Renato Vargas*
Se há uma lenda que abrigou a minha conivência durante muitos anos foi a tal estrutura em Y nas empresas. Como um engenheiro seduzido pela técnica gostaria de permanecer no ofício, trabalhando com equipamentos, construindo soluções por meio das ferramentas de cálculo e assim consolidar uma formação iniciada na universidade. Mas logo no início da carreira percebi que a tendência natural seria uma ascensão para os cargos administrativos, com melhores perspectivas financeiras, mas que naturalmente nos afastam da essência da Engenharia.
Na teoria, o modelo em Y criaria alternativas a este modelo vertical, em que após encontrar o modesto teto salarial, ao engenheiro restaria apenas assumir uma posição gerencial, ou mesmo, transferir-se para uma área comercial em busca de comissões para aumentar os seus proventos. Este modelo foi responsável por algumas gerações de engenheiros, que trabalha durante 6, 7 anos na profissão e quando poderiam atingir uma maturidade técnica profissional, são deslocados para as posições administrativas ou comerciais. Ou seja, uma geração de engenheiros “quase bons”. O modelo em Y vinha para restabelecer uma certa justiça, viabilizando as competências técnicas sem renunciar aos proventos.
Como sempre, várias empresas incluíram este discurso entre as suas políticas de gestão de recursos humanos, e, como tantas outras teorias importadas sem a devida discussão, naufragou nas costas tupiniquins. Nos últimos 30 anos os engenheiros e os técnicos, foram desprestigiados na hierarquia das empresas, os salários foram aviltados, e a importância do engenheiro relativizada mediante o surgimento de outras profissões.
Na falta de informações de entidades de classe ou indicadores específicos para avaliar a evolução da condição socioeconômica dos engenheiros, podemos buscar nas singelas reminiscências alguns fragmentos para resgatar o que foi um dia, o nível de vida dos engenheiros. Evidentemente, as simplificações podem mitigar alguns aspectos desta abordagem. Por exemplo, éramos em número menor e constantemente submetidos à instabilidade econômica ou planos governamentais mais ou menos comprometidos com a estratégia desenvolvimentista, o que atinge diretamente as oportunidades de trabalho. Mas um exercício de memória ungido pelo saudosismo pode emular algumas situações esclarecedoras sobre a mudança da condição socioeconômica do engenheiro. Infelizmente, não precisamos retroceder tanto para identificar as diferenças. Lembro dos anos 80, e de todas as dificuldades da década perdida, quando conheci engenheiros e projetistas, ainda como estagiário. O engenheiro era uma pessoa de bom nível socioeconômico e mesmo como única renda da família, mantinha os filhos em escolas particulares e as questões diárias de gastos médicos e odontológicos permaneciam longe da pauta diária. Para complementar, um bom carro na garagem e uma confortável casa própria após 4 ou 5 anos de vida profissional. Se a vida destes engenheiros era confortável, os técnicos e projetistas tinham uma vida digna. Mesmo permanecendo debruçados sobre a sua prancheta durante 1 mês para destrinchar um único desenho, recebiam uma remuneração maior do que projetistas com ferramentas CAD atualmente. Estas diferenças se multiplicaram por meio dos avanços tecnológicos exponenciais em hardware e software, que permitiram aos engenheiros e aos técnicos aumentar a sua produtividade. Resumindo: hoje produzimos muito mais e ganhamos menos.
Um comprovante do desprestígio da profissão nas empresas, foi a opção de uma imensa parte dos engenheiros recém-formados nas boas universidades pelo trabalho nas instituições financeiras, em busca de melhores condições de trabalho e uma remuneração digna.
Mas quais são os motivos para esta queda? Não podemos esquecer que, se restou algum laivo de bom senso nas empresas, o trabalho do engenheiro ainda é o epicentro da transformação e criação e, portanto, o principal responsável pela geração de valor nas empresas.
Evidentemente, houve uma contribuição importante do crescimento exponencial de escolas de engenharia de competência questionável que disponibilizou um número expressivo de engenheiros no mercado, mas com pouca qualidade. Ao mesmo tempo, a imensa desindustrialização e a falta de investimentos em infraestrutura do Brasil nos últimos 30 anos impediram a criação de oportunidades de trabalho. Mas um dos grandes motivos desta derrocada da profissão foi provida pelo prof. Manuel Castells (Castells;1999), em uma declaração tão simples quanto esclarecedora: por trás desta estrutura multidisciplinar, onde todos são chamados a participar, o salário do engenheiro foi dividido entre as novas e inúmeras tarefas administrativas, de gestão, de marketing e outras atividades marginais ao desenvolvimento tecnológico. Recentemente, com a proliferação de chamado compliance, a este grupo foi incorporada uma legião de advogados. Somada a esta transformação multidisciplinar, a dificuldade política dos engenheiros encontrarem uma postura adequada diante destes novos colegas, em geral, mais talentosos para articulação e justificativas de posicionamentos – uma consequência direta da proliferação dos MBAs.
A ausência de fóruns de discussão sobre a atual condição da profissão, não permite saber para onde vai esta situação, mas alguns indícios são preocupantes. Recentemente, um colega com doutorado e muita experiência, aceitou uma oportunidade de emprego. Não demorou muito para saber que o CEO da empresa, com o mesmo tempo de vida profissional, ganhava 100 vezes mais do que ele. Outro dia, eu fazia uma apresentação e fui interpelado por um rapaz com um questionamento técnico baseado em palavras pouco usuais na engenharia. Depois de um esforço para driblar o desconhecimento dele, e, em especial a sua persistência que flertava com a inconveniência, fui obrigado a perguntar sobre a sua formação: advogado. Sabe-se lá porque ele estava assistindo aquela apresentação, mas entendi que por algum motivo estranho à minha compreensão, uma das minhas novas atribuições era abastecer aquele indivíduo com informações para alguma atividade que jamais viria a saber.
A realidade atual apresenta uma categoria em queda livre salarial, desmobilizada, desvalorizada nas empresas, e em luta diária pelas poucas oportunidades no mercado, cada vez mais restrito pela crise político-econômica que se arrasta pelos últimos 6 anos. A estrutura em Y faz parte de um conjunto de estratégias fracassadas no restabelecimento de condições de trabalho dignas para o engenheiro. Portanto, diria aos nossos jovens engenheiros que se há alguma expectativa de melhoria financeira a curto ou médio prazo, ela ainda está depositada sobre o monitoramento da carreira de seu gerente, ou em abraçar a carreira comercial e sair pelo mundo para vender produtos.
*Renato Vargas é engenheiro mecânico com mestrado e doutorado na área pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda. (NEP) e coordenador da Relief, plataforma EAD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural por elementos finitos
**Referência bibliográfica: CASTELLS, M., A sociedade em Rede, Editora Paz e Terra, 1999.