As crianças dormiam na noite de quarta-feira 30. Sentiam-se protegidas na escola dirigida pela ONU no campo de refugiados de Jabaliya, em Gaza. Em suma, um edifício neutro e, portanto, sem riscos de ser alvo de ataques israelenses. Não foi o caso. A artilharia do Tsahal, ou IDF, o exército israelense, abriu suas ferozes bocas de fogo e destruiu a escola. Ao menos 15 pessoas, a maioria crianças e mulheres, morreram. Mais de uma centena de feridos. Restos de corpos foram recolhidos para ser identificados e sepultados. Chocado, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, chamou a chacina de “ultrajante e injustificável”. Injustificável porque administradores da escola haviam avisado inúmeras vezes Israel: naquele edifício, dormiam refugiados. O IDF confirmou ter atingido a escola, mas sustenta ter apenas respondido a foguetes lançados das cercanias por militantes do Hamas.
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Este sexto ataque contra uma escola administrada pela ONU, foi, sem dúvida, uma violação do chamado direito internacional, se é que existe. Segundo um comunicado da ONU de quinta-feira 31, as três semanas de guerra deixaram mortos 1.263 palestinos, a vasta maioria de civis, e 59 israelenses, todos militares, com exceção de três civis. Como se vê, o Golias judeu bombardeia mesquitas, hospitais e, na segunda-feira, até o único gerador de energia de Gaza, pequeno território onde vivem 1,8 milhão de almas espalhadas por 42 quilômetros de extensão e 10 de largura. De lá não há escapatória para o mundo, visto que as saídas de Erez, para Israel, e de Rafah, para o Egito, estão fechadas. Quanto à destruição do gerador de energia, terá um impacto ainda maior nos abastecimentos de água e eletricidade e no tratamento de esgotos. No entanto, segundo a ONU, também o Hamas comete violações. A legenda com braço armado eleita em 2006, de Gaza lança foguetes Qassam e mísseis contra o território israelense, embora quase sempre sem provocar baixas.
Diante desse quadro de forças desproporcionais, o premier Benjamin Netanyahu parece desconhecer, ou não acreditar, no tal direito internacional. Líder da legenda conservadora Likud, Netanyahu é, como se diz, um falcão. No entanto, sofre pressão de dois falcões ainda mais linha-dura: Avigdor Lieberman e Naftali Bennett, respectivamente, os ministros do Exterior e da Economia. Lieberman, um ex-leão de chácara nascido na Moldávia, 55 anos, quer expulsar os árabes israelenses, ou um quinto da população, de Israel. Na semana passada, Magid Shihade, professor de Ciências Políticas da Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, disse a CartaCapital: “O sionismo é uma ideologia racista e colonial. Baseia-se na desapropriação, na deslocação e na separação das pessoas, na supremacia dos judeus sobre os árabes palestinos nativos”.
E o que faz Barack Obama? Segundo Mokhtar ben Barka (leia quadro), especialista em políticas dos EUA e do Oriente Médio e professor da Universidade de Valenciennes, “aquele ambicioso e promissor presidente que ao ser eleito em 2009 pronunciou um discurso no qual defendeu a coabitação de dois Estados, um palestino e outro israelense, agora se porta como um derrotado”. É um homem arqueado, diz Ben Barka, sem espinha dorsal. Obama defende o direito de “autodefesa” de Israel, mas agora o inquieta o massacre de palestinos e pede um cessar-fogo a Netanyahu. O qual retruca: “Só vamos pôr um fim na guerra quando tivermos destruído todos os túneis (construídos pelos palestinos para atacar Israel e, em outros tempos, comerciar com o Egito), e tivermos desarmado o Hamas”. Significa que nada se importa com Obama. De resto, manda às favas quem protesta, sem exceção.
A reação de Washington ao ataque à escola da ONU foi simplesmente covarde: uma porta-voz condenou a chacina, mas não deu nome aos bois. Pior: enquanto pede um cessar-fogo, Washington oferece armas a Israel. Na quinta-feira 31, a alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay afirmou que os Estados Unidos “não só forneceram a Israel artilharia pesada usada em Gaza, mas gastaram quase 1 bilhão de dólares para proteger o país de foguetes palestinos”. Essa proteção, emendou Pillay, os “civis de Gaza não têm”. Para piorar o quadro, a comissária denunciou o fato de os EUA ajudarem Israel também em época de paz. Outra contradição americana: Washington pede para Israel colocar fim aos assentamentos na Cisjordânia, a outra parte não adjacente da Palestina, enquanto ajuda financeiramente Tel-Aviv. E tem o bloqueio à Faixa de Gaza, que remonta, vale lembrar, a 2006, após a vitória do Hamas e o sequestro do soldado israelense Gilad Shalit, preso por cinco anos. Ambos os assentamentos e o bloqueio são ilegais, afirmou Pillay.
A chamada comunidade internacional começa a se inquietar. François Hollande, outro a apoiar Netanyahu no início da guerra, agora pede um cessar-fogo. Idem David Cameron, o premier britânico, embora enfatize que o culpado pela tragédia é o Hamas. Mais corajosa, e equilibrada na sua análise geopolítica, é a presidenta Dilma Rousseff, que defende a “solução de dois Estados”. Na segunda-feira 28, disse que a guerra é “desproporcional”. Trata-se de um “massacre”, emendou em uma sabatina organizada pela Jovem Pan, SBT, Folha de S.Paulo e UOL.
Embora reconheça o direito de autodefesa de Israel, a situação em Gaza, já havia avaliado na semana anterior o Itamaraty, é “inaceitável”. Àquela altura, a presidenta chamou para consultas o embaixador do Brasil em Tel-Aviv, Henrique Sardinha. Em Tel-Aviv, Ygal Palmor, porta-voz do ministério israelense de Relações Exteriores, chamou o Brasil de “anão diplomático”. Para Palmor, desproporcional foi a Seleção Canarinho ter perdido por 7 a 1 contra a Alemanha. De quem fala por Lieberman só podemos esperar declarações desse nível.
Em termos de geopolítica, o governo de Netanyahu também deixa a desejar. A razão-mor da guerra contra Gaza seriam os três adolescentes israelenses sequestrados e assassinados em junho na Cisjordânia. Outro motivo: os foguetes lançados pelo Hamas. E a partir de 17 de julho, o exército de Israel adentrou a Faixa de Gaza para destruir os túneis e desarmar o inimigo. No entanto, como diz em entrevista telefônica o ativista palestino dos direitos humanos Abdullah Kharoub, “a situação é mais complexa do que parece”. E emenda: “Esses ataques contra Gaza são injustificáveis”.
Consta que os adolescentes não teriam sido sequestrados e assassinados com a autorização do Hamas. Além disso, os foguetes seriam lançados de Gaza por grupos radicais envolvidos na disputa do poder no território. Quanto aos túneis, Netanyahu, segundo um editorialista do diário esquerdista Haaretz, sabia da existência deles faz tempo. Não os destruiu há um ano porque o turismo ia de vento em popa e a opinião pública não aprovaria sua decisão.
Kobi Huberman, coautor de The Israeli Peace Initiative, concorda. De Tel-Aviv ele diz a CartaCapital: “Esta guerra só pode terminar com a destruição dos túneis e o desarme do Hamas. Caso contrário, nunca teremos paz”. Indagado se o secretário de Estado John Kerry, atualmente ridicularizado em Israel porque busca como mediadores para a paz cataris e turcos, Huberman retruca: “Há um consenso entre outros países no Oriente Médio, que inclui a Arábia Saudita, a Jordânia e o Egito, entre outros”. Ainda Huberman: “Temos de negociar com Mahmoud Abbas, que é o presidente da Autoridade Palestina e representa os palestinos como presidente da Organização para a Libertação da Palestina”. O problema, diz Ben Barka, “é que Barack Obama, e por tabela John Kerry, encontra-se em uma situação difícil com o presidente egípcio Abdel-Fattah al-Sisi”. De saída, o governo americano levou tempo para reconhecer Sisi, que derrubou o presidente eleito Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana. Em seguida, Sisi prendeu Morsi e matou centenas de seus simpatizantes da Irmandade, que tem fortes elos com o Hamas.
Enquanto isso, o Surpremo Líder do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, disse ao longo da semana que é preciso armar o Hamas para acabar com o “genocídio” provocado por Israel, esse “lobo voraz” que mata inocentes. E se jihadistas começassem a escutar Khamenei? Finaliza Kharoub: “Esta vai ser uma longa guerra”.
* por Gianni Carta, jornalista e cientista político, é repórter de CartaCapital e consultor internacional do site da revista