Brasil de Fato
O novo coronavírus se alastrou pelo mundo graças à ação destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza, afirma o pesquisador Allan Carlos Pscheidt, doutor em Biodiversidade Vegetal e Meio Ambiente e professor das Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo. O organismo que causa a covid-19 está há tempos no meio ambiente, provavelmente alojado em morcegos nativos de cavernas intocadas, segundo o professor. Com a crescente urbanização e consequente invasão humana, porém, o vírus quebrou seu ciclo natural e alcançou outros seres, como o homem, cujo organismo ainda não está preparado para combatê-lo.
Itália é um dos países mais atingidos pelo novo coronavírus / Foto: Comune di Venezia/Fotos públicas
De acordo com o pesquisador, a pandemia deixa lições claras: precisamos nos preocupar urgentemente com o consumo desenfreado, a destruição recorrente do planeta e as mudanças climáticas. A disseminação do novo coronavírus é resultado direto disso.
Pscheidt alerta que, em um mundo interligado como o que vivemos hoje, epidemias virais devem se tornar cada vez mais comuns. Para ele, se não evoluirmos para uma sociedade mais consciente e menos egoísta, não teremos muito mais tempo por aqui.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como a preservação ambiental é importante para conter o avanço de doenças como a covid-19?
Allan Carlos Pscheidt: A gente está em uma situação em que o mundo está passando por uma grande expansão, tanto de crescimento urbano quanto de industrialização.
Quando a gente verifica esse crescimento rápido, ocorre que a gente tem o desmatamento, a invasão de territórios antes preservados. Com isso, a gente acaba soltando no meio ambiente doenças que estavam contidas, por exemplo, em cavernas. Tudo sugere que a origem desse coronavírus que causa a covid-19 venha de morcegos que estavam em cavernas.
BF:Tudo isso, então, parte de uma ação humana, de invasão de territórios?
ACP: Isso. A ação humana acaba interferindo no meio ambiente de uma forma boa para o ser humano, porque estamos expandindo cidades, criando bairros, cidades menores, vilas, e provendo de infraestrutura para o crescimento da população, mas ruim para a natureza, porque precisamos desses recursos.
Muitas vezes, acaba que o território que a gente precisa ocupar é um território já ocupado por uma população de animais. Nós temos situações como com o morcego, que biologicamente já são animais propícios a terem doenças.
BF: De que forma funciona, biologicamente, a passagem de doenças? O morcego é um hospedeiro?
ACP: O vírus é um ser vivo como um morcego, como uma planta, como eu e você. O vírus ocorre naturalmente no planeta. Acaba que esse vírus está naquele ciclo, ele vive no morcego, o morcego é o hospedeiro. O problema ocorre quando ele sai desse ciclo. Aí ele acaba tendo um efeito negativo em outros seres vivos, como o que está acontecendo agora com o coronavírus nos seres humanos.
Quando o ciclo é quebrado, temos a situação de exposição a um fator que a gente não teve uma evolução em conjunto. Aquele vírus evolui junto com o morcego, naquele ambiente isolado. Quando você introduz no ser humano, não dá tempo para o organismo humano se adaptar a esse vírus. Por isso temos esse surto. O vírus acaba tendo uma ação muito pesada no organismo humano porque a gente não tem tempo necessário para criar um sistema imunológico para se proteger.
O que a gente vai verificar é que daqui a algumas semanas, daqui a alguns meses, como por exemplo lá na China mesmo, é que o foco de novos casos tem diminuído bastante.
BF: O que fazer para manter a convivência das espécies? A urbanização é incontrolável, nós só vemos crescer. Como lidar com isso, evitando as invasões e tentando diminuir as consequências que temos observado?
ACP: Temos que cobrar dos órgãos públicos e privados um maior controle e conservação do meio ambiente. Isso é muito importante. Desde a conservação turística, aqueles parques onde nós podemos utilizar para atividade turística, até mesmo áreas com restrições – por exemplo, no Brasil nós temos alguns picos onde só o Exército tem acesso.
É muito importante que a população, de uma forma geral, conserve essas áreas e cobre dos governos, das empresas, a conservação. Se você isola essas áreas, não tem a preocupação de passar alguma doença que, de repente, está ali.
Temos uma situação, também, que são as mudanças climáticas. Na Rússia, o permafrost [camada profunda de terra congelada] está descongelando. A gente não sabe o que aquele gelo vai ter, que tipo de bactéria, de vírus, está ali guardado por milhões de anos. Pode vir à tona e pode ser solto no ambiente. Nós não sabemos como vai ser o ciclo desse microrganismo nos animais e nas pessoas.
Além das áreas que já existem e nós devemos conservar, tem também a questão das áreas que podem ser afetadas pela mudança climática. É uma questão de bom senso e de cobrar sempre uma conservação, para aliar tanto o progresso, o crescimento populacional, o desenvolvimento de tecnologias, mas também saber do nosso papel como ser pertencente da natureza. É como eu falo para os meus alunos: este é o único planeta que nós temos.
BF: Quando a gente descobre esses vírus, doenças que surgem de animais, é natural que os animais sejam vistos como inimigos. Por que precisamos entender a importância deles dentro de toda a cadeia e não tratá-los como inimigos?
ACP: O mesmo caso que ocorre agora, com o coronavírus e os morcegos, é o que a gente passou recentemente no Brasil, com a febre amarela e os macacos. Há uma falsa compreensão quando as pessoas verificam que tal animal está causando o vírus, então vamos eliminar esse animal. Justamente o vírus estar nesse animal é o que segura que ele não venha para a gente. O vírus só vai passar quando interferimos diretamente sobre esse animal.
Existem casos, como na febre amarela, que havia um indicador. Quando você encontra um macaco morto na floresta, você sabe que ali está tendo um surto, que teve uma quebra do ciclo normal do vírus.
A mesma coisa com o morcego. O morcego tem a população dele, a vida dele normal. Quando tem uma interferência, onde essa população é diminuída ou aumenta muito, acaba que esse vírus escapa. O melhor é não interferir na natureza, deixar o sistema acontecer como ele sempre aconteceu.
BF: O que podemos fazer enquanto seres urbanizados, na nossa rotina nas cidades, muitas vezes longe da natureza onde vemos surgir esse tipo de vírus?
ACP: Temos que ter bom senso ecológico. Temos que saber que a água que estamos tomando banho, às vezes um banho prolongado para relaxar do estresse do trabalho, é uma água que vem de uma nascente distante.
Temos que ter consciência que às vezes aquele alimento que chega de “ah, um amigo foi caçar e trouxe”. Espera aí. Será que esse alimento é seguro para ser consumido? Por que eu não posso consumir o mesmo alimento que eu tenho o hábito de consumir?
A gente tem que ter o bom senso ecológico de saber que todas as nossas ações têm impacto. Se você usa hoje um telefone, um computador, para se comunicar com o mundo, o material que é utilizado para a construção desse equipamento vem da natureza.
Por mais que a gente tenha uma noção que a natureza, a floresta, está distante, na verdade ela está mais perto do que a gente pensa. A nossa roupa, todos os equipamentos que a gente usa, todos os recursos que fazem a nossa sobrevivência.
A pessoa que está hoje em casa, que diz que não está indo viajar para uma floresta, como a Amazônia, não está indo para a China, tem que saber que, mesmo assim, depende do recurso natural para a vida dela. Os recursos não vêm do nada.
BF: Quero te ouvir sobre o consumo de carne. Primeiro porque vem de animais, que podem ser hospedeiros de doenças, e segundo que temos um consumo desenfreado, que devasta o meio ambiente. Como isso se relaciona com a proteção ambiental e a invasão de espaços que não são nossos?
ACP: Acontece que temos uma população humana muito grande no mundo. Para suprir de alimento toda essa população, eu preciso de grandes áreas. Nossa tecnologia muitas vezes limita essa produção. Eu acabo tendo uma necessidade de desmatar áreas e acaba libertando vírus, bactérias e etc.
O interessante é saber que o nosso consumo de alimentos deve ser para a nossa sobrevivência. Se você vai consumir uma carne, você tem que saber que aquela carne vem de um ser que estava vivo, que foi criado e usou recursos para ser vivo. É o consumo consciente.
A gente não vai praticar o exagero ou, como eu vejo em alguns casos, jogar comida fora. Você teve todo um gasto energético de suprimentos, de recursos, de desmatamento, para criar uma vaca, e aí eu estou jogando quilos e quilos de carne no lixo.
A grande mensagem é sempre um consumo consciente, seja vegetariano, seja não vegetariano, o importante é comer para a nossa sobrevivência.
BF: A pandemia do coronavírus é recado para que mudemos nossos hábitos?
ACP: Exatamente. O coronavírus dá várias mensagens para a gente. Dá a mensagem do quanto somos uma comunidade global. A nossa espécie, hoje, é uma comunidade global. Temos que derrubar alguns conceitos de limites geográficos e começar a pensar em um conceito planetário.
Temos a questão das mudanças climáticas. O Brasil não pode se considerar um país isolado quando, por exemplo, a Amazônia depende da poeira que vem do Saara para ser fértil. Nós temos que ter uma consciência global cada vez maior.
O coronavírus também traz uma mensagem sobre o quanto temos que ter ações rápidas de contenção. Cada vez vai ser mais normal um vírus ou uma bactéria causar um surto.
Não porque há um potencial letal ou de virulência desse vírus, que é a capacidade dele de infectar, mas o quanto a gente, no dia a dia, está em contato com diferentes pessoas. Às vezes, pessoas que transitam longas distâncias. Estamos conectados diretamente neste mundo de microrganismos, que um passa para o outro.
E, também, o quanto é necessário verificar a nossa saúde, o quanto nós somos uma espécie frágil neste planeta frágil. Não somos heróis e nem nada disso. Temos que olhar para nós, para dentro, e ver o quanto ainda é necessário evoluir na medicina, na tecnologia, para que surtos como este sejam rapidamente controlados.
BF: E o consumo, né? Desenfrear o consumo?
ACP: Com certeza. Temos que olhar para o futuro e saber que, se o ritmo de consumo continuar como é hoje, o planeta não vai aguentar por muito tempo. Cada vez vai ser mais caótico, porque vai chegar o momento que não tem mais volta. Vamos ter que gastar muito dinheiro, em termos de economia, para resolver questões que poderiam ser diagnosticadas no passado.
BF: Então as pandemias tendem a ser mais comuns conforme o planeta se degrada?
ACP: Isso. Conforme o planeta vai se degradando, tem recursos que a gente não consegue repor ou a reposição demora muito tempo. Acaba não suprindo a velocidade que precisamos de energia, de alimento, de local para moradia e nem nada disso.