proposta das operadoras: “O modelo da internet fixa é baseado em velocidade, em que você adquire uma banda passante, uma bitola de cano, por onde trafegam os dados que você quiser. No celular, tem uma estrutura invertida, é a telefonia que carrega a internet. Aí é natural usar as franquias sob a alegação de que não é possível garantir a velocidade porque a estrutura pode estar congestionada. Então, na telefonia móvel se vende quantidade, onde você compra três baldes de bytes ao invés de um cano de meia polegada.” Ele também rebate o argumento econômico das operadoras de telefonia, lembrando que o atual modelo brasileiro também é adotado em outros países. E compara a outras situações de consumo em que não se sabe se o serviço ou produto será mais ou menos usado, como rodízios em restaurantes, carros alugados e planos de saúde.
A Associação Proteste tem um abaixo-assinado para derrubar essa medida: Confira em http://goo.gl/ciV77f
Por Deborah Moreira. Matéria publicada, originalmente, no jornal Engenheiro, da FNE, Edição 168, de maio de 2016