Francisco Christovam*
Passados esses 20 meses de pandemia, avizinha-se um novo momento, com a constatação de que várias mudanças que ocorreram nesse período vieram para ficar. No setor dos transportes coletivos urbanos, as medidas restritivas à circulação das pessoas, o medo da contaminação provocada pela aglomeração dos passageiros nos veículos e nas plataformas das estações e a alteração do modelo de relacionamento entre empresas e empregados provocaram uma forte queda na demanda de passageiros e uma significativa modificação dos atributos das viagens realizadas nos trens, metrôs, barcos e ônibus.
Os passageiros, nesta nova fase, continuarão valorizando a regularidade, a confiabilidade, a oferta de viagens e o preço das passagens; mas, passarão a considerar também a segurança, o conforto e a lotação como novos atributos que influenciarão na escolha da melhor forma de realizar os seus deslocamentos diários. Os órgãos gestores, as empresas operadoras e a população deverão rever seus hábitos e costumes, com vistas à adoção de novos modelos de deslocamento, a partir de uma ampla avaliação das condicionantes que determinam a opção pelo transporte público ou privado ou a escolha entre o coletivo ou o individual.
Discutir o chamado “novo normal” é muito mais do que fazer um exercício de futurologia ou uma análise totalmente desprovida de fundamentos técnicos e de bom senso. Trata-se de examinar possibilidades e probabilidades, bem como avaliar as tendências tecnológicas que estão prontas para serem absorvidas e utilizadas pela população e analisar modelos comportamentais que deverão orientar o processo decisório para as futuras escolhas.
Do ponto de vista da tecnologia, o início da operação do sistema 5G, o uso da inteligência artificial (IA), a chegada da Internet das Coisas (IoT), da Internet dos Espaços (IoS) e da Internet das Pessoas (IoP), a introdução do carros compartilhados, autônomos e por assinatura e a maciça utilização dos aparelhos celulares (smartphones), como a ferramenta que deverá integrar todas as tecnologias disponíveis e colocá-las à inteira disposição da sociedade, representam uma verdadeira revolução tecnológica. Acrescente-se a essas iniciativas o forte impulso que vem sendo dado à ciclomobilidade e à eletromobilidade, no transporte urbano das cidades de médio e grande portes.
Por razões de proteção ao meio ambiente, redução da emissão de poluentes e melhoria da qualidade de vida nas cidades, o incentivo à mobilidade ativa e a substituição dos veículos movidos a combustíveis de origem fóssil por veículos movidos a tração elétrica se fazem prementes e já têm o apoio de ambientalistas e dos próprios fabricantes de veículos. Há várias cidades, no mundo, incentivando o uso de bicicletas, motos, carros, ônibus e caminhões, híbridos ou totalmente elétricos, para o transporte de passageiros e de cargas. Embora o preço de aquisição dos veículos motorizados ainda seja relativamente alto, ao longo da vida útil do material rodante, o custo operacional se mostra bastante razoável e competitivo com as demais tecnologias existentes.
Com a chegada do sistema 5G, haverá uma grande evolução em relação às redes de comunicação de dados que são utilizadas atualmente. Esse novo sistema vem sendo desenvolvido para comportar o crescente volume de informações trocado, diariamente, por bilhões de dispositivos sem fio, espalhados mundialmente. Seu principal objetivo é elevar, e muito, as potencialidades da rede atual, alçando a banda larga móvel a altíssimos padrões de velocidade de conexão e de usuários simultâneos. Nem é preciso mencionar o tremendo salto qualitativo na troca de informações que poderá acontecer entre órgãos gestores e empresas operadoras, bem como nas comunicações entre operadores de transporte e clientes ou passageiros.
No que se refere à Inteligência Artificial (IA), a sua capacidade de gerar soluções está intimamente ligada a sistemas de aprendizado que analisam grandes volumes de dados, possibilitando a ampliação do conhecimento, uma vez que o próprio sistema consegue "aprender" e gerar melhores propostas, para aperfeiçoar os serviços a que se destinam. A possibilidade de contar com uma maior capacidade de processamento e armazenamento de um grande conjunto de dados e informações deve influenciar todo o planejamento, a programação e o monitoramento dos deslocamentos diários dos veículos e das pessoas.
A Internet das Coisas (IoT), a Internet dos Espaços (IoS) e a Internet das Pessoas (IoP) possibilitarão uma verdadeira revolução no campo das comunicações e no processamento das informações. A Internet das Coisas (IoT) é uma rede de objetos físicos, dotados de tecnologia embarcada, sensores e conexões capazes de reunir e de transmitir dados. A conexão com a rede mundial de computadores possibilita controlar, remotamente, os objetos e transformar esses objetos em provedores de serviços. A Internet dos Espaços (IoS), por sua vez, usa constelações, formadas por milhares de pequenos satélites, para oferecer conectividade à toda superfície do planeta a custos mais baixos, cobrindo uma grande área da superfície sem necessitar de uma infraestrutura de cabos convencionais, que não chegam a todos os lugares. É com esses recursos que será possível acompanhar e monitorar a operação dos veículos e das linhas de ônibus, “on line” e em tempo real, otimizando a operação dos modos de transportes e reduzindo os custos de produção dos serviços.
Depois da Internet das Coisas (IoT) e da Internet do Espaço (IoS), já se fala na utilização da Internet das Pessoas (IoP), com a integração de “chips” implantados nas pessoas, fazendo conexão com outros nanoprocessadores e com a internet. Esses dispositivos poderão monitorar seus sinais vitais e, também, seus impulsos e intuições para analisar condicionantes e atributos que poderão definir qual a melhor e a mais conveniente maneira para se realizar uma determinada viagem.
Ainda no campo das tecnologias, é preciso considerar que carros compartilhados, autônomos ou por assinatura, já em uso em algumas cidades da Europa e dos Estados Unidos, deverão mudar o padrão de deslocamento de parte da população, criando opções para a realização das viagens e impactando diretamente o uso do espaço urbano e o equilíbrio entre a oferta e a demanda dos transportes coletivos.
Assim, não há como negar que, em um futuro muito próximo, todas essas tecnologias estarão em pleno uso, influenciando a maneira como os serviços de transporte serão prestados à população e como as pessoas deverão circular pelas cidades. Estamos lidando, sem dúvidas, com um tremendo processo de transformação tecnológica com forte impacto na vida das pessoas.
Entretanto, as questões tecnológicas não são o único fator que interfere na tomada de decisão, quando as pessoas devem fazer suas opções pela forma como se deslocarão de um ponto a outro, pelas mais diversas razões ou motivos e para atender às mais variadas necessidades. Nesse contexto, entram as questões comportamentais e a maneira como se define a melhor escolha a ser feita. A influência do meio e do momento pesam significativamente no processo decisório que, também, está sujeito a fatores relacionados à complexidade, incerteza, fragilidade, ansiedade, entre outros aspectos ligados à personalidade de cada indivíduo.
Para melhor entender esse processo, a “Teoria da Dominância Cerebral”, desenvolvida por William Edward Herrmann (Ned Herrmann), pesquisador do pensamento criativo que, nos anos 70, foi responsável pela área de desenvolvimento gerencial da General Electric – GE, merece ser analisada, com o objetivo de explicar como o cérebro processa informações para a tomada de decisão.
A partir de pesquisas médicas sobre a atividade cerebral, Herrmann percebeu que há quatro diferentes padrões sobre como o cérebro recebe e analisa as informações. De forma resumida, os eixos horizontal (Racional/Intuitivo) e vertical (Intelectual/Instintivo) dividem o plano em quatro quadrantes, com características peculiares e bem definidas, que são identificados como analítico, prático, relacional e experimental.
No quadrante analítico (Racional x Intelectual), as decisões são baseadas em levantamento de dados, análise de fatos e observações quantitativas. O processo decisório é lógico, técnico, factual e crítico. No quadrante prático (Racional x Instintivo), as decisões são baseadas em detalhes, orientações, procedimentos e organização. O processo decisório é planejado, estruturado, seguro e organizado.
Ainda de acordo com os conceitos de Herrmann, no quadrante experimental (Intuitivo x Intelectual), as decisões são tomadas com base em premissas, desafios, sínteses e soluções criativas. O processo decisório é holístico, inovador, interativo e conceitual. Já no quadrante relacional (Intuitivo x Instintivo), as decisões são tomadas com base em interações, sensações, sentimentos e emoções. O processo decisório é emocional, intuitivo, sentimental e sensorial.
Assim, há que se levar em conta que as pessoas não farão suas escolhas sobre como se deslocar da origem ao destino das viagens somente com base nas características e vantagens oferecidas pelas tecnologias disponíveis. O processo mental utilizado para a tomada de decisões sofre influências diversas e se apoia em parâmetros que estão ligados à forma como o indivíduo lida com as questões racionais, intelectuais, instintivas e intuitivas, exatamente como definiu Ned Herrmann.
O momento que se aproxima será, sem sombra de dúvidas, repleto de novos princípios, de novos conceitos e de novas práticas que demandarão também novas respostas para questões que não estão ainda totalmente formuladas ou reformuladas. Mas, essas grandes mudanças devem representar, certamente, novas exigências por parte dos clientes e usuários e novos desafios na prestação dos serviços de transporte coletivo de passageiros, seja para os órgãos de gestão ou para as empresas operadoras.
*Francisco Christovam é presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss) e, também, membro da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (FETPESP), da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), do Conselho Diretor da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e do Conselho Consultivo do Instituto de Engenharia.