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03/12/2020

O estratégico setor energético brasileiro, as privatizações e suas consequências

 

Soraya Misleh / Comunicação SEESP

 

O apagão que atingiu 90% da população do Amapá explicitou a necessidade de se debater tema fundamental, colocado no webinar realizado pelo SEESP na última terça-feira (1º/12): “O estratégico setor energético brasileiro, as privatizações e suas consequências”. Com transmissão online pela página do entidade no Facebook e canal no Youtube, a atividade teve a coordenação de Victor M. A. S. Vasconcelos, diretor do sindicato e da Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas – São Paulo (Abee-SP), e reuniu especialistas da área, engenheiros com ampla experiência no segmento.

 

Da esq. para a dir., Latrônico e Palmezan (acima), Kev e Vasconcelos (abaixo).

(Reprodução Youtube)

 

Coube a José Antonio Latrônico Filho fazer relato técnico da sucessão de fatos que provocaram o apagão do Amapá, após incêndio em transformador da subestação da Linhas de Macapá Transmissora de Energia, pertencente à Gemini Energy, nova denominação da espanhola Isolux.

 

Coordenador nacional da Câmara Especializada de Engenharia Elétrica do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado de Santa Catarina (Senge-SC), ele observou que o estado do Norte do País – em que o blecaute atingiu 14 dos 16 municípios, afetando 700 mil brasileiros – é exportador de energia no Sistema Interligado Nacional (SIN). “Diferente de Roraima, dependente de importação da Venezuela e sem resolver a independência energética”, apontou Latrônico, que destacou nessas situações a importância de planejamento, que garante a interligação em um país de dimensões continentais como o Brasil.

 

Segundo explicou, o Amapá vem atendendo a rede radial (Linha 230), com três transformadores que proviam o estado “satisfatoriamente”. “Lá temos três grandes hidroelétricas que dão quase 900MW, além de Coaracy Nunes (78MW), que estava em manutenção, e a termelétrica de Santana, com duas unidades, cada uma com 15MW, as quais estavam desativadas.”

 

Para Latrônico, a tragédia é resultado de desonestidade de agente “que deixou de bem informar o órgão regulador (Aneel) e o operador do sistema (ONS)” sobre os problemas para ativação de um transformador. “Isso fere um planejamento, que é bem feito no País.”

 

Outro problema identificado pelo especialista é o contingenciamento de recursos pelos governos, há cerca de uma década, para o ONS, a Empresa de Planejamento Energético (EPE) e a Aneel, a qual não tem conseguido fazer a fiscalização na ponta, sua “atividade nobre”. As empresas não têm feito, em função dos cortes no orçamento, a adequada reposição de quadros. “Esses órgãos têm que ser de Estado, não de governo. Têm que ter independência financeira para bem planejar, regular e operar a energia no País”, indicou.

 

Também sugeriu a revisão do processo de “entregar uma linha de transmissão ou qualquer equipamento para qualquer um”. E continuou: “Tem que qualificar os leilões, rever suas referências, ter pré-seleção para estar mais seguro e honesto, olhar quem vai gerir esse ativo brasileiro, e rever penalidades.” Nessa direção, foi categórico: “Antes de repassar o custo da energia para a sociedade, e vai ter que repassar, tem que punir os que deram causa [ao apagão].” Propôs ainda a certificação de empresas brasileiras do setor elétrico pela Aneel para que façam a fiscalização na ponta.

 

Afirmou, ademais, que o governo “não deveria privatizar o restante da gestão da água”. “Tem que haver revisão de sua matriz ou da operação do reservatório brasileiro e ficar sob o comando do Estado, porque essa energia firme que vai segurar nossas intermitentes que vão vir com pujança, sejam eólicas ou fotovoltaicas.”

 

Latrônico defendeu que técnicos e representantes de entidades independentes do setor estejam nos comitês e grupos que discutem junto ao Parlamento e Executivo essa questão, o que não vem acontecendo.

 

 

Histórico da privatização

 

A partir dos acontecimentos no estado do Norte do País, Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, foi taxativo, em artigo de sua autoria: “chega-se a uma conclusão lamentável: a transmissão de energia no Amapá, etapa absolutamente estratégica do sistema, foi entregue a uma empresa privada sem condições ou interesse de atuar adequadamente”.  Na sua visão, o descaso se revelou inclusive no cumprimento da obrigação básica de ter um plano de emergência para evitar que “eventuais falhas tenham consequências graves”.

 

Um histórico das privatizações no setor essencial no Brasil foi feito durante o webinar por Fernando Palmezan, a partir de seu início, no Estado de São Paulo, com a Cesp. Diretor do SEESP, ele é coordenador do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento” – iniciativa da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) com a adesão do sindicato que reúne propostas em setores essenciais, como energia, rumo ao desenvolvimento sustentável nacional.

 

Com a constituição da empresa, como resultado de agrupamento de 11 companhias da área, como relatou, o Estado passou a investir em geração, transmissão e distribuição nos anos 1960 – o que garantiu a pujança industrial local.

 

Sua importância histórica e estratégica, contudo, não foi considerada quando, para justificar sua privatização, o governo nos anos 1990 alegou que a empresa era deficitária. “Dizia-se que não tinha condições de investir mais no sistema. A Cesp nunca recebeu aporte do governo do Estado, a não ser como garantidor em projetos de grande porte”, salientou Palmezan, para quem o grande problema foi a construção de Porto Primavera, que não pôde entrar em operação e cuja conclusão foi postergada.

 

“Se você se propõe a colocar geração para o mercado numa determinada data, a partir do momento seguinte, se não disponibiliza, tem que comprar essa energia de alguém para atender a demanda. Para a Cesp, isso representou custo altíssimo. Uma decisão política de não se concluir Porto Primavera se transformou em grande dificuldade financeira, não aparada de forma correta para a privatização”, explicou.

 

A companhia foi dividida e distribuição, geração e transmissão, privatizadas. A dívida – justificativa para a desestatização – ficou com o Estado. “Quem assumiu foi o povo brasileiro.” O resultado, que se reproduziu nas privatizações subsequentes no País, como demonstrou o diretor do SEESP, foi queda na qualidade e elevação extraordinária nas tarifas.

 

“Fizemos uma disputa muito grande no momento, capitaneada pelo nosso presidente, Murilo, mostrando que isso não era bom para o Brasil”, lembrou. E destacou: “Algumas questões, como água, são estratégicas para o País e para a humanidade, é preciso preservar. E rever muito rapidamente propostas de privatização no setor, talvez pensar em retomar algo.”

 

Paulo Kev, sócio-gerente da Kev Energia Distribuída Integrada Ltda., afirmou ser favorável à desestatização, mas ratifica que não se deve entregar a gestão da água à iniciativa privada. Ele iniciou sua atuação no setor nuclear, passando pela área médico-hospitalar, com a função de montar centrais de radiodiagnóstico, e redes de computadores a partir dos anos 2000. “De lá para cá, me apaixonei pela rede elétrica, principalmente eletrônica de potência.”

 

Para ele, é preciso pensar desenvolvimento sinergético do País. E rever, nessa direção, o modelo do setor elétrico. Sua proposta é de cabeamento estruturado, não mais centralizado, num circuito análogo ao da internet – smartgrid [rede inteligente] –, transformando “qualquer fonte primária em um vetor elétrico”.

 

“Envolve muita técnica profunda e sofisticada. Mas se não tiver mecanismo de financiamento de toda essa obra, não vai andar um metro. O governo tem que orientar isso e alocar recursos. O investidor privado dificilmente colocaria dinheiro limpo, novo, nesses projetos”, ressaltou Kev.

 

E vaticinou: “Nenhum modelo de desenvolvimento vai prosperar com modelo econômico que mata qualquer projeto. Temos que discutir e colocar isso na responsabilidade do governo, para abraçar principalmente pontos estratégicos. A pandemia veio para mudar o sistema civilizatório. Falta uma coisa para isso: mudar o setor energético. Combustíveis, cadeia de consumo e água precisam de decisão e gestão política. É necessário sistematização e sinergia.”

 

Nessa linha de pensar novo modelo e rever a matriz energética – ao que Kev apontou a importância da contribuição de entidades como SEESP, Abee e FNE –, o especialista vê que privatizações no momento seriam “um desastre”. E defendeu “projeto macroeconômico exequível. Porque engenharia nós resolvemos.”

 

Para conhecer a proposta de desenvolvimento sinergético apontada por Kev, clique aqui.

 

 

Confira o webinar na íntegra:

 

 

 

 

 

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