Renato Vargas*
A Engenharia está conectada ao rigor das técnicas e aos procedimentos metodológicos para viabilizar a construção de soluções tecnológicas. Estas características baseadas na racionalidade e objetividade são base da formação do engenheiro e foram reconhecidas pela sociedade, ao ponto de despertarem a atenção de outras áreas, como o poderoso mercado financeiro.
Atualmente, uma sociedade globalizada e tecnológica sob as constantes mutações políticas e socioeconômicas do mundo informacional, potencializou a participação do engenheiro no contexto de um novo paradigma tecnológico baseado nos conceitos da inovação e empreendedorismo. Mas, as evidências recolhidas nas empresas brasileiras demonstram que este potencial está longe de se concretizar nas terras tupiniquins e, pelo contrário, a categoria encontra amplas dificuldades para se manter em um mundo cada vez mais tecnológico. Sua importância foi relativizada na estrutura corporativa, seus salários rebaixados, as oportunidades diminuíram e suas funções aos poucos são afastadas de sua formação técnica. A proposta deste artigo é explorar esta contradição em suas origens e desdobramentos.
Ninguém duvida que a onda de inovação, competividade e empreendedorismo aumentou o protagonismo da tecnologia no desenvolvimento econômico das grandes potências. Ao mesmo tempo, direcionou novos fluxos tecnológicos da revolução 4.0 para regiões distantes do ocidente e despertou a força milenar dos tigres asiáticos que está alterando a correlação de poder mundial. Mas por que, diferentemente de outros modismos tecnológicos passageiros, esta onda alcançou este protagonismo? Primeiro, porque ela traz consigo uma robusta fundamentação científica que foi concebida há quase um século pelo brilhantismo de Joseph Schumpeter, e nos anos 90 foi reforçada por intelectuais do porte de Richard Nelson, Christopher Freeman, Nathan Rosenberg e Carlota Perez, entre muitos outros. Não bastasse esta proficiência acadêmica, foi cristalizada no impressionante sucesso dos polos tecnológicos como Vale do Silício, Shenzen, Bangalore, Tsukuba, Zhongguancun, para citar alguns. Assim, esta onda tecnológica de grandes proporções foi consolidada no mundo corporativo e ganhou uma repercussão inédita nas poderosas mídias sociais por meio de uma infinidade de eventos, congressos, MBAs e coachs.
Aparentemente, este novo paradigma é o caminho necessário para países como o Brasil, que estão tentando subir a escada tecnológica e se alinhar aos países desenvolvidos, mas uma comparação simples entre os resultados desta onda no Brasil e na Ásia é o suficiente para demonstrar que algo vai mal por aqui. No início dos anos 80, tanto a produção industrial quanto as exportações do Brasil eram superiores à soma da China e Coreia. Atualmente, as exportações de China são de U$ 2,7 tri, Coreia de U$ 720 bi e do Brasil U$ 213 bi; na produção industrial mundial a China responde por 30%, Coreia 3% e o Brasil 1,19%.
Desde os anos 80 o Brasil está se desindustrializando e os sinais do abandono da indústria estão em toda parte, mas vieram ao conhecimento público por meio da crescente desmobilização das montadoras de veículos e o recente desastre na área de óleo e gás que ocasionou a fuga de trilhões de investimentos e milhões de empregos. Estes eventos podem ser avaliados por meio de indicadores, como o de complexidade tecnológica, que mensura a inserção da tecnologia na economia, e vem decrescendo continuamente, ou mesmo a decadência no índice de inovações e número de patentes em escala mundial. Assim, no lapso temporal de 40 anos o Brasil foi atropelado pelos países asiáticos e o contexto atual demonstra que o Brasil deve permanecer nesta queda livre, porque não conta com políticas industriais e insiste no modelo fracassado baseado na agroindústria e nas commodities. Não há registro na história mundial de um país que tenha se desenvolvido investindo apenas nestas áreas.
São vários os obstáculos para a inserção do país nesta onda de inovação e empreendedorismo, mas na base deste problema está a ausência de um Sistema Nacional de Inovação - presente em todos os países que surfam esta onda – composto pelo arranjo entre governo, empresas, universidades e instituições de pesquisa. Esta ausência é o reflexo da ineficiência e o desinteresse dos governantes nas atividades de planejamento e articulação de ações de fomento ao parque industrial baseado no conhecimento tecnológico.
Mas se é evidente o fracasso desta onda, por que diariamente nos deparamos com uma grande mobilização nas redes sociais e são promovidos tantos eventos e seminários sobre o tema? Não é uma resposta fácil. Evidentemente, ocorrem avanços pontuais que representam algum alento para o movimento da inovação no Brasil, como por exemplo, nos polos tecnológicos que entre fluxos e refluxos vão se instalando lentamente no país, embora ostentem uma participação ínfima na economia nacional. Aparentemente, estamos sob a força da retórica das poderosas mídias sociais subsidiadas pelo interesse no marketing das empresas e instituições de classe empresariais, que encontram um contexto favorável no mundo informacional para introduzir suas narrativas enviesadas e assim consolidar posições estratégicas de mercado.
Todos estes temas são instigantes e aguardam uma síntese, mas vamos deixar este problema por hora para nos dedicar ao contexto contraditório do nosso engenheiro, assediado por esta retórica massiva sobre inovação e empreendedorismo (Vargas;2021) e a sua depreciação no mercado, que está evidente pela falta de oportunidades e decréscimo nos salários da categoria.
No plano técnico a onda de inovação foi responsável por algumas modificações que alteraram a realidade do engenheiro. A pesquisa tecnológica, até então confinada às universidades, foi redirecionada para os laboratórios das empresas (Nelson;1990) e deu origem aos grandes polos tecnológicos espalhados pelo mundo desenvolvido. Neste processo nunca ficou tão evidente a necessidade de qualificação dos recursos humanos nas empresas para transferir e consolidar este 3 conhecimento como variável fundamental neste novo movimento de desenvolvimento chamado de economia do conhecimento. Por outro lado, houve um movimento importante para aproximar a Engenharia do business e de um turbilhão de exigências associadas ao perfil imediatista dos executivos pressionados por investidores. Ao mesmo tempo, foram propostas dinâmicas de trabalho multidisciplinares com exigências de novas metodologias, muitas delas produtos de conciliações entre técnicas para acomodar a diversidade das disciplinas. Algumas destas novas dinâmicas alcançaram resultados satisfatórios nos grandes polos tecnológicos espalhados pelo mundo, mas no Brasil ainda não ultrapassaram os limites da retórica.
Quem transita na área de Engenharia no Brasil percebe que estas modificações provenientes da onda de inovação, criaram situações ambíguas, onde não estão contempladas nem as boas soluções de problemas de Engenharia nem o encaminhamento de questões administrativas. As questões técnicas se embaralham com questões de marketing, comerciais e legais e remetem a situações ainda mais complexas em decorrência dos prazos exíguos exigidos pelo imediatismo dos executivos. Há uma clara confusão entre a adoção de posturas que privilegiam a multiplicidade de opiniões em detrimento do aprofundamento dos temas que associada ao ritmo açodado, compromete a qualidade dos resultados técnicos, e, por consequência, as tomadas de decisão.
Neste paradigma de multidisciplinaridade forçado e açodado há uma evidente desvantagem da abordagem técnica, pois as soluções baseadas em procedimentos metodológicos demandam tempo, exigem estudo e, por outro lado, a sua complexidade nem sempre permite a sua disponibilização em um nível acessível a todos os envolvidos. Portanto, está em curso uma rarefação do conhecimento técnico entre tantos palpites que contribui para as soluções de Engenharia tornarem-se fatores menos importantes nos processos de decisão das corporações. Nesta correlação de forças, o rigor das soluções de Engenharia cedeu espaço para as narrativas circunstanciais baseadas em conceitos de convencimento e empatia.
A fluidez deste processo nas empresas é explicada: palpitar é fácil, não demanda trabalho ou estudo e está associada a palavras liberdade e criatividade que sempre exerceram uma atração em todas as áreas do pensar. Ao mesmo tempo os resultados são mais adequados ao perfil imediatista dos executivos e investidores em busca de retornos rápidos no contexto de uma linguagem simplória e minimalista de poucas ideias, muitas siglas e incontáveis anglicismos. Evidentemente, requisitos como qualidade, precisão e responsabilidade sobre os resultados são minimizadas nesta “onda de criatividade e liberdade”. Neste contexto, a forma prevalece sobre o conteúdo e, a adoção de discurso baseado na hegemonia da onda de competitividade e inovação criou uma zona de conforto para esta tendência que é difícil de ser combatida. Por exemplo, é frequente a evocação do livre pensar ou “pensar fora da caixa” sobre um determinado assunto, ignorando que o estilo livre é fundamentado sobre bases sólidas de conhecimento e possui uma relação de compromisso com o seu estado da arte e, portanto, demandam tempo de estudo, 4 trabalho e jamais podem ser negligenciadas. Para ficar nas palavras de Thomas Edson, a criatividade é "1% de inspiração e 99% de transpiração”.
Após este diagnóstico inicial para identificar algumas novas demandas sobre as atividades do engenheiro seria interessante avançar nas explicações sobre o porquê este assédio do perfil palpiteiro e especulador encontrou solo fértil entre nós, engenheiros.
Sem dúvida, este estereótipo possui fortes raízes culturais na história do país. Os grandes intérpretes da sociedade brasileira como Sérgio Buarque (1902-1982), na sua descrição do homem cordial, ou mesmo a construção do herói sem caráter de Mário de Andrade (1893-1945), no romance Macunaíma, chamaram a atenção às peculiaridades da alma mestiça do brasileiro. Há quase um século eles conseguiram captar as origens daquele que mais tarde seria o estereótipo do malandro das terras tropicais, o esperto que gosta de levar vantagem em tudo com uma boa conversa e que foi popularizada em um simples comercial de TV como a “lei de Gérson” nos anos 70. Para complementar esta figura, podemos ir um pouco mais longe na história e buscar subsídios na educação jesuítica a preferência pela abordagem retórica-literária e uma aversão as atividades manuais e práticas (Motoyama;2004). Portanto, a ideia do palpiteiro, possui fortes raízes na cultura nacional e sempre está à espreita para se manifestar.
Mas se os grandes mestres da sociologia trouxeram os elementos teóricos fundamentais para explicar as origens destes fatores sociais importantes na formação do brasileiro, uma das melhores sínteses destes traços culturais foi construída por Lima Barreto (1881-1922), um dos nossos grandes escritores1. No conto clássico de Lima Barreto, “O Homem Que Sabia Javanês” (publicado na Gazeta da Tarde, RJ em 28/04/1911), o personagem Castelo busca oportunidades de ganhar algum dinheiro e responde ao anúncio de uma família aristocrata que procura uma pessoa com conhecimento no idioma javanês. Sem saber uma única palavra no idioma, Castelo apresenta-se como um tradutor e, por meio de uma retórica habilidosa, ludibria as pessoas, participa de vários eventos como tradutor de javanês, e consegue um reconhecimento social que o permite desfrutar das mordomias da burguesia carioca. Lima Barreto era um crítico social arguto e conseguiu neste conto expor com maestria um personagem sempre presente na história nacional na figura do palpiteiro com talentos de especulação e, especialmente, a possibilidade de seu sucesso social na elite brasileira, reconhecida por sua superficialidade e hipocrisia.
Cento e dez anos após a publicação deste conto, podemos afirmar que os homens que falavam javanês se multiplicaram em várias áreas da sociedade, no mundo corporativo, inclusive na Engenharia, onde as novas ondas baseadas em fundamentos pseudocientíficos o pressionam para “pensar fora da caixa por meio de técnicas para solução de problemas de forma coletiva e colaborativa, utilizando metodologias inovadoras e disruptivas, sintonizadas com a demanda de mercado”.
Alguém poderia argumentar que esta hipótese está fadada ao fracasso porque uma postura baseada apenas na conversa jamais poderia alcançar resultados práticos. Mas sempre é bom lembrar que estas questões estão imersas em narrativas que remetem aos nossos profundos laços culturais da retórica e, portanto, estão submissas a leituras e releituras condicionadas por interesses corporativos e políticos. Este sistema, assistido pelas mídias sociais, tem o poder de mitigar os erros e adiar as derrotas.
O imediatismo e as narrativas tendenciosas impedem o entendimento das questões em sua totalidade e tornam inevitável recorrer às raízes históricas para aprofundar e, especialmente, propor soluções para superação das limitações impostas por um contexto em constante movimento. Especialmente, em um momento quando uma crise política e socioeconômica no Brasil é desafiada pela globalização de uma sociedade informacional e as alternativas apresentadas não correspondem às necessidades de um país empobrecido e com poucas perspectivas. Todas estas questões formam um caldo de complexidade que requer o estudo aprofundado e o engajamento de todos os setores sociais.
Infelizmente, estas reflexões ainda não compõe a pauta das instituições representativas dos engenheiros, que em sua maioria, preferem aceitar uma realidade prejudicial à categoria e criam arremedos para aderir à uma onda mundial por meio de propostas superficiais e imediatistas disseminados nas mídias sociais. Com todos os problemas enfrentados pela profissão neste momento, desde o desemprego às perdas salariais, passando pela fragilização dos sindicatos, certamente não vai ser esta imersão no mundo do javanês corporativo que encontraremos uma resposta.
1Por curiosidade, frequentou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro e apenas desistiu devido a obrigações familiares.
*Renato Vargas é engenheiro mecânico com mestrado e doutorado na área pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda. (NEP) e coordenador da Relief, plataforma EAD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural por elementos finitos.