logo seesp

 

BannerAssocie se

Empoderando futuros por mais mulheres na engenharia

Avalie este item
(0 votos)

 Rita Casaro

 

GrazielaTonin AcervoPessoalGraziela Tonin lidera iniciativa para atrair e reter mais mulheres nas profissões da área tecnológica: desenvolver ações que possam ganhar escala. Foto: Acervo pessoalEntre os muitos desafios na luta pela igualdade de gênero no Brasil, está aquele que diz respeito diretamente às profissões tecnológicas: garantir a participação feminina nesses setores  majoritariamente masculinos. Para se ter uma ideia de quão distante se está desse objetivo, segundo dados do Censo da Educação Superior 2023 analisados pela Mira Pesquisa para o SEESP, apenas 27% dos graduados nas engenharias eram mulheres. Na grande área Engenharia, produção e construção, o número se eleva para 34%, mas segue bem aquém da paridade, conforme o painel estatístico do Ministério da Educação. De acordo com a mesma fonte, a situação fica ainda mais desfavorável em Computação e TIC, em que as formandas representaram 17,4%.

 

Transformar essa realidade é o propósito do projeto “Empoderando futuros: construindo uma rede nacional para meninas e mulheres na área de STEM” – sigla em inglês que engloba ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a iniciativa é liderada pela professora Graziela Simone Tonin, coordenadora do curso de Engenharia da Computação do Insper.

 

Graduada em Ciência da Computação pelo Uri Campus de Erechim (RS), mestre pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutora pela Universidade de São Paulo (USP) na área, com intercâmbio pela University of Maryland-EUA, e com 20 anos de atuação entre a academia e o mercado, ela conta que pretende colocar sua experiência e rede construída a serviço de um esforço que possa mudar efetivamente o cenário desfavorável às mulheres, inclusive influenciando políticas públicas.

 

O problema, pondera, é gerado por fatores diversos e alimentado por uma estrutura social machista. “Começa lá na infância, com a criança não sendo instigada a ter brinquedos nessa área, a experimentar a área de ciências, matemática, e a menina já começa entendendo que aquilo não é para ela, no convívio familiar”, aponta.

 

No entanto, destaca a professora, mesmo aquelas que conseguiram vencer as barreiras, chegar à universidade e à atuação profissional enfrentam discriminação que pode fazê-las inclusive abandonar a carreira. “Sofrem assédio dos colegas, veem as suas ideias roubadas, têm salários desiguais, mesmo tendo a mesma qualificação ou melhor. Então, existem ´n´ microagressões que ocorrem diuturnamente, que fazem com que elas desistam”, afirma.

 

Mesmo sem ter visto muitas mudanças nas duas décadas na Computação, ela acredita ser possível avançar. “Unidas numa rede, com todas as mulheres incríveis que a gente tem e cada vez mais também tendo homens sensibilizados, até por serem pais de meninas, eu realmente acredito que gente consegue mudar isso em escala”, aposta.

 

Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela fala ainda sobre como enfrenta pessoalmente o machismo na vida profissional e a importância da tecnologia para a construção de um país e mundo melhores. Confira a seguir e no vídeo ao final.

 

JE588 DestaqueMateria

 

A engenharia e outras profissões tecnológicas ainda são majoritariamente masculinas. Por que ainda se vive essa realidade em 2025?

Esse é um problema complexo, e são muitos os fatores. A gente tem ainda uma estrutura cultural que promulga essa desigualdade. Começa lá na infância, com a criança não sendo instigada a ter brinquedos nessa área, experimentar a área de ciências, matemática, e a menina já começa entendendo que aquilo não é para ela, no convívio familiar e com a sociedade. Quando se analisam os dados, [percebe-se que] essa menina no ensino fundamental não se vê porque não tem um role model, não tem uma mulher na liderança. O percentual na liderança é muitíssimo baixo. Hoje a gente até tem no ensino médio algumas opções de disciplinas na área de tecnologia, de engenharia, mas as meninas não procuram muito, o interesse é bem pequeno e, consequentemente, elas não escolhem essas graduações. Para além disso, a gente tem outros fatores. Tem um relatório recente da [consultoria] McKinsey que mostra que as mulheres, quando chegam em uma idade de ascensão, que seria de 35 anos, estão escolhendo deixar a carreira. Então esse problema realmente tem muitas camadas em diferentes estágios da vida da mulher.

 

Esse estudo indica os motivos para as mulheres decidirem deixar a carreira exatamente nessa fase?

Sim, e também são vários. Claro que, considerando a nossa idade reprodutiva, começa a pesar (e também tem um certo peso cultural da sociedade) a decisão de ter filho ou não. [Contudo], a decisão de ser mãe não é o fator determinante. Microagressão no trabalho é um fator determinante para isso. Tem um percentual altíssimo de mulheres que sofrem assédio dos seus líderes diretos do gênero masculino. Sofrem assédio dos colegas, veem as suas ideias roubadas, têm salários desiguais, mesmo tendo a mesma qualificação ou melhor. Então, existem “n” microagressões que ocorrem diuturnamente, que fazem com que ela desista. Também tem outro fator que impacta: infelizmente JE588 EntrevistaDestaques1ainda é a mulher a maior responsável pelo cuidado doméstico. Mesmo essa mulher que sai para trabalhar, quando volta para casa, o peso da responsabilidade pelo cuidado do lar recai sobre ela. É quem vai cuidar da mãe, do pai, dos familiares. Isso [significa] tempo. Então ela não consegue, talvez, ir para o happy hour fazer o networking para discutir a progressão da carreira, fortalecer esses laços para que consiga ter melhores oportunidades. Essas posições de maior tomada de decisão hoje são majoritariamente lideradas por homens, que acabam convivendo, muitas vezes, com pares homens e os escolhendo para a progressão na carreira. Quando a gente não tem um ambiente seguro para trabalhar, não se vê naquele ambiente, não é ouvida, não se sente bem e acolhida, naturalmente vai pensando em alternativas para a vida.

 

E como mudar esse quadro?

Eu estou há 20 anos no mercado de STEM, de tecnologia, sempre com um pé na academia. E existem muitas pesquisas de ações efetivas, ajudando a incluir mais meninas. [Para atrair] mais estudantes para os nossos cursos de engenharia, de tecnologia, de computação, e a todas as áreas de STEM, obviamente, precisa cuidar das meninas que a gente tem, com um ambiente acolhedor, porque a gente tem um tesouro ali: conseguiu que uma menina escolhesse fazer aquela área. E aí precisa ter professora role model, o que não é tão simples, porque já não temos mulheres escolhendo o caminho da ciência, o percentual é superbaixo na área. A gente precisa ter esse suporte para as meninas, essa escuta, esse cuidado em ajudá-las a criar uma comunidade e se sentir pertencentes. Mas antes disso, para que escolham essas áreas, a gente precisa incentivar, criar ações e mecanismos para que elas vejam nessa área uma oportunidade de vida, de carreira que contribua para realizar seus sonhos. O incentivo dos professores é crucial; muitos alunos definem um curso pela opinião do professor que é mentor, com quem têm mais proximidade. Então sensibilizar esses professores e professoras é muito importante. E, obviamente, apoio familiar. Os pais têm uma influência enorme na criação, no desenvolvimento, no meio em que inserem os seus filhos. Então se eles contribuírem para expor os seus filhos a essas experiências e mostrar que também são para as suas meninas, com certeza terá um impacto gigantesco. No geral, a gente precisa unir forças, e políticas públicas fazem parte disso. Falando de saúde pública, tem um percentual altíssimo de meninas que engravidam e não vão para a escola. Então essa menina nem tem chance, né? Existem situações de vulnerabilidade que a gente precisa considerar para que essas meninas tenham a chance de sonhar um dia ir para uma graduação ou, quiçá, entrar e terminar o ensino médio. Eu entendo cada vez mais que com a união de forças e se cada camada da sociedade fizer um pequeno esforço, a gente consegue um grande avanço no médio e no longo prazos para mudar esse cenário.

 

Como o projeto “Empoderando futuros” ajuda a enfrentar esse desafio?

Eu morei um tempo em Santa Catarina e lá o ecossistema de empreendedorismo e inovação é superpujante. Aprendi com o ecossistema, desenvolvi e atuei nele. Sou do Sul, morei no Nordeste, estou no Sudeste agora; nessas minhas andanças, conheci várias iniciativas muito interessantes para promover equidade de gênero. E vi também que, muitas vezes, as pessoas estão ligadas a esse propósito e dedicadas, mas isoladas. Por outro lado, a gente tem um Brasil com muitas características. É muito difícil que a gente consiga, sem conhecer essas características, criar políticas públicas e ações eficientes. Então, ligando essa minha experiência nesses lugares e essa rede desenvolvida, e vendo o quanto é transformador o ecossistema de empreendedorismo e inovação com papéis e responsabilidades bem definidos, atuando junto, eu pensei: por que não criar um ecossistema para transformar? Segundo os dados recentes, seriam mais de três séculos para a gente alcançar equidade de gênero. O que eu posso fazer ainda em vida para tentar escalar essa mudança? Então a ideia foi conversar com todas essas pessoas. A gente tem 26 pesquisadores, mais de 19 instituições – e outras já estão querendo fazer parte. Esse projeto tem a grande ambição de unir forças, com pesquisadores, pesquisadoras, profissionais do mercado, ONGs, universidades públicas e privadas, institutos federais, o ecossistema de empreendedorismo e inovação, polos de tecnologia... [Está sendo feito] o esforço de, primeiro, mapear ações que já estão [em andamento], as lições aprendidas segundo as características de cada ambiente. Depois de mapear essas ações com essas peculiaridades, [a ideia é] entender como criar modelos que podem ser replicados. E temos, obviamente, a ambição de entender premissas que possam direcionar políticas públicas. A gente fez vários experimentos no Brasil inteiro, em diversas frentes, coletando e analisando esses dados; esse é um caminho para replicar e escalar ações que possam efetivamente impactar e, quiçá, [trazer] igualdade de gênero nessas áreas no Brasil.

 

O projeto tem metas estabelecidas para depois dimensionar os resultados? Em que prazo ele está previsto para acontecer?

JE588 EntrevistaDestaques3Esse é um projeto de três anos, [com financiamento do] CNPq. Mas, para além disso, a gente também está unindo forças com a intenção de que ele continue. A gente está dando start numa iniciativa que gostaria que crescesse, se multiplicasse e jamais parasse até se conseguir ter equidade. Então tem essa preocupação de criar mecanismos de sustentabilidade, inclusive financeira, ao longo desses três anos. A gente optou por não ter tantas [metas] quantitativas, mas tem alguns objetivos que nos guiam nessa jornada e atividades previstas para atingi-los. Os macro-objetivos do projeto são compreender esses entraves e desafios que se apresentam e desmotivam as meninas a buscar as áreas de STEM; fortalecer e criar ações que promovam o interesse dessas alunas do ensino fundamental e médio para cursos na área de STEM; e fortalecer e criar ações que promovam um ambiente seguro para as alunas que já decidiram ingressar nesses cursos, visando a retenção no ensino técnico e superior e favorecendo a inserção no mercado de trabalho. A gente visa reduzir a evasão das meninas nos cursos de graduação; mitigar as desigualdades de gênero, incluindo étnico-raciais nas carreiras, com ações afirmativas intencionais; estimular a pesquisa colaborativa e a cooperação por meio da formação de redes; promover ações de educação e popularização do que a gente chama de ciência cidadã em diferentes públicos e instituições; e, obviamente, coletar e gerar dados padronizados de uma amostra representativa da diversidade do nosso país para subsidiar a elaboração de políticas públicas efetivas na área. Claro, sempre visando motivar, incentivar e engajar para que a gente consiga incluir, reter e gerar mais ascensão dessas meninas na área e na carreira.

 

Como é a sua experiência como mulher na engenharia? A senhora sofreu discriminação de gênero ao longo desse tempo?

Eu acho que é inevitável, infelizmente, estando na área de computação, de tecnologia, de engenharia. Cheguei a essa conclusão porque é difícil você encontrar uma que diga “eu não sofri”. Quando a gente olha as pesquisas, elas fazem muito sentido. Quantas vezes eu vi um colega roubar minha ideia... Ou quantas vezes você está numa reunião, dá a ideia e ninguém ouve ou ela é rapidamente vetada. E aí um colega repete a mesma frase, às vezes com as mesmas palavras, e falam: “nossa, que ideia genial”. Muitas vezes a gente não tem nem voz, é interrompida – tem pesquisas que mostram que as mulheres são muito mais interrompidas numa reunião que os homens. E eu acho que tem um ponto que hoje pesa mais, talvez até pela experiência, é que parece que a gente sempre tem que provar que é melhor. Durante minha carreira inteira, eu vi homens tendo inúmeras oportunidades. E eram baseadas na crença de que eles poderiam entregar. E a gente, em geral, tem que entregar, e entregar um pouco a mais. Ainda assim, a nossa capacidade muitas vezes é questionada. Eu sempre fui. Eu tenho 38 anos, então era gestora de projetos muito jovem. Fui desenvolvedora, analista, gestora, coordenadora. Era sempre muito mais jovem que meus pares e, às vezes, que o meu próprio time. Então sempre era questionada: mas ela vai dar conta, tem condições? Esse item específico e as microagressões sempre existiram nos mais variados níveis. É muito difícil você encontrar um lugar onde não exista esse tipo de situação. E isso é muito triste, porque você vê que um colega que tem a mesma qualificação científica não é questionado. E você fica assim: por que todos os meus pares homens não foram questionados, mas eu fui? Sobre isso, infelizmente, ao longo dos anos, eu não vejo uma evolução clara. Eu não posso dizer para você que isso não existe mais, o que na minha percepção existe é que hoje eu não aceito mais. E talvez compre até mais brigas por isso e me imponha mais. Para mim é muito claro, se eu desenvolver um projeto sob a liderança de um homem que não me respeita, não tenho por que continuar lá. Eu estou lutando há 20 anos para isso não ocorrer. Isso é contra o meu legado, contra os meus princípios, para além da minha saúde mental, que já é um fator que deveria ser exclusivo e importante. Então eu rapidamente faço movimentos para não continuar naquele local ou sob aquela liderança. Eu não conheço uma mulher que me diga que a situação dela é confortável ou que se sente pertencente a ponto de não sofrer sob alguma perspectiva ou em algum momento esses tipos de agressões ou microagressões.  

 

Se a engenharia é masculina, a de Computação é ainda mais. Mas parece que nem sempre foi assim, e as mulheres eram mais presentes nessa área no passado. O que aconteceu?

Pois é, o IME (Instituto de Matemática e Estatística) mesmo, onde eu fiz meu doutorado na USP, era majoritariamente formado por mulheres. E alguns estudos têm algumas evidências. Por exemplo, no passado, essas áreas de matemática, as áreas exatas, eram consideradas um secretariado. Então a gente tem as mulheres que ajudaram lá na Nasa a fazer os cálculos, [as que programaram] o primeiro computador, enfim, muitas mulheres atuavam nessas áreas. Entende-se que depois, com o avanço dos games, dos computadores pessoais, que passam a ser mais vistos como para meninos, isso começa a reduzir drasticamente [a presença feminina]. E aí a gente tem uma inversão completa. Infelizmente na Engenharia da Computação, Ciência da Computação, a gente tem menos de 15% nas graduações, 11% em liderança, então o número ainda é um pouco pior do que em algumas outras engenharias. Obviamente, [esses fatores] acabam sendo potencializados pelos problemas estruturais e culturais que a gente tem na sociedade, evidenciam-se esses padrões de machismo que se perpetuam.

 

Apesar do cenário ainda desfavorável, a senhora vislumbra possibilidades de avanços significativos num futuro não tão distante?  

Eu realmente acredito no poder da rede. E hoje eu entendo que nós, mulheres, estamos cada vez mais ativas. Eu vejo uma geração um pouco mais consciente desses problemas estruturais. Entendo que tecnologia é uma ferramenta poderosa, que precisamos direcionar e usar de forma intencional e correta para reduzir essas desigualdades. JE588 EntrevistaDestaques4Unidas numa rede, com todas as mulheres incríveis que a gente tem – nós somos poucas, mas são muitas mulheres inteligentes, com uma capacidade incrível – e cada vez mais também tendo homens sensibilizados, até por serem pais de meninas, eu realmente acredito que a gente consegue mudar isso em escala, [graças] à computação e à tecnologia [que] são ferramentas superpoderosas que nos ajudam a compartilhar exemplos rapidamente, acessar lugares [antes inacessíveis], treinar uma menina lá no sertão do Nordeste na área de tecnologia e ela continuar investindo aquele valor que vai ganhar, gerando desenvolvimento para aquela região. E cada vez mais as empresas precisam inovar, ter mais budget, considerar metade dessa população que é mulher, que tem as suas próprias necessidades, criar produtos e serviços. Então, imagina, não faz nenhum sentido você criar um produto e serviço para uma mulher sem conhecer sua necessidade. A gente tem várias pesquisas [que mostram] que a gente conseguiria colocar milhões de reais no PIB se as mulheres tivessem um salário mais igual, tivessem remuneração adequada, fossem mais inseridas no mercado de trabalho. Para concorrer com o mundo, precisamos ter mais inovação; empresas que têm mais diversidade em geral, incluindo o gênero, registram muito mais patentes. Tem várias evidências de que essas empresas geram mais lucro. Eu acho que cada vez mais com essa conscientização, não só das mulheres, mas com esse apoio dos homens que entendem que temos valores incríveis, com a força do feminino e do masculino, nós temos muito a ganhar nessa união e igualdade. Realmente acredito que com esse projeto, com essa união de forças, a gente consegue criar um Brasil melhor primeiro e depois impactar para um mundo melhor.

 

 

Assista ao vídeo da entrevista

 

 

Imagem de capa: Arte - Eliel Almeida / Fotos (da esquerda para a direita) - Jcomp/Freepik,Pch.vector/Freepik, DC Studio/Freepik, Pch.vector/Freepik e Freepik. Graziela Tonin (à dir., no alto): Acervo pessoal

 

Adicionar comentário

Receba o SEESP Notícias *

agenda

ART site SEESP 2025