Mais de 200000 estrangeiros ingressaram no país nos últimos quatro anos para trabalhar em setores que sofrem com o apagão da mão de obra. Muitos são refugiados da crise, mas outros são globalistas - profissionais que já não veem fronteiras no mercado de trabalho
AO LONGO DOS ÚLTIMOS QUATRO anos, o mercado de trabalho no Brasil sofreu uma reviravolta histórica, e isso se refletiu nos fluxos migratórios com o exterior. O Brasil passou de exportador de mão de obra a um país que recebe de volta os brasileiros que saíram - cerca de 1 milhão retornou. Junto com isso, aumentou a entrada de trabalhadores de outras nacionalidades, em especial de pessoal qualificado. Nesse período, mais de 200000 estrangeiros receberam autorização para exercer trabalho temporário ou em caráter permanente no país. Só no ano passado foram emitidas quase 70000 autorizações. O fenômeno é global. E, em parte, tem relação com o momento econômico. A crise reduziu a oferta de vagas para pessoal bem formado nos países desenvolvidos, ao passo que a expansão das economias emergentes abriu espaço para a contratação de profissionais qualificados - nem sempre disponíveis nesses países. Um levantamento feito pela consultoria Ernst & Young, a pedido de MELHORES E MAIORES, identificou que, hoje, entre os países que mais exportam mão de obra, estão os mais afetados pela crise na União Europeia - ao passo que os que mais recebem são os emergentes com potencial de crescimento. Gregos têm buscado vagas na Austrália e na China. Italianos tentam colocação na Argentina. O Brasil é o destino preferido de portugueses e espanhóis. Em uma reportagem recente, a revista Bloomberg Business Week recomendou o Brasil como uma das cinco melhores opções para os americanos que pensam em emigrar - as demais são Canadá, Austrália, Índia e Rússia. Numa perspectiva mais ampla, a crise aparece como o catalisador de um fenômeno novo: a globalização do mercado de trabalho. "A mobilidade internacional que se vê hoje não é apenas circunstancial", diz Tatiana da Ponte, consultora da Ernst & Young que acompanha expatriados nos140 países em que a consultoria atua. "Faz parte também de uma mudança estrutural na forma de ver o mercado, tanto de empregadores quanto de empregados."
Do lado das empresas, o aumento no fluxo de imigrantes sinaliza que globalizar a busca de talentos faz parte da estratégia para garantir os melhores profissionais. Tradicionalmente, existem duas maneiras de preencher uma vaga, principalmente a que exige mais qualificação. A empresa pode formar a pessoa, o que é eficiente, mas demanda tempo. Ou pode tirá-la de um concorrente, o que significa pagar mais caro por um funcionário cujo retorno é uma incógnita. Recentemente, uma terceira via passou a ser adotada: selecionar os profissionais em países onde a mão de obra é qualificada e farta, e os custos, competitivos, e transferi-los. "Hoje em dia, não interessa para as empresas de onde os funcionários vêm, mas o que eles sabem", diz Ricardo Ferreira, vice-presidente do grupo Alatur, consultoria especializada em mobilidade corporativa.
Multinacionais com operações em vários países já possuem estruturas globais de contratação que facilitam o intercâmbio. No entanto, mesmo empresas que ainda não se internacionalizaram já recorrem a essa alternativa. A G-light, uma empresa de capital nacional com sede em Feira de Santana, na Bahia, foi buscar em Viena, na Áustria, o designer industrial Johannes Diem, de 30 anos. A Glight fabrica lâmpadas, luminárias e acessórios de iluminação e não encontrou no Brasil um profissional que dominasse as ferramentas de informática mais modernas utilizadas para projetar os atuais equipamentos de iluminação. Uma das tarefas de Diem é passar seus conhecimentos aos colegas brasileiros.
Outra vertente dessa mobilidade global é alimentada por indivíduos. Muitos profissionais estão procurando países emergentes por iniciativa própria, por acreditar que podem enriquecer o currículo e melhorar os rendimentos atuando em economias com potencial de desenvolvimento, como a brasileira. Esse grupo faz parte de uma nova geração que não vê fronteiras no mercado de trabalho. Os especialistas de recursos humanos apelidaram esses trabalhadores de globalistas. Os primeiros atuavam nos setores de petróleo e mineração, motivados pela própria dinâmica da exploração de matérias-primas que, a cada reserva localizada e explorada, demanda o movimento de levas de profissionais qualificados pelo mundo afora. Hoje, no entanto, já é possível encontrar globalistas nas mais diversas áreas. O chileno Ismael Rivera Rebolledo, de29 anos,técnico em informática,pediu demissão do emprego que tinha em Santiago porque acreditou que o mercado brasileiro lhe ofereceria oportunidades mais vantajosas. Desembarcou no Rio de Janeiro em 2008 sem nenhuma oferta de trabalho, mas, em três meses, já estava empregado como analista de suporte técnico na Lumis, empresa carioca de serviços de tecnologia. O casal venezuelano Irene Ferrer, de 30 anos, e Rafael Zapata, também de 30, segue uma cartilha parecida. Depois de trabalhar em Caracas nas multinacionais Colgate-Palmolive e L'Oréal, Irene pediu demissão para fazer um MBA na IE Business School, na Espanha. Enquanto isso, Zapata, gerente da área financeira da empresa de consumo P&G, aceitou uma promoção para trabalhar no Panamá. Em2010, ambos decidiram se mudar para o Brasil. O marido conseguiu uma transferência, e Irene, que chegou desempregada, alcançou, em oito meses, o cargo de gerente na divisão de tintas decorativas da sueca AkzoNobel, em São Paulo.
Numa perspectiva histórica, não é exagero dizer que os trabalhadores vindos de outros países ajudaram a constituir as bases da economia nacional. Em sua maioria, eram campesinos ou artesãos que fugiam da pobreza, da guerra e da falta de horizonte nos países de origem. No entanto, vieram munidos de uma força de vontade para o trabalho que se mostrou excepcional. Os primeiros chegaram no século 19. O Império distribuiu cidadania e terras, principalmente a alemães e italianos, para povoar a Região Sul, sempre ameaçada por invasões dos vizinhos hispânicos. O mo. delo de plantio em minifúndios, adotado até hoje na Serra Gaúcha para o cultivo da uva, é herança desses precursores.
FAZ PARTE DA NOVA ESTRATÉGIA DAS EMPRESAS GLOBALIZAR A BUSCA DE TALENTOS
Da segunda metade do século 19 à primeira metade do 20, o Brasil abriu os portos para imigrantes do mundo inteiro que estivessem dispostos a substituir o trabalho braçal dos escravos alforriados na lavoura do café ou tornar-se operários na nascente indústria local. Estima-se que nessa época vieram para cá 5 milhões de estrangeiros. Entre eles estavam os fundadores de muitos negócios que hoje integram a lista dos 200 maiores grupos em operação no país. O prussiano Johannes Heinrich Kaspar Gerdau, fundador do grupo siderúrgico Gerdau (1021ugar no ranking dos 200 maiores grupos), chegou em 1869 e estabeleceu-se em Porto Alegre com o nome de João Gerdau. O português Valentim dos Santos Diniz desembarcou no Rio de Janeiro em 1929. Encantado com a beleza do Pão de Açúcar, guardou o nome do morro para batizar a doceria que fundou em São Paulo e deu origem ao maior varejista do país (8° posto na lista dos maiores grupos).
Hoje, a maioria dos novos imigrantes é requisitada porque tem uma formação mais sofisticada e pode contribuir para ajudar o Brasil a ingressar em um novo ciclo de desenvolvimento. O setor recordista em importação de conhecimento é a cadeia de petróleo e gás. De 2008 a 2011, empresas dessa área contrataram quase 60000 estrangeiros. Na lista de trabalhadores estão nacionalidades com pouca representação no país, como filipinos e indianos. Esses profissionais ajudam a criar as tecnologias para a exploração do pré-sal, desafio sem precedente na história do setor petrolífero, já que nunca se extraiu o óleo de águas tão profundas e a tanta distância da costa. Outra área atrativa é a construção civil, que chama a atenção principalmente dos espanhóis. A Espanha passou por uma explosão imobiliária ao longo da década passada e a atual crise ceifou vagas principalmente na construção civil. Em contrapartida, o Brasil vive um novo ciclo de obras de infraestrutura e carece de trabalhadores especializados nesse setor. "Existem milhares de engenheiros, arquitetos e outros profissionais ligados ao mercado de construção interessados em ingressar no Brasil para suprir as carências que o país tem nesse campo", diz a espanhola Maria Luisa Castelo, diretora executiva da Câmara de Comércio Espanhola no Brasil. A taxa de desemprego na Espanha chega a 24% e quase 2 milhões de espanhóis vivem em outros países para garantir um emprego. O Brasil já é o terceiro mais procurado, depois da Argentina e de Cuba.
O IMIGRANTES FUNDARAM MUITOS DOS 200 MAIORES GRUPOS BRASILEIROS
Isso não significa que o Brasil não está atraindo profissionais menos qualificados. Eles também estão vindo, mas, não raro, na clandestinidade. Autuações do Ministério do Trabalho já encontraram bolivianos em confecções trabalhando em situação análoga à de escravos. Batidas da Polícia Federal para coibir a pirataria em shoppings irregulares flagraram coreanos e chineses vivendo como clandestinos. Também foram encontrados refugiados haitianos na Zona Franca de Manaus. Esses estrangeiros ocupam vagas menos qualificadas e recebem salários baixos, que muitos brasileiros recusam.
Ciente de que o Brasil precisa de força externa, a postura do governo tem sido mais flexível. De um lado, está liberando visto para profissionais qualificados. De outro, tem concedido anistia a ilegais. Cerca de 45000 clandestinos foram legalizados em 2009. O maior de todos os avanços na esfera legal, no entanto, será a aprovação do projeto da nova lei de imigração, que está no Congresso. O atual Estatuto do Estrangeiro, de 1980, foi elaborado pelo regime militar e impõe restrições sem sentido aos forasteiros. Um exemplo: proíbe que eles participem de atos públicos. Isso significa que seria possível dar voz de prisão aos ambientalistas de outras nacionalidades que estiveram em manifestações na Rio+20. "Somos um país que sempre recebeu bem os imigrantes", diz Paulo Abrão, secretário do Ministério da Justiça. "A nova lei vai preservar essa tradição e ampliar os direitos dos estrangeiros no Brasil."
Imprensa – SEESP
* Reportagem da revista Exame – de Alexa Salomão e Patrícia Ikeda