Em março último foram anunciados mais 55 projetos do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), entre esses a desestatização de 14 empresas estaduais de saneamento. Na sequência, em maio, o governo sancionou a Lei Complementar 159, que prevê a privatização de ativos estaduais, como os de saneamento, como contrapartida para o recebimento de ajuda financeira da União.
“Não tem sentido o governo falar que vai privatizar para corrigir déficits públicos, que não provêm da área de saneamento, inclusive”, destaca Manuel Carlos de Moraes Guerra, presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Presidente Prudente e engenheiro há 30 anos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
Também é falsa a ideia de que a privatização do setor vai atrair novos capitais, suprir a dificuldade pública de investimento ou garantir maior eficiência ao setor, como apontou Leo Heller, relator especial das Nações Unidas para água e saneamento e pesquisador da Fiocruz-Minas, em entrevista à Rádio CNB mineira, em agosto de 2016. “É temerosa a proposta do governo federal de recomendar aos estados brasileiros a privatização do saneamento”, vaticina. Guerra ratifica: “Garantir água de qualidade e tratar o esgoto são atividades custosas, que exigem compromisso com a população. A iniciativa privada tem como objetivo o lucro. São perfis incompatíveis com o saneamento.”
Além de não ser solução para o grave quadro atual, esse caminho pode representar piora. Em dezembro de 2016, resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o saneamento básico como um direito humano. Mais de 2,5 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso a banheiros e sistemas de esgoto adequados. No Brasil, segundo o Atlas de Saneamento 2011 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a rede coletora ainda está ausente em 2.495 municípios – 44,8% do total. Grande parte em estados das regiões Nordeste e Norte do País, com destaque para Bahia, Maranhão, Piauí e Pará, dentre outros.
O relator da ONU salienta: “É mais provável que o setor privado tenha mais eficiência nessa área ao assumir um sistema de água e esgoto que já está universalizado, quando todas as pessoas estão incluídas, quando não existe necessidade de expansão do sistema. Aí a concessionária vai apenas operar, e arrecadar bem.” Senão, pondera, a privatização se torna um grande risco, caso do Brasil. “A maior parte das cidades ainda não tem universalização com qualidade, esse processo dependerá de muito investimento.”
Guerra observa que a Sabesp teve lucro de quase R$ 3 bilhões em 2016, mesmo fazendo obras emergenciais para superar a crise hídrica que aconteceu na Capital em 2014 e dando continuidade à universalização dos serviços e às ligações de água, ao avanço do tratamento de esgoto nas cidades do Interior. “Ou seja, a gestão pública bem administrada dá muito certo. O problema é a ingerência política dentro dessas empresas; resolvendo isso, o setor público é o único que tem compromisso com a universalização dos serviços”, defende.
A companhia paulista – empresa de economia mista desde 2002, mas cuja gestão é do governo estadual – tem os índices mais altos na cobertura do tratamento da água e do esgoto do País. “É um exemplo, tem uma estrutura autossuficiente e consegue caminhar à universalização. Também podemos citar as companhias dos estados de Minas Gerais (Copasa) e do Paraná (Sanepar).” Ele questiona os argumentos de que gestão pública não é eficiente: “Isso não é verdade.”
Na contramão
O que chama a atenção de Heller é o País desconsiderar as experiências já consolidadas de 30 ou 40 anos em outras nações. Estudo da ONU de 2014 mostra tendência global de reestatização desses serviços, com 180 casos de remunicipalização do fornecimento de água e esgoto em 35 países, em cidades como Paris (França), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), La Paz (Bolívia) e Maputo (Moçambique).
Guerra explica que nesses casos, depois de um tempo, como as empresas tinham de manter o lucro, deixaram de investir, tornaram o sistema obsoleto, obrigando o Estado a intervir para poder voltar a oferecer um serviço seguro e de qualidade. “O aumento da população nos centros urbanos vai exigir sempre que se busque, por exemplo, água cada vez mais longe, como é o caso da capital paulista, e se faça esgotamento sanitário também crescente e mais distante. Imagine se isso vai ser feito pela iniciativa privada que só quer o lucro?”, provoca.
O profissional da Sabesp lamenta que um serviço público de tal magnitude fique atrelado ao levantamento de “caixa” ou a questões ideológicas. Para ele, melhor seria o governo abrir um debate sério sobre a questão com os profissionais ligados diretamente ao setor, como os engenheiros, e os da área da saúde. “Vamos perguntar aos médicos sobre a queda que houve, comparando São Paulo a outros estados, das doenças por veiculação hídrica”, explanou.
Por Rosângela Ribeiro Gil