Após sete meses em vigor, o Marco Civil da Internet (MCI) passará novamente por um processo de discussão e promete mobilizar as organizações sociais que atuam nesse setor. Desde 28 de janeiro está no ar uma plataforma (marcocivil.mj.gov.br) para promover o debate público sobre aspectos da Lei 12.965/14 que ainda demandam regulamentação. Conforme anunciado, a consulta ocorrerá nos moldes da construção do texto do MCI, em que todos os setores da sociedade puderam colaborar e debater de forma ampla e transparente. Em 2009, foram recebidas mais de 2 mil contribuições, posteriormente sistematizadas e transformadas em projeto de lei. Agora, o debate será em torno de quatro eixos – neutralidade, privacidade, registros de acesso e outros temas e considerações –, sobre os quais será possível opinar até 28 de fevereiro. A partir daí, será elaborada a regulamentação por meio de decreto presidencial.
Durante o lançamento da consulta pública, em Brasília, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, enfatizou a importância da nova fase de consolidação do Marco Civil. “Precisamos dar grande atenção a essa regulamentação porque bons textos às vezes são estrangulados por más regulamentações”, disse. O temor não é somente do representante do governo. Organizações sociais também esperam ampla participação para evitar retrocessos. “As pessoas têm que participar. Há um risco de que as conquistas que foram obtidas no processo legislativo sejam duramente reduzidas ou desconstruídas”, afirmou Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, referindo-se à pressão das operadoras de telefonia.
Neutralidade
O principal objetivo do setor empresarial, durante toda a tramitação do Marco Civil no Congresso Nacional, era a quebra da neutralidade da rede, que garante tratamento igual aos dados que trafegam pelos cabos das empresas. A regra, que prevaleceu, impede que haja cobrança diferenciada para acesso a certos tipos de conteúdo, a exemplo do que fazem as operadoras de TV a cabo. O conceito está claro na lei: “não pode haver discriminação de pacotes por motivo econômico, político, cultural, religioso ou comercial.” No entanto, na prática, as empresas provedoras vêm ferindo esse princípio ao oferecerem pacotes com acesso gratuito a determinadas aplicações, como redes sociais, privilegiando o tráfego de dados dessas em detrimento de outras.
Recentemente, o Ministério Público da Bahia instaurou inquérito civil contra a Tim por ofertar plano de internet com acesso grátis ao WhatsApp quando o cliente estiver sem créditos. O argumento do MP-BA é justamente a quebra da neutralidade. “Isso vai contra a nova lei, que é clara: as operadoras não podem oferecer pacotes de internet por tipo de acesso”, afirma o professor Marcos Dantas, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultor do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, da FNE.
Para Dantas, que neste ano assumiu o mandato de conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), a neutralidade deve gerar mais debate e, em sua visão, é justamente o ponto em que praticamente não cabe exceção, pois nada “deve interferir na escolha do cidadão a respeito dos serviços e conteúdos”.
Privacidade
Outros temas polêmicos durante a discussão do Marco Civil que voltam à pauta agora são a privacidade na rede e os registros de acesso. O artigo 15, incluído na lei aos 45 minutos do segundo tempo, determina a guarda de dados dos usuários por provedores de aplicação (como Google, Facebook) por seis meses, o que abre uma margem para a vigilância em massa na internet e retira o caráter anônimo da rede. Além disso, as grandes empresas podem lucrar mais com o mapa de navegação dos internautas. Na mesma linha, o artigo 13 estabelece que sejam mantidos os registros de conexão por um ano. Nos dois casos, as informações ficariam sob sigilo, mas poderiam ser requeridas por autoridade policial ou administrativa ou ainda pelo Ministério Público.
Essas exigências podem representar ainda o fechamento de inúmeros sites cujo modelo de negócio é baseado no respeito à privacidade ou daqueles de menor porte que não conseguirão bancar os custos do armazenamento de dados. “Se o Marco Civil não definir como esses dados vão ser guardados, quem pode acessá-los e como têm que ser destruídos, nossa privacidade estará correndo um sério risco”, adverte Barbosa.
Já a advogada e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Veridiana Alimonte, avalia que a atual legislação já traz garantias importantes que não precisam de regulamentação. “Sobre uso, coleta e armazenamento de dados pessoais, por exemplo, tem que haver um termo de autorização separado. Depois do texto sancionado em abril, eles (provedores) tiveram 60 dias para se adequar”, lembra.
O último e quarto eixo da consulta pública, “outros temas e considerações”, pode receber, por exemplo, contribuições relativas ao artigo 7º, que define que o “acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”. Para Barbosa, o dispositivo remete, conforme a Lei Geral de Telecomunicações, à prestação do serviço de acesso à internet em regime público. “Isso pode fazer toda a diferença na luta pela universalização da banda larga”, argumenta. Matéria publicada, originalmente, no jornal O Engenheiro, da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), Edição 153.
Deborah Moreira
Imprensa SEESP