Ikaro Chaves*
As reais causas técnicas do sinistro no Amapá ainda serão esclarecidas, mas já é possível tirar algumas conclusões sobre as causas sistêmicas dessa e de outras crises no setor elétrico brasileiro.
Imagine um futuro em que cidades e estados inteiros ficam sem luz por vários dias. Imagine milhares de comerciantes perdendo seus estoques, torneiras vazias, ruas escuras, pessoas sem poder usar seus eletrodomésticos, semáforos apagados, sem saber que dia a situação será resolvida. Quem quiser saber como seria viver sem energia elétrica, basta olhar o que acontece no Amapá nesses dias.
Qualquer sistema pode apresentar falhas e os profissionais do setor elétrico estão acostumados a analisá-las, não só para encontrar culpados, mas principalmente para tomar as providências necessárias a fim de evitar que elas se repitam. As reais causas técnicas do sinistro no Amapá ainda serão esclarecidas, mas já é possível tirar algumas conclusões sobre as causas sistêmicas dessa e de outras crises no setor elétrico brasileiro, que, caso não sejam corrigidas, podem ter consequências verdadeiramente catastróficas para o País.
Aparentemente o sinistro na subestação da Isolux (empresa privada espanhola) em Macapá foi causado por uma descarga atmosférica. Trata-se de um fenômeno natural bastante comum, aliás, mas o que não é comum, nem aceitável, é que esse tipo de evento seja capaz de deixar sem energia elétrica um estado inteiro por vários dias. As autoridades do setor deverão esclarecer o que causou a falha: erro de projeto? Má qualidade dos equipamentos? Manutenção inadequada? Além disso, deverão explicar por que a empresa não possuía material sobressalente, instrumentos, ferramentas e equipes especializadas disponíveis para esse tipo de ocorrência, obrigando o governo federal a recorrer à estatal Eletronorte para solucionar o problema.
O apagão no Amapá pode até ser o caso mais dramático de sofrimento causado à população por empresas privadas que operam no Setor Elétrico Brasileiro (SEB), mas infelizmente não é o único. Em vários estados empresas privadas, principalmente no setor de distribuição de energia, vêm sendo alvo de reclamações dos consumidores. Em São Paulo a distribuidora italiana ENEL chegou a ser multada por fraudar indicadores de qualidade, em Rondônia a distribuidora privada Energisa foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa, em que foi acusada de fraudar medidores de energia e em Goiás, onde a ENEL adquiriu a distribuidora do estado em 2017, a situação é dramática, com cidades inteiras passando dias sem luz, produtores rurais tendo prejuízos milionários e até mesmo o abastecimento d’água de algumas cidades ficando comprometido. A situação em Goiás é tão grave que o próprio governador, Ronaldo Caiado do DEM, pediu que o a ENEL fosse expulsa do estado.
A expansão da transmissão no Brasil se dá através de leilões, em que são oferecidos determinados trechos e subestações para a disputa. A empresa ou o consórcio que apresentar o menor valor para a Receita Anual Permitida (RAP) é escolhida para implementar e explorar o projeto. Esse modelo possui dois problemas sérios.
- A fragmentação das empresas de transmissão ao longo do país: no Brasil o sistema de transmissão desempenha um papel importantíssimo. Por ser um país continental, com um sistema que tem como base a hidroeletricidade, o Brasil depende de um extenso e complexo sistema de transmissão, que seja capaz de transportar grandes blocos de energia ao longo de grandes distâncias. Até os anos 1990, havia poucas empresas atuando no setor de transmissão, basicamente a Eletrobras, através de suas subsidiárias e algumas empresas estaduais. A partir do governo FHC a expansão da malha de transmissão do país passou a ser feita principalmente por empreendimentos privados, muitas vezes com a participação minoritária da Eletrobras.
Se antes havia a Eletronorte operando a maior parte do sistema de transmissão do Norte, a CHESF operando a maior parte do sistema de transmissão do Nordeste e assim por diante, o que há hoje são centenas de empresas dedicadas a construir, operar e manter apenas um determinado trecho.
Com isso, perde-se muito da economia de escala que havia antes. Como é economicamente inviável manter uma grande equipe de especialistas, assim como grande estoque de materiais sobressalentes e equipamentos de teste, ensaios etc., apenas para um empreendimento isolado, as empresas simplesmente não possuem essa capacidade.
É o que acontece no Amapá neste momento. A operadora da linha e da subestação não possui nem equipe nem equipamento suficiente, tanto que foi necessário recorrer à Eletronorte, que não tem nenhuma relação com o empreendimento, para recuperar o sistema.
- O outro problema diz respeito ao próprio projeto. Para se sagrarem vencedores dos leilões, os concorrentes precisam oferecer a menor RAP, ou seja, ganha o direito de explorar o serviço aquele que conseguir fazê-lo pelo menor preço.
É justamente aí que está o perigo. O fazer mais barato muitas vezes é conseguido com projetos no limite da tolerância técnica, com equipamentos mais baratos, economizando material e quase sempre com equipes de operação e manutenção imprudentemente enxutas.
Muito provavelmente o sinistro do Amapá está relacionado com isso.
No modelo atual, a garantia da qualidade do se serviço se dá pela punição das empresas que não atingirem determinadas metas como frequência e horas de desligamento, por exemplo. Mas o fato é que, por mais que a Isolux, no caso do Amapá, seja punida, isso jamais compensará o sofrimento da população.
Além do mais as empresas sempre podem (e geralmente o fazem) recorrer administrativa e judicialmente das punições.
A engenharia brasileira foi capaz de desenvolver um sistema interligado, baseado em fontes renováveis admirado em todo mundo. Um sistema que sempre teve na integração e na cooperação dos diversos agentes sua principal característica. A título de comparação, nos EUA, um país baseado na termoeletricidade, cada estado busca ser autossuficiente. Já no Brasil, com um sistema baseado na hidroeletricidade, a integração regional sempre foi a regra.
Podemos tirar duas lições da tragédia que se abate sobre o Amapá. A primeira é que num país com as características do Brasil, um sistema elétrico integrado e cooperativo é muito mais adequado que um sistema fragmentado e pseudocompetitivo. A outra é que as características do setor elétrico, em especial o brasileiro, basicamente um monopólio natural e essencial para a vida das pessoas, deve ser operado basicamente por empresas públicas, que tenham o interesse público como guia e não o lucro, como é da natureza de toda empresa privada.
Nesse momento, em que o Governo Federal coloca como um de seus principais objetivos a privatização da Eletrobras, O Brasil precisa decidir se vamos aprender com as tragédias como a do Amapá e corrigir os rumos ou se vamos continuar ignorando os avisos que a realidade nos dá e seguir caminhando para as trevas.
*Ikaro Chaves é diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (AESEL). Texto originalmente publicado no portal Jornal GGN, em 9 de novembro de 2020.