A água sustenta a vida. Está aí o seu valor. É produto único e sem similaridade. O que dá valor a um bem ou a um insumo é a escassez. Mesmo sendo vital, quando um insumo é abundante, como ar, no sentido que excede a demanda interna e não pode ser exportado ou armazenado, o excedente vale zero. Não existe ninguém para comprá-lo. Quando pode ser estocado, a estratégia de valoração é retirá-lo do mercado.
Tem um aspecto interessante. A água pode tornar-se escassa no local onde ela é abundante.
Exemplo: o Rio Grande nasce na Serra da Mantiqueira, em Minas, ajuda a formar a represa de Furnas, deságua no Paranaíba para chegar ao Rio Paraná. A água de Furnas é usada para gerar eletricidade e o consumo urbano, então a água pode tornar-se escassa no local onde é abundante. E qual o seu preço? É o mesmo que as hidroelétricas pagam, quando captam a água para gerar eletricidade. Ou, então, o que pagam as empresas que abastecem os consumidores urbanos, quando captam a água. Como não pagam nada no momento da captação, o preço da água para agricultura é zero nesse caso. E se as represas estiverem vertendo água, além da quota mínima? Aí não existe escassez, e, portanto, nada há a pagar.
Além da complexa lei do mercado, a água, como recurso natural, tem muitos componentes e situações. Existe até o custo de oportunidade. No exemplo acima, há alternativas de uso. Obviamente, é mais lucrativo vender para quem paga mais. Num bem tão importante, saber quem paga mais é muito complicado. Digamos que a agricultura pague menos. Perderia a competição para outros usos, possivelmente com sérias consequências para abastecimento alimentício interno e as exportações.
A água para consumo humano é prioritária. Por isso, há leis, portarias, incentivos e proibições. É o caso típico das licenças para a irrigação. Como consequência, pode haver redução da produção e, num extremo, fome. Como avaliar isso? O mercado fornece apenas parâmetros, mas a decisão final lhe escapa. Quem fica com a decisão? A sociedade e, por fim, o governo por meio das instituições e regulações. Da mesma forma, a cobrança de tarifa de água na captação é competência do governo que pode se valer de leilões especialmente planejados. O que é raramente é praticado.
Argumenta-se que as hidroelétricas devolvem a água para o rio e, sendo assim, nada têm a pagar. Se na jusante das represas houver consumo humano, e a produção de eletricidade reduzir a água para consumo humano, caracteriza-se a escassez. Ainda há o fato de que as represas evaporam muita água que não forma nuvens nas regiões que interessam. Um dado: só a evaporação da represa de Sobradinho equivale à vazão outorgada do Rio São Francisco.
Quando inexistem as represas, havendo abundância de água, o preço para quem for captá-la é zero. Há celebrado teorema da teoria econômica que diz que, quando a quantidade disponível de um insumo excede seu uso, seu preço é zero. O teorema apenas capta e, muito bem, o significado de escassez. Por que pagar pelo excedente de um bem que superou o consumo? Quem tiver recursos pode comprar a sobra, desde que o bem não seja perecível, e vender no próximo ano. Isso é que se chama corretamente de especulação. Aí, o conceito de sobra é mal usado. Tem que incluir a demanda dos especuladores para medir corretamente a sobra.
As estatísticas mostram que a agricultura consome 70% da água usada pelo ser humano. E quanto do ar a agricultura consome? Ninguém fala disso, exatamente porque o preço do ar é zero. Antes de glorificar esse tipo de estatística, deveria ser salientado que, na maioria das situações, a agricultura não está competindo com alternativa. No caso, consome um bem cujo preço é zero. Ouço falar que o Brasil é grande exportador de água por ser grande exportador de produtos da agricultura. Ninguém se lembrou de perguntar quanto vale a água exportada. Na mesma linha de raciocínio, a agricultura é criticada por competir com a geração de energia. Uma verdade parcial. Cabe perguntar, se fosse o caso, o que é mais importante produzir — comida ou energia?
Há políticas para lidar com escassez de água que limitam o mercado, como cobrar tarifas mais elevadas dos que consomem acima de certo padrão e multas para o consumo exagerado. De modo geral, quando a escassez é crítica, usa-se o racionamento. Por ele, os mais pobres são os mais prejudicados. Também proibições, como o uso de água para irrigação, frequentam as agendas dos governantes, embora ineficientes. Se a escassez de água persistir, é melhor cobrar tarifa na hora da captação. É a forma mais eficiente de racionamento. Qual é o grande problema dessa política? Normalizada a chuva, o governo continuará a cobrar a tarifa. Por isso, essa opção é rejeitada.
A argumentação mantém fixa o valor da tecnologia. Há muitas inovações que têm enorme poder de economizar água como o plantio direto, pequenas represas, cultivares que consomem menos água. Exemplo: foi descoberto pelo Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia um gene que aumenta a tolerância à seca na cultura do café. E já existe tecnologia para transferir esse gene para outras plantas. Mais: há equipamentos de irrigação muito eficientes que consomem muito menos água que os em uso. Os irrigantes precisam de financiamento para comprá-los. O que faz a tecnologia? Liberta o homem dos grilhões do mercado e da natureza.
* Eliseu Roberto de Andrade Alves, pesquisador e fundador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), foi presidente da Embrapa e da Codevasf