O engenheiro de segurança e ex-presidente da Apaest, professor da área em várias universidades brasileiras, Celso Atienza, nesta entrevista, fala sobre o incêndio que atingiu seis tanques de álcool anidro e gasolina no terminal de combustível da empresa Ultracargo – do Grupo Ipiranga. O sinistro começou no dia 2 de abril último, na área do Porto de Santos, no litoral sul paulista, e só foi totalmente debelado no dia 10. Foram nove dias intensos de combate às chamas.
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Atienza mostra as debilidades em engenharia de segurança que levaram ao desastre que causou temor à população das cidades da Baixada Santista e interrompeu o acesso ao complexo portuário por mais de quatro dias.
Como um incêndio dessa proporção pode começar?
Celso Atienza – O grande erro num acidente ou num desastre, e esse foi o caso desse incêndio, é que vários fatores não foram levados em consideração antes. Não se tem um desastre por um único erro, ele é a sucessão de vários erros. A isso chamamos, tecnicamente, de “vários fatores”. No caso de Santos, o armazenamento estava muito próximo, não foi obedecida a distância necessária entre os reservatórios para que o fogo não se propagasse tão rápido como ocorreu. Outro problema é com relação ao tanque de decantação, porque quando há um vazamento, que também é uma das possibilidades de se iniciar um incêndio, ele deveria ser escoado para um tanque de decantação, os projetos não têm essa previsão. Isso é uma situação básica de projeto de engenharia de segurança.
Qual a falha maior nesses acidentes que tanto ocorrem no País?
Celso Atienza – É que a engenharia de segurança não é chamada para fazer a análise dos projetos. Uma coisa é fazer o projeto do ponto de vista da engenharia civil ou construtiva ou de sistema de processo, onde não se analisam os elementos tóxicos envolvidos, e muito menos se imagina a reação que essas substâncias podem provocar com outros materiais presentes no local.
Foto: Sérgio Furtado/Estúdio 54
Outras falhas?
Celso Atienza – Como se inicia o combate ao fogo com água numa temperatura superior a 800 graus centígrados? Isso mostra um despreparo de estrutura de emergência. Os bombeiros só tinham à disposição esses recursos. Eles sabiam que isso não surtiria o efeito desejado, mas eles tinham de fazer alguma coisa até chegar outro tipo de material, como o pó químico. Esse material e outros esquemas de segurança já deveriam estar no local desde sempre. O Plano de Auxílio Mútuo (PAM) já deveria prever esse tipo de risco e, portanto, ter toda a infraestrutura necessária disponível. O bombeiro não teve recurso para combater o fogo, eles foram apenas com a coragem e idealismo. Alguns podem até pensar que o bombeiro “apanhou” da situação e que não sabia combater, ele não tinha recurso. O Brasil não previne e depois quer criar heróis. E aí o profissional vai para o sacrifício sem condições técnicas adequadas. Faltou, ainda, um sistema de espuma interno dentro dos tanques.
Foi uma fatalidade?
Celso Atienza – Não, de jeito nenhum. Foi uma tragédia anunciada. Fatalidade é um termo que não se usa em engenharia de segurança. Existe irresponsabilidade.
Como assim?
Celso Atienza – Faz-se uma instalação onde as preocupações são com a produção e conta-se com a sorte de que nunca vai acontecer nada. Existe uma técnica na engenharia de segurança que se chama “análise de risco e árvore de falhas”. Um complexo petroquímico, como é o caso da Ultracargo, está classificado na área de alto risco. Deve-se pensar e planejar a partir do que pode acontecer nesses acidentes. Se não se fez isso se subestimou a ação. No Brasil, a discussão acontece sempre pós-tragédias, nunca antes.
O projeto de engenharia de segurança é feito para prever as tragédias. Essa técnica nasceu nos Estados Unidos na época do presidente John Kennedy, quando se pensou em lançar o homem à lua. A missão deveria ser sem falhas, então se fez toda uma análise não só para lançar o homem no espaço, mas como trazê-lo vivo. A técnica consiste em indagar se um elemento pode falhar quais serão as consequências. É uma técnica que se busca a tragédia para que ela não ocorra. Sun Tzu [estrategista militar chinês, 544 a.C. - 496 a.C.] disse: “Se você quer a paz se prepare para a guerra.” Se você não quer que aconteça um desastre se prepare para ele.
Foi o que não se fez no caso da Ultracargo.
Celso Atienza – O que vimos foi o desastre acontecer e não havia qualquer preparo ou plano de emergência. E aí se saiu correndo atrás de uma indústria americana, de um pó que foi importado na hora [cold fire]. A Petrobras também foi acionada de forma emergencial. E se fala que houve uma ação integrada de um PAM que não fez nada, que não teve nenhuma ação, porque o papel desse plano é, inclusive, fazer fiscalização permanente e monitoração durante o processo de produção.
O que é potencializar o risco?
Celso Atienza – Aumento a dimensão da ocorrência para que eu tenha a noção do que pode ocorrer no futuro. É uma análise que tem de ser feita no projeto, na instalação. E aí pode ter um problema de custo, mas todo esse plano precisa ser encarado como investimento.
Quais as responsabilidades?
Celso Atienza – É geral. E muito grande da empresa, ela não foi diligente. Agora, fala-se em fazer leis ou normas de segurança, primeiro de tudo se deve cumprir as que já existem. Como é que vamos fazer outra lei se não cumprimos as atuais?
Qual a saída?
Celso Atienza – Tudo começa em melhorar a área de engenharia de segurança nas empresas, na linha do processo e do projeto. Uma vez um diretor de uma empresa disse para mim se eu sabia quanto custava as medidas de proteção que eu estava indicando. E eu respondi com outra pergunta: você sabe quanto custa não fazer?
A medida de segurança precisa ser encarada como investimento, e não custo. Quando a empresa Toyota construiu a sua fábrica em Sorocaba, não se falou em nenhum momento que a montadora “gastou” um bilhão de dólares, falou-se apenas em investimento. O gasto deve-se falar agora, porque ele aparece depois do acidente.
Esse incêndio aconteceu não por falta de legislação e normas de segurança.
Celso Atienza – Não. Aconteceu pelo não cumprimento delas. O que precisamos ver é que se precisa fazer mais engenharia, porque quem resolve isso é o profissional capacitado e qualificado – uma equipe multidisciplinar deve estar envolvida num projeto. Se faltar uma perna dessa equipe, vai faltar alguma coisa no projeto.
Lições?
Celso Atienza – Entre tantas, destaco que a empresa deve rever totalmente os seus procedimentos, mudando a sua cultura. O problema é esse. A cultura de segurança no porto é zero.
Rosângela Ribeiro Gil
Imprensa SEESP
Entrevista divulgada, originalmente, no site da Associação Paulista de Engenheiros de Segurança no Trabalho - Apaest