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27/07/2016

Financiamento dos direitos à saúde e à educação: mínimos inegociáveis

Há um aprendizado histórico digno de nota na vivência da Constituição de 1988 pela sociedade brasileira: a prioridade do nosso pacto fundante reside na promoção democrática dos direitos fundamentais, com destaque para os direitos sociais, garantes de uma cidadania inclusiva e ativa. Justamente nesse contexto, o regime de vinculação de recursos obrigatórios para ações e serviços públicos de saúde e manutenção e desenvolvimento do ensino tem sido o mais exitoso instrumento de efetividade de tais direitos, ademais de evidenciar a posição preferencial ocupada pela educação e pela saúde na arquitetura constitucional.

No que concerne ao direito fundamental à educação, somente períodos ditatoriais ousaram rever o compromisso social assumido desde a Constituição Republicana de 1934 de financiamento governamental em patamares mínimos nesse setor. Ou seja, há mais de 80 anos a nação brasileira reconhece na educação pública o caminho decisivo para a progressiva e inadiável superação da dependência tecnológica, ainda que sejam lentos e complexos os esforços de associar dever de gasto mínimo a qualidade no ensino.

Os retrocessos causados pelas Constituições de 1937 e 1967/1969 certamente adiaram esse histórico processo cumulativo de buscar universalizar o acesso à escola para todos os cidadãos, com o dever de ensino de qualidade. A despeito de tais retrocessos autoritários e desde a Emenda Calmon de 1983, a sociedade brasileira parecia caminhar para horizonte civilizatório basilar, como rota progressiva de materialização da dignidade humana sob os comandos legitimamente construídos e fixados em nossa Constituição Cidadã e no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014).

Do ponto de vista do direito fundamental à saúde, havia, desde a redação originária da Carta de 1988, dispositivo que assegurava proporcionalidade mínima do custeio desse setor no bojo do Orçamento da Seguridade Social (OSS). Isso porque o artigo 55 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) previa a necessidade de resguardar, no mínimo, 30% desse orçamento especial para a política pública de saúde. Se tivéssemos mantido, ao longo do tempo, tal proporção dada transitoriamente pelo Constituinte Originário, o Sistema Único de Saúde contaria atualmente com disponibilidade de custeio quase 2,5 vezes maior que a dotação prevista para o exercício de 2016.

Em 2000, para remediar a expressiva e histórica instabilidade fiscal na promoção do direito fundamental à saúde pelo Estado, foi promulgada a Emenda Constitucional 29, instituindo a proteção de custeio mínimo em ações e serviços públicos de saúde, em moldes análogos ao piso da manutenção e desenvolvimento do ensino. Ainda que o piso federal no setor tenha sido recentemente alterado pela EC 86/2015, a progressividade de financiamento conforme o nível da receita subsiste, no artigo 198 da nossa Constituição, como dever para todos os entes da federação.

Atualmente, porém, somos confrontados pela proposta de redução da vinculação de gasto mínimo em ambos os setores e, o que é pior, pela desconstrução do esforço de chegarmos a 2024 com a meta de investirmos em educação pública na ordem de 10% da nossa riqueza nacional. Uma demanda das ruas que não ganhou eco.

O grande problema da PEC 241/2016, particularmente no artigo 104 que ela pretende introduzir ao ADCT, é desconhecer a proporcionalidade entre receita e despesa como metodologia instituída no texto da Constituição de 1988, como proteção formal e material (garantia equiparável ao habeas corpus e ao mandado de segurança, por exemplo) dos direitos à saúde e à educação.

Não obstante a PEC 241/2016 incida apenas sobre as despesas primárias e, dentre estas, abra espaços controvertidos de exceções escolhidas aleatoriamente (eleições planejáveis, emendas impositivas e capitalização de empresas estatais), seguem excluídas de quaisquer restrições as despesas financeiras, as quais aguardam, até o presente momento, a fixação dos limites de dívida consolidada e mobiliária da União.

O “Novo Regime Fiscal” — contido no artigo 104 do ADCT, a ser inserido pela PEC 241/2016 — prima pela ampliação da discricionariedade alocativa, a olvidar-se de todas as crianças e jovens e os enfermos que clamam, sem voz, por educação e saúde. E sem avançar um milímetro na aferição de resultados, na transparência e legitimidade das escolhas orçamentárias e mesmo na comprovação do cumprimento das obrigações constitucionais protetivas dos direitos fundamentais.

Caso seja aprovada tal proposta, a sociedade brasileira trocará, por vias oblíquas e inconstitucionais, as vinculações positivas de gasto mínimo em saúde e educação por uma vinculação negativa (gasto máximo), certamente restritiva daqueles pisos, sem qualquer avanço sobre a qualidade do gasto no ciclo orçamentário.

Em um contexto de crise política e econômica, promete-se ser essa uma medida imperativa de ajuste fiscal e até de eficiência do gasto público, mas cujo risco de retrocesso vedado constitucionalmente na consecução dos direitos fundamentais cria severa dificuldade de compreensão sobre o quanto se possa ganhar a longo prazo.

Por óbvio, reconhecemos que é preciso avançar e corrigir distorções, desvios e abusos. Há mesmo elevado grau de correlação entre a corrupção, a má-gestão e a baixa qualidade dos gastos mínimos em saúde e educação. Mas, para enfrentá-la, não nos parece ser resposta adequada a ampliação irrestrita da discricionariedade orçamentária, com prejuízo dos esforços em favor da educação básica obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade e no Sistema Único de Saúde, de cobertura pública integral e universal.

Tal inversão de piso para teto desprega a despesa do comportamento da receita e faz perecer as noções de proporcionalidade e progressividade no financiamento desses direitos fundamentais. Assim, o risco é de que sejam frustradas a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde de mais de 200 milhões de brasileiros. Ou de que seja mitigado o dever de incluir os cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes, de 4 a 17 anos, que ainda hoje se encontram fora da educação básica obrigatória.

Oito décadas, desde a sua instituição pela Constituição de 1934, ensinaram-nos a não negociar o mínimo de custeio para a educação, a dele não abrir mão. Quase três décadas nos ensinaram a primar pela defesa da saúde em sua dimensão sistêmica, pública, universal e integral.

Estamos em pleno processo pedagógico e civilizatório de educar e salvaguardar a saúde de nossos cidadãos, o que não pode ser obstado ou preterido por razões controvertidas de crise fiscal. Nada há de mais prioritário nos orçamentos públicos que tal desiderato constitucional, sob pena de frustração da própria razão de ser do Estado e do pacto social que ele encerra.

Desfigurar a Constituição, no que ela assume como prioritário para as gerações presentes e futuras, mediante a inserção desse artigo 104 no ADCT pela PEC 241/2016, pode ser um precedente muito perigoso, seja para o nosso Estado social em construção, seja do ponto de vista democrático-institucional, visto se tratar de reforma promovida sem sustentação mínima no corpo social.

Por
Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

 

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico

 

 

 

 

 

 

 

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