Principal exportadora de bens de alto valor agregado do País, com 18 mil funcionários, dos quais 4 mil engenheiros, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) está em tratativas com a norte-americana Boeing, uma das maiores fabricantes de aeronaves civis e militares do mundo. É o que confirma ao Jornal do Engenheiro a comunicação corporativa da companhia nacional, “a respeito de uma potencial combinação”, mas sem responder o que isso pode significar para a empresa considerada estratégica em termos de defesa pela Lei 12.598/12. Tampouco se sabe se os postos de trabalho no País serão preservados. O Ministério da Defesa também não informa quais os termos da conversação, não obstante afirme que o controle acionário da Embraer não será “colocado à mesa de negociação”.
Desde que a notícia foi divulgada pela mídia, em dezembro último, a preocupação é grande entre especialistas e representantes dos profissionais que atuam na fabricante, criada em 1969 e privatizada em 1994. Seu caráter estratégico ao Brasil e à engenharia nacional é salientado pelo presidente do SEESP, Murilo Pinheiro. Nesse sentido, ele defende que o governo, detentor do poder de vetar transações lesivas ao País (golden share), “tem a obrigação de não permitir mais esse retrocesso, que pode implicar desemprego, especialmente na engenharia, perda de capacidade tecnológica e até vulnerabilidade em termos de segurança nacional”. A apreensão é compartilhada por Herbert Claros, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, a cidade paulista onde se localiza a matriz, para quem uma possível “venda” da brasileira à estadunidense “ameaça o futuro da Embraer e do emprego”.
Soberania e engenharia em xeque
Murilo cita que a companhia, atualmente, está envolvida na produção do submarino nuclear brasileiro. “Frentes de atuação como essas não podem simplesmente ser transferidas para uma empresa estrangeira.” O problema vai além da venda de uma companhia aeroespacial, como lembra William Nozaki, professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP): “A Boeing é parte constitutiva do complexo industrial-militar norte-americano e uma aliada fundamental à política de defesa dos EUA.” O risco é que uma fusão deixe ainda “mais vulneráveis a defesa e a soberania do Brasil”.
Para Nozaki, a parceria pode significar desde a criação de uma joint-venture e uma injeção de capital até o controle majoritário e talvez integral da Embraer. “O governo está apostando no poder das suas ações preferenciais. O imbróglio é que nenhuma golden share consegue dar todas as garantias de que projetos estratégicos não serão obstruídos e de que transferências tecnológicas serão realizadas, o que pode converter inteligência pública e coletiva em riqueza privada e financeira.”
A opção de segregar as atividades comerciais e militares implica questões de complexa resolução, segundo Jonathan de Araújo de Assis, pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) – coletivo multidisciplinar que reúne graduandos, mestres e doutores ligados às áreas de paz, defesa e segurança, vinculado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Ippri-Unesp). Ele expõe: “Talvez a principal gire em torno dos chamados sistemas de armas modernos, que hoje beneficiam-se de tecnologias desenvolvidas no setor civil, sobretudo aquelas vinculadas aos regimes de comando, controle, comunicações e computacionais.”
No caso da Embraer, Assis salienta que o jato de transporte militar e reabastecimento aéreo KC-390, hoje um dos mais importantes projetos militares da empresa, em fase final de desenvolvimento/certificação, utiliza componentes e estruturas do jato comercial da companhia. “Portanto, é cada vez menos óbvia a delimitação dessas produções.” Além disso, prossegue, a fabricante participa em diversos projetos estratégicos das Forças Armadas do País, como o Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil (Prosub), por meio de sua subsidiária Atech; e o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), com as controladas Savis e Bradar.
Para Assis, carece ainda de esclarecimentos como um eventual acordo com a Boeing pode afetar o programa de cooperação entre Brasil e Suécia no âmbito do novo caça Gripen (versão monoposto, para um piloto). O equipamento está sendo desenvolvido em parceria da Embraer e outras empresas brasileiras com a sueca Saab. O contrato assinado entre os dois governos, há três anos, no valor de US$ 5,4 bilhões, contempla a transferência de tecnologia à construção de aeronaves de combate avançadas, com a previsão de entrega de oito dessas em 2021 e dos 36 caças encomendados em novembro de 2024.
Na visão do professor adjunto do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e doutor em economia Thiago Caliari, em termos de competitividade, as negociações são importantes, haja vista que “tendem a aumentá-la” duas empresas que já realizaram esse processo, em outubro do ano passado. A referência é à aquisição pela europeia Airbus, principal competidora da Boeing, da participação majoritária no programa de jatos regionais C-Series da canadense Bombardier – concorrente da Embraer no mercado de aeronaves comerciais regionais. Ele considera que a parceria seria interessante no que tange ao aumento de escala e de escopo, porém frisa que “a perda do controle acionário por parte do governo pode ser prejudicial pelo motivo de soberania nacional e por estratégias de política industrial”.
Por Rosângela Ribeiro Gil