Francisco Christovam*
A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) lança esta semana mais um documento técnico, intitulado “Modernização Tecnológica da Frota do Transporte Coletivo Urbano”, com o propósito de divulgar as iniciativas em andamento para a produção de veículos mais modernos, menos poluentes e de melhor qualidade para a operação do transporte urbano e interurbano de passageiros, nas cidades brasileiras.
No início da década de 1980, quando ainda atuavam a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), em São Paulo, e a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), com sede em Brasília, foram desenvolvidas as primeiras especificações técnicas para a construção de veículos – trólebus e ônibus – destinados à operação do transporte urbano de passageiros nas cidades brasileiras. Ambos os documentos foram elaborados por engenheiros especialistas, quase todos professores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), reunidos numa empresa de consultoria, fundada em 1977, denominada PROMEC – Projetos Mecânicos S/C Ltda.
Os documentos produzidos pela PROMEC levaram em conta, à época, as especificações técnicas do ônibus alemão, projetado e construído de acordo com as normas fixadas pela Verband Öffentlicher Verkehrsbetriebe (VÖV); do ônibus francês BERLIET, operado pela Régie Autonome des Transports Parisiens (RATP); do ônibus inglês “Routemaster”, um double decker, projetado pela London Transport e construído pela Associated Equipment Company (AEC) e pela Park Royal Vehicles, bem como do ônibus urbano norte-americano, produzido pela (New) Flyer Industries Limited.
Cada item dos documentos elaborados foi amplamente discutido com as montadoras, encarroçadoras, fabricantes de componentes e com as empresas operadoras, para o estabelecimento de parâmetros e características que pudessem modernizar e melhorar a qualidade dos veículos destinados ao transporte urbano e interurbano de passageiros.
As especificações se fixaram, principalmente, no desempenho operacional dos veículos, buscando uma certa padronização de materiais e a definição de dimensões gerais, tais como comprimento, largura e altura dos veículos, tipo de suspensão e de direção, altura de primeiro degrau e de balaústres, largura de portas e de janelas, ângulo de ataque e de saída de rampas, raios de curvatura (mínimo e máximo), potência e torque dos motores e algumas sugestões de layout interno, entre outras. Todas as características técnicas estabelecidas visavam a modernização dos chassis e das carrocerias dos trólebus e dos ônibus brasileiros, sem estabelecer condicionantes que não pudessem ser atendidas pela indústria, particularmente, pelas montadoras brasileiras.
Nasciam, assim, o primeiro trólebus produzido, totalmente, pela indústria nacional e o ônibus PADRON, como ficou conhecido, o primeiro ônibus diesel que foi fabricado no Brasil, conforme uma especificação técnica elaborada pelo Poder Público, mais precisamente por empresas estatais responsáveis pelo desenvolvimento e fomento ou pela gestão do transporte coletivo urbano de passageiros.
De lá para cá, pouco se fez para a revisão e para o aprimoramento dessas especificações técnicas. Ao longo do tempo, os avanços aconteceram mais por iniciativa da própria indústria automotiva – fabricante de chassis e de carrocerias para ônibus urbano, que produzem, também, equipamentos para exportação, com vistas ao atendimento do seletivo mercado externo – do que por exigência dos órgãos gestores ou dos próprios operadores.
É preciso reconhecer, entretanto, que a São Paulo Transporte S/A (SPTrans), sucessora da extinta CMTC, sempre procurou manter as especificações técnicas, dos vários modelos de ônibus utilizados no transporte urbano da cidade de São Paulo, minimamente, atualizadas.
Por outro lado, vale ainda registrar que houve uma evolução da tecnologia veicular, particularmente, nos motores de tração, por força do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (PROCONVE) e pelo enorme esforço de normatização, conduzido pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
A preocupação com a poluição urbana, provocada pela queima de combustíveis fósseis, e com o aquecimento global, decorrente das mudanças climáticas, tem aumentado expressivamente, nos últimos anos. Mais recentemente, em várias partes do mundo, o desequilíbrio ambiental resultou em enormes incêndios, secas extremas, chuvas torrenciais e enchentes arrasadoras.
Para contextualizar, em relação às emissões totais de gases de efeito estufa (GEE), o Brasil encontra-se na sexta posição no ranking mundial, bem atrás da China, Estados Unidos, Índia, União Europeia e Rússia, sendo responsável pela geração de 3,1% de todas as emissões globais.
Conforme citado no recente documento publicado pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), intitulado Rotas Tecnológicas de Descarbonização do Transporte Coletivo no Brasil, “comparados ao total das emissões brutas de GEE do País (2,4 GtCO2eq), os ônibus urbanos a diesel – incluídos os rodoviários e fretamento – contribuem com (22 MtCO2eq), pouco menos de 1% das emissões nacionais. Trata-se de uma pequena fração das emissões totais nacionais de GEE...”
Nesse sentido, a evolução dos motores a diesel tem contribuído, significativamente, para a redução das emissões de gases e de material particulado. De acordo com a Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro – SEMOVE, as emissões de Material Particulado, de Monóxido de Carbono, de Óxidos de Nitrogênio e de Hidrocarbonetos, produzidos pelos motores a óleo diesel, da frota em operação no Estado do Rio de Janeiro, sofreram reduções de 89,32%, 80,54%, 83,08% e 90,53%, respectivamente, entre os anos de 2011 e 2023.
Em que pese algumas iniciativas pontuais que foram tomadas em várias cidades brasileiras, desde a década de 1990, foi com a promulgação da Lei Municipal Nº 16.802, de 18 de janeiro de 2018, que se iniciou uma série de medidas no sentido de reduzir as emissões provocadas pela circulação dos ônibus e dos caminhões na cidade de São Paulo.
A referida lei estabeleceu, além de outras exigências, que deverá haver uma redução mínima de 50%, num prazo de 10 anos, e uma redução de 100% das emissões totais de dióxido de carbono (CO2), de origem fóssil, num prazo máximo de vinte anos. Determinou, ainda, que deverá ocorrer, também, uma redução mínima de 95%, tanto nas emissões de material particulado (MP) como de óxidos de nitrogênio (NOx), até o ano de 2038.
Assim, a mudança do perfil tecnológico da frota nacional passou a acontecer num ritmo mais acelerado e os diferentes rumos da descarbonização dos ônibus utilizados no transporte urbano de passageiros começaram a ser definidos, a partir dessa data, por força de uma legislação aplicável na cidade de São Paulo.
As principais rotas da descarbonização se caracterizam pela substituição de ônibus movidos a óleo diesel por veículos elétricos, movidos com energia proveniente de baterias ou de célula de hidrogênio, ou por veículos com motor a combustão, movidos pela queima de biometano ou de biocombustíveis (diesel verde ou Hydrotreated Vegetable Oil – HVO).
Essas tecnologias encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento, com os motores elétricos, movidos com energia gerada pelas células de hidrogênio, ainda em fase de pesquisa e desenvolvimento. Os ônibus elétricos a bateria e as outras tecnologias já estão prontas para a comercialização. Embora o HVO seja um combustível que pode ser misturado com o óleo diesel, em diferentes proporções (“Drop In”), e esteja pronto para uso nos atuais motores a combustão, ainda não há fabricação, em escala suficiente, para a sua utilização na frota de ônibus urbanos do Brasil. Os combustíveis “Drop In”, diferentemente do biodiesel e do bioetanol, são bio-hidrocarbonetos idênticos, em termos de estrutura química, aos seus equivalentes fósseis, podendo ser utilizados sem a necessidade de qualquer mudança nos motores atuais.
O documento elaborado pela NTU apresenta, em detalhes, uma enorme gama de dados e de informações sobre o tema da transição energética, particularmente com relação à poluição veicular e ao aquecimento global, bem como sobre o estágio de desenvolvimento e de utilização das várias tecnologias que compõem as rotas da descarbonização da frota nacional de ônibus urbanos. O documento afirma, também, que “é notório que a descarbonização do transporte coletivo deve ser viabilizada com a adoção de diferentes rotas tecnológicas. Além do mais, é preciso elaborar e colocar em prática um plano nacional de renovação de frota que considere a transição gradual da matriz energética, o status vigente da indústria brasileira e a predominância, no curto e médio prazo, das rotas tecnológicas já consolidadas e menos poluentes, por exemplo, o ônibus com motor Euro 6”.
Mas, toda essa discussão sobre a mudança do perfil tecnológico da frota nacional de ônibus urbano gerou um debate, de alto nível, muito interessante e proveitoso, que enaltece a importância do uso de veículos modernos na operacionalidade dos sistemas de transporte e na qualidade dos serviços de transporte prestados à população.
É inquestionável que, pela necessidade de se discutir as questões de ordem contratual, operacional e socioambiental, especialmente nas áreas econômico-financeiras e jurídico-legais, num nível muito mais sofisticado do que o usual, o transporte urbano de passageiros passou a ser visto pelas autoridades, pelos fabricantes, pelos operadores e, também, pelos usuários, sob um outro ângulo. Já é possível notar, pelas ações institucionais em curso, que o transporte urbano de passageiros, a médio prazo, será tratado de uma forma muito mais nobre e distinta, produzido num ambiente de trabalho muito mais favorável daquele que, anteriormente, existia.
Acesse o documento clicando aqui.
*Francisco Christovam é Diretor Executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Vice-Presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (FETPESP) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia.