Rosângela Ribeiro Gil
O total de engenheiros do sexo masculino registrados no Brasil lotaria cerca de 11 Maracanãs – cuja capacidade é de 78.838 pessoas. Já as mulheres que exercem a profissão preencheriam apenas 2,4 vezes esse estádio. Essa proporcionalidade se baseia na informação de 15 de fevereiro último apurada junto ao sistema profissional da categoria (Confea/Crea), que totaliza 980.018 registros ativos. Destes, 795.706 são homens e 184.312, mulheres. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do segundo trimestre de 2020 aponta representação feminina nas ocupações de engenharia no País bastante próxima a essa estatística, de apenas 17%.
Essa diferença começa na escolha da carreira. Instigada por sua vivência como mulher e docente de cursos técnicos e superiores da área tecnológica, Elisangela Muncinelli Caldas Barbosa se propôs a uma pesquisa para compreender a representatividade feminina em ciência, tecnologia, engenharia e matemática, na sigla em inglês STEM (Science, Technology, Engineering e Mathematics).
Professora de Química do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Barbosa recorreu, assim, aos censos da educação superior para mostrar que enquanto as mulheres representam a maior parte das matrículas e concluintes de cursos de ciências humanas e da saúde, na área de STEM a preponderância é ainda masculina. “Nitidamente percebe-se uma segregação horizontal onde as escolhas das carreiras estão fortemente segmentadas por gênero. As mulheres são maioria naquelas menos valorizadas e relacionadas a estereótipos como cuidados e educação”, observa. Na engenharia, o censo de 2020 mostra que as mulheres são a minoria concluinte – cerca de 37%.
Evolução lenta e limitações
Ao observar os dados relativos a mercado de trabalho, a professora e pesquisadora sênior do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas (FCC), Maria Rosa Lombardi, é categórica: “É muito pouco.” Autora da tese de doutorado “Perseverança e resistência: a engenharia como profissão feminina”, de 2005, ela avalia, contudo, que essa participação vem crescendo, mas ainda lentamente. “Nos anos 1980 e início dos 1990 era bem menor.”
A gerente sênior de recrutamento da Robert Half (RH), Carolina Cabral, concorda que houve avanços, mas que persistem limitantes, estereótipos e marcadores de gênero que dificultam maior acesso feminino à profissão. “Um desses é quando a vaga envolve viagens”, exemplifica. Não obstante, a empresa, observa ela, não pode, no short-list [lista final de candidatos], definir quem contratar apenas pelo gênero.
Além das dificuldades para entrar no mercado, Lombardi acrescenta que permanecer na profissão é outro desafio, pois as condições desanimam muito, e não apenas pela questão salarial. “A discriminação de gênero é mais sutil do que foi no passado, mas existe e faz com que as mulheres trabalhem muito mais do que os homens para provar que são capazes. Elas têm que mostrar sempre que são tão boas ou melhores que o homem para estar naquela profissão, naquele lugar. É uma perversidade.”
Desde 2019, Haydée Svab trabalha como consultora, pesquisadora e cientista de dados em mobilidade urbana e cidades inteligentes, depois de uma carreira exitosa como engenheira civil no Metrô de São Paulo. Ela traz importantes reflexões sobre as provações diárias por que passa a mulher no ambiente de trabalho: “Não vou dizer que somos tratadas igualmente porque não somos. Para um homem, entrar numa obra e trabalhar é normal, é o que se espera dele. Para uma mulher, sempre há um desafio constante: tornar a sua presença ali natural, fazer notarem o trabalho ao invés de que se trata de uma mulher.”
Mesmo assim, Svab percebe evolução e cita nesse sentido a tipificação da importunação sexual como crime (Lei no. 13.718/2018), o que torna menos “natural” o comportamento inapropriado no ambiente de trabalho. “Algumas empresas já implantam ações afirmativas reais tanto em relação a gênero como raça.”
A segregação feminina, diz a pesquisadora da FCC, envolve até a não aceitação do direito à licença-maternidade por parte das próprias profissionais. “É um problema muito grave. A mulher vai se cobrar porque acha que está fora do ‘padrão’ da profissão”, explica.
Múltipla jornada
Além disso, continua Lombardi, “ainda está tudo nas mãos das mulheres, de levar as crianças na escola ou no médico às tarefas domésticas”. Um contexto que se agravou, faz questão de salientar, com a pandemia. “Muitas engenheiras e outras profissionais estão trabalhando em casa” e têm que lidar simultaneamente com essas múltiplas tarefas. “Se os homens estão esgotados, imaginem as mulheres”, ressalta.
Engenheira de telecomunicações sênior da Petrobras, Iracema Aparecida Suassuna de Oliveira viveu essa exclusão feminina ainda como estudante, no início dos anos 1990. “Levei meu currículo para uma vaga de estágio numa grande empresa na Cidade Industrial de Curitiba [PR] e tive que ouvir que a companhia não contratava mulheres porque elas tinham filhos”, lembra.
Depois de quase 30 anos de formada, a percepção de Oliveira, que optou por não ter filhos, é que a mulher ainda é preterida por causa da maternidade: “É boa profissional desde que não engravide e não tenha que levar os filhos ao médico.”
Educar o mercado
Cabral cita pesquisa da Robert Half, publicada em dezembro último, realizada com coordenadores, gerentes, diretores e c-level [cargos de alta gestão] de empresas de diversos segmentos. “Uma das perguntas era sobre se a política de diversidade e inclusão da organização era explícita. Infelizmente, 57% responderam que não”, lamenta.
Ter uma política de diversidade e inclusão cristalina e coerente é um grande passo para quebrar preconceitos, como de gênero”, garante. A pesquisa mostra também que 68% dos entrevistados entendem que ter mulheres em posições de liderança é ponto alto de um programa inclusivo. Isso indica, avalia a gerente, que o mercado tende a rejeitar, cada vez mais, atitudes sustentadas em discriminação.
Para Cabral, os recrutadores e o pessoal de recursos humanos (RH) têm o papel de educar o mercado. “Precisamos mostrar que ser bom profissional independe de ser homem ou mulher, de idade e de outras características pessoais e particulares”, ensina.
A executiva da Robert Half reforça: “De maneira polida, podemos ir eliminando falas do tipo ‘esse perfil não funciona’. Ao invés disso, investir meia hora entrevistando essa pessoa. Numa dessas, mais uma engenheira é selecionada.”
Há posições em que as mulheres têm sido muito fortes dentro da engenharia, informa Cabral, como em segurança do trabalho. “É uma função extremamente híbrida em que se lida com planejamento, documentação, normas e informações muito minuciosas. As mulheres têm se sobressaído nessa área, principalmente num momento em que a segurança do trabalho, a saúde e a sustentabilidade ganham relevância”, relata.
Ela relaciona segmentos que estão se tornando mais receptivos ao recrutamento feminino: de logística, supply chain (compras), bens de consumo, químico, farmacêutico, laboratório, de máquinas pesadas. “Recentemente, fiz uma palestra numa empresa de Barueri [SP] para incentivar futuras engenheiras a seguirem carreira industrial”, exalta.
Papel da sociedade
Além da necessária iniciativa dos recrutadores e pessoal de RH, para quebrar marcadores de gênero que podem ter afastado muitos talentos femininos da engenharia ou de outra carreira da área científica e tecnológica, as entrevistadas propugnam por ações que envolvam a sociedade em geral.
“Em todas as relações podemos atuar como agentes modificadores deste cenário. No núcleo familiar devemos eliminar a criação de estereótipos de gênero, excluindo a divisão de atividades adequadas para meninos e meninas”, ratifica Barbosa.
Na escola, como aponta, “é preciso atentar, desde o ensino fundamental, para que a construção do currículo, o uso de metodologias e materiais didáticos e as relações interpessoais no ambiente sejam isentas de qualquer tipo de discriminação. Essa concepção se estende às universidades”.
Nesse sentido, a gerente da Robert Half acredita que funcione uma relação maior entre escola, empresas e consultorias de recrutamento para falar sobre as carreiras de engenharia e mulheres na liderança. Proposta que se alia ao que deseja a engenheira da Petrobras: uma educação para a igualdade de gênero e preparação para cargos de liderança.
Já Lombardi evidencia que a mulher deve se conscientizar que as discriminações existem e são passíveis de punições, e que a melhor ação é a coletiva para “reverter situações que não nos são favoráveis. Os homens fazem grupo, e as mulheres acabam se isolando”.
Svab faz questão de dar algumas sugestões para o convívio no meio ambiente de trabalho para os homens, em especial aos que estão em posições de liderança: “Evitem infantilizar as mulheres ou suas opiniões. Se você não diria ‘vamos ouvir os meninos agora’, não diga ‘vamos ouvir as meninas agora". Se você não diria ‘a visão ficou mais bonita porque o fulano está aqui’, não diga ‘a visão ficou mais bonita porque a fulana está aqui’.”
Ela complementa: “Ofereçam remunerações iguais para cargos iguais, bem como incentivos equânimes para promoções e permanência nas empresas. Esperem que tanto o seu funcionário quanto a sua funcionária levem filhos ao pediatra.”
Arte da imagem no destaque da matéria: Eliel Almeida. Fotos, da esquerda para a direita: Acima, Carolina Cabral e Iracema Oliveira. Ao centro, Elisangela Barbosa, e abaixo, Maria Rosa Lombardi e Haidée Svab. (Créditos: Divulgação e Acervos pessoais)