Durante meus curtos 17 anos de jornalismo, duvidei que o discurso predominante nas narrativas jornalísticas fosse produzido numa perspectiva masculina e de dominação. Achava que o machismo e o sexismo estavam presentes quase que exclusivamente na publicidade – para ficar apenas na seara da comunicação, que é a minha praia.
Ingenuamente, alimentei essa percepção até o dia em que ouvi do editor-chefe do jornal do qual sou empregada que uma determinada editoria não deveria fazer matéria sobre o número de mulheres assassinadas no Cariri cearense “porque as estatísticas mostram que morrem mais homens assassinados do que mulheres”. A editora ainda retrucou: “você não entendeu, estamos falando de violência de gênero”. Ele deu de ombros e disse que era pauta de feministas.
Pois bem, achei que aquela postura do editor-chefe era isolada e refletia a linha editorial de um veículo pertencente a um grande grupo empresarial; de um jornal impresso onde a notícia é encarada como apenas mais um produto em série como fogões e botijões de gás.
Estava tudo perdido? Não! Jornalismo é resistência diária. Então, numa pauta sobre Dia Internacional da Mulher, convenci minha editora que a matéria deveria abordar a mulher e a responsabilidade na construção do desenvolvimento social e econômico. Ouvi dezenas de fontes que me indicaram um caminho: o empoderamento da mulher é fundamental para romper o clico de miséria numa sociedade.
Ao utilizar a palavra empoderamento numa manchete do caderno de Negócios, a editora disse: “mas que palavra é essa? Não dá para usar. As pessoas não vão entender”. Eu ousei e usei. A fonte principal era a ONU Mulheres e estava convicta de que, se meia dúzia de pessoas lessem toda a reportagem, já havia cumprido meu papel.
Pois bem, após fazer um curso da mesma ONU Mulheres, com apoio da Federação Nacional dos Jornalistas e do Sindicato dos Jornalistas do Ceará, descobri o quão forte é a violência simbólica-midiática sofrida pelas mulheres. Os padrões socioculturais estereotipados, mensagens e valores que reproduzem as desigualdades entre mulheres e homens permeiam as páginas de jornais, os noticiários na TV e no rádio, sim!
A prova mais recente desta violência veio às vésperas do Dia Internacional da Mulher neste 2015, sob a forma de um editorial do periódico mais antigo em circulação no Ceará. Sob o título “Pelo humanismo e contra o populismo” (http://migre.me/oULul), o jornal O Povo utiliza-se de argumentos completamente enviesados para condenar o Projeto de Lei 8305/2014 - que acabara de ser aprovado na Câmara dos Deputados -, tipificando como homicídio qualificado e crime hediondo o assassinato de mulheres.
O Mapa da Violência de 2012 mostra que o Brasil está na 7ª posição, em uma lista de 84 países, com maior número de feminicídios no mundo. Em 1º lugar está El Salvador, país que já tipificou o crime. Estudos do Instituto Avante Brasil apontam que, entre 2000 e 2010, foram assassinadas 43,7 mil mulheres no país, 41% delas mortas em suas próprias casas, muitas por companheiros ou ex-companheiros.
Para o jornal O Povo, em cujas páginas jorra o sangue de mulheres assassinadas por seus companheiros, “a lei aprovada não respeita nem sequer os absurdos e escandalosos índices de homicídios no Brasil. Disparadamente, as maiores vítimas não são as mulheres, mas sim os homens jovens com idade inferior a 21 anos”. O periódico faz crer que não existe violência contra a mulher, e sim uma “vergonhosa epidemia de violência que atinge a sociedade brasileira”.
Eu quero acreditar que a pessoa que redigiu esse editorial simplesmente não sabe o conceito de feminicídio e não consegue perceber a violência de gênero. Assim sendo, recomendo que leia o Guia para jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia, publicação da FENAJ e ONU Mulheres disponível inclusive na internet (http://migre.me/oULt6).
Caso o texto do editorial reflita realmente a linha ideológica de O Povo - um veículo tão tradicional, inclusive presidido por uma mulher, herdeira do legado de seu pai -, meus amigos, a situação é preocupante. Corramos todos para as montanhas ou lutemos para que a nossa mídia não seja cada vez mais excludente, machista, sexista e, em vez de combater, seja capaz de reforçar a discriminação de gênero, raça e etnia. Seria a morte do Jornalismo e seu propósito de servir à sociedade.
* por Samira de Castro, jornalista por formação, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Ceará e 2ª Tesoureira da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)