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28/02/2014

Artigo – Lições de um verão escaldante

Este verão ainda nem acabou, mas já marcou seu lugar na História. Não apenas por ser dos mais quentes, mas por revelar o quanto ainda precisamos fazer para lidar melhor com os chamados “eventos extremos”. Vejamos algumas situações:

1) O verão mais quente das últimas décadas no Brasil (em São Paulo, foi o janeiro mais quente dos últimos 71 anos) e as ondas de frio recorde no hemisfério norte podem ser fenômenos climáticos mais frequentes e intensos daqui para frente. É o que apontam os relatórios recentes do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU). Convém conhecer melhor esses estudos e incorporá-los ao planejamento estratégico dos países.

2) Segundo o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), das 10 temperaturas mais quentes registradas no mundo no dia 31/12/2013 em todas as 4.232 estações meteorológicas acessadas pelo INPE, 9 aconteceram aqui Brasil : Joinville (SC) apareceu no topo do ranking com sensação térmica de 57ºC. O Rio de Janeiro ficou em segundo com 51ºC. Estamos efetivamente inseridos na geografia dos eventos extremos e essa não é uma boa notícia. Importa fazer chegar essa informação aos tomadores de decisão.

3) Desde 2009, todos os picos de consumo de energia no Brasil vêm acontecendo na parte da tarde (entre 14h39 e 15h41) e não mais no início da noite. Essa mudança de padrão é atribuída ao uso intensivo de aparelhos de ar-condicionado e ventiladores para enfrentar o calor no momento mais quente do dia. Como boa parte desses equipamentos desperdiça energia, é preciso exigir dos fabricantes padrões mais elevados de eficiência desses e outros produtos, que precisam ser certificados de acordo com os mais rigorosos protocolos. Não fazer isso significa premiar o desperdício.

4) Verão de calor intenso combinado com falta de chuva ameaça o abastecimento de água nas cidades e a produção de energia a partir das hidrelétricas. Quando o nível dos reservatórios cai, as companhias de abastecimento oferecem descontos para quem economiza água e organizam racionamentos escalonados. É o que se espera delas. Já no setor elétrico, “economia” e “racionamento” de energia são palavrões. Desde o apagão de 2001, sucessivos governos se esmeram em garantir toda a energia de que a população necessita, sem qualquer orientação em favor do consumo consciente ou da eficiência energética. Fontes do governo me confirmaram que o entendimento prevalente é o de que ações nesse sentido poderiam ser confundidas como sinais de fraqueza de quem não consegue eliminar por completo o risco de apagões e que, por isso, “pede ajuda à população”. Um absurdo completo.

5) Diversificar a matriz energética é algo importante e urgente. Mas o Brasil ainda derrapa na execução de projetos. É o que o acontece, por exemplo, com a energia do vento. O país já soma 144 parques eólicos prontos, mas 48 deles não estão ainda interligados ao sistema por falta de linhas de transmissão. Seriam 1.265 megawatts a mais, o suficiente para abastecer Salvador. Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica, 12 destes parques entram em operação este mês e outros 16 em março. Até lá, nos viramos com o que temos. Em relação ao futuro, a própria ANEEL admite que dos 42.750 MW de projetos outorgados de várias fontes (hidrelétricas, térmicas, eólicas) para entrar em operação entre 2014 e 2020, 6.455,1 MW (15% do total) simplesmente não têm previsão para entrar em operação por problemas diversos. Esses projetos que ninguém sabe dizer quando estarão concluídos produziriam energia para quase 26 milhões de pessoas.

6) Já se foi o tempo em que os reservatórios cheios de água garantiam o consumo de energia do país por até três anos seguidos sem chuvas. Hoje isso não passa de 5 meses. Desde a década de 1990 tem sido mais fácil licenciar e construir hidrelétricas sem barragens, com menos áreas alagadas e impactos ambientais. Entretanto, sem novos reservatórios de grande porte, o Brasil perdeu a capacidade de estocar água da chuva como fazia antes. Ficamos mais vulneráveis e abrimos caminho para as fontes sujas, que são mais caras e poluentes. Neste verão sem chuvas, o ONS autorizou a compra de 11.500 MW de energia das termelétricas, que é quase o que produz uma Itaipu (14.000 MW). Pergunta-se: sujar desse jeito a matriz energética seria a única alternativa que temos para compensar a perda dos reservatórios? Não teríamos outras opções menos impactantes para o bolso e o meio ambiente?

7) No país campeão mundial de água doce, a hidroeletricidade continua sendo uma vantagem estratégica. Mesmo não sendo mais possível construir usinas com grandes reservatórios por conta dos impactos ambientais, o potencial estimado de produção é de 250 mil megawatts. Hoje exploramos apenas um terço disso (80 mil MW). O horizonte de investimentos aponta para as bacias hidrográficas da Região Amazônica. Um relatório da Coppe/UFRJ financiado pelo Banco Mundial indica que as maiores usinas hidrelétricas em construção hoje no país (Jirau, Santo Antônio e Belo Monte) podem não produzir toda a energia prevista porque foram planejadas levando-se em conta a média das chuvas das últimas décadas. Só que o padrão de chuvas está mudando. Já não está na hora dos tomadores de decisão levarem mais a sério esses estudos que medem a mudança do ciclo das chuvas?

8 ) Há quase dois anos o Brasil decidiu acertadamente regulamentar a microgeração de energia, ou seja, deu sinal verde para que qualquer cidadão pudesse produzir energia em pequena escala, desde que de fonte limpa e renovável, interligado à rede de distribuição. No final do mês, a conta de luz traria em valores monetários a diferença entre o que o cidadão gerou para a rede e o que consumiu da rede. Dependendo do que for gerado, é possível obter excelentes descontos ou até não pagar mais a tarifa de luz. A intenção da medida era estimular as pessoas a participarem ativamente da geração de energia reduzindo os custos do governo com grandes usinas e linhas de transmissão. Só que os Estados decidiram cobrar ICMS sobre essa energia gerada a partir do esforço de cada cidadão. Apenas Minas Gerais e Tocantins abriram mão desse imposto abusivo e imoral. Dependendo da distribuidora de energia, cobram-se ainda PIS e COFINS. É assim que se mata uma boa ideia.

9) Precisamos incorporar ao planejamento urbano o conceito de “cidade resiliente”, ou seja, aquela que se protege de maneira inteligente das mudanças climáticas. É a agenda da “adaptação”. Se as mudanças climáticas já estão ocorrendo, é preciso prevenir tragédias e desastres com investimentos pontuais em setores estratégicos. O desconforto térmico causado por temperaturas elevadas pode ser atenuado com mais áreas verdes, menos “ilhas de calor”, mais áreas disponíveis para o banho seguro com a despoluição de praias/rios e lagoas e estímulos a construções sustentáveis (greenbuilding) nais quais se explore ao máximo sistemas de ventilação cruzada, telhados verdes e outras técnicas que atenuam o desconforto térmico.

10) Eventos extremos como esse merecem respostas rápidas das autoridades. É preciso definir novos protocolos de emergência quando a temperatura subir muito, orientando a população a eventualmente não sair de casa em certos horários ou mesmo dispensando a necessidade de seguir para o trabalho. A sensação térmica de aproximadamente 50ºC levou a Secretaria de Educação de Santa Catarina a adiar o início das aulas nesta semana de fevereiro em vários municípios. Diversos órgãos públicos pelo Brasil já dispensaram o uso de paletó e gravata de seus funcionários. No Rio de Janeiro, servidores municipais foram autorizados a usar bermudas até o joelho. O benefício alcançou também os motoristas de táxi. No caso dos motoristas de ônibus, a liberação depende de cada empresa. No futebol, a parada técnica para hidratação dos jogadores é respeitada em alguns campeonatos estaduais. No Rio, entretanto, isso não é o suficiente para aplacar o desconforto dos jogadores que disputam partidas no estádio de Moça Bonita, em Bangu (um dos lugares mais quentes do Brasil) às 17h, horário de verão. Como se vê, precisamos avançar muito na direção de uma sociedade que responda com inteligência aos chamados eventos extremos.


* por André Trigueiro, jornalista. Artigo publicado originalmente no site de notícias G1









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