Deborah Moreira
A São Paulo Transportes (SPTrans) e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) firmaram um Termo de Cooperação Técnica para, entre outros objetivos, desenvolver estudos sobre a viabilidade de implantação de uma frota de ônibus elétricos na cidade de São Paulo. A eletrificação tem sido vista como um dos caminhos para alcançar as metas estabelecidas na Lei Municipal 16.802/2018, que deu nova redação ao artigo 50 da Lei 14.933/2009, sobre o uso de fontes renováveis de combustível, menos poluentes.
A medida se deve à necessidade de reduzir as emissões de gás carbônico (CO2) de origem fóssil na atmosfera, geradores dos gases de efeito estufa (causadores do aquecimento global). A lei também prevê a diminuição de emissão de material particulado (MP) e óxido de nitrogênio (NOx), que provocam doenças respiratórias, em consonância com o Acordo de Paris, firmado em 2015, que tem como signatários 195 países, inclusive o Brasil, para manter o aquecimento global abaixo de 2ºC, limitando-o a 1,5ºC nos próximos 100 anos. A adoção de combustíveis não fósseis auxilia a alcançar essa meta.
Daqui a sete anos, a capital paulista precisará ter reduzido 50% das emissões de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil, 90% de material particulado e 80% de NOx, em relação às emissões totais da frota de 2016. As metas estão estabelecidas na Lei 16.802/2018, que determina que isso seja feito em duas etapas: em dez anos (até 2028) e em 20 anos (2038), a partir da publicação de sua publicação. Em duas décadas, as emissões de CO2 deverão ser totalmente eliminadas e o MP e NOx deverão ter alcançado índice de 95% de redução.
Para contribuir com as discussões, o Conselho Tecnológico do SEESP, por meio de seus conselhos assessores de Mobilidade e Transporte e de Energia, promoverá eventos técnicos para avaliar ações que vêm ocorrendo no desenvolvimento de fontes sustentáveis de energia de tração. Abrindo a programação, o webinar “Sustentabilidade – A energia de tração elétrica utilizada na mobilidade urbana como alternativa aos combustíveis fósseis”, que ocorreu em 6 de maio, com transmissão no Facebook e Youtube do sindicato (vídeo abaixo). “Estamos acompanhando a operação de veículos movidos a tração elétrica no sistema de transporte de São Paulo. Inicialmente, queremos ouvir os especialistas sobre a evolução do mercado e o estado da arte da eletromobilidade”, pontuou o diretor da entidade Edilson Reis, integrante do Conselho Assessor de Mobilidade e Transporte.
O convênio
“A eletrificação da frota é uma das alternativas possíveis de substituição. Todas as tecnologias que se enquadrarem aos parâmetros da lei serão aceitas. Para isso, vamos verificar a conformidade da tecnologia apresentada e a viabilidade”, afirma Simão Saura Neto, superintendente de Engenharia Veicular e Mobilidade Especial da SPTrans.
Ele lembra que o convênio com a Poli, assinado em 1º de dezembro de 2020, tem prazo previsto de cinco anos, podendo ser renovado por mais cinco, e deve realizar outros estudos, como demanda de transporte, análise de origem e destino das viagens, introdução de tecnologias inovadoras e disruptivas no sistema, além do desenvolvimento de trabalhos acadêmicos na área de engenharia de transporte e produção de conteúdos para a capacitação profissional dos técnicos da SPTrans.
À frente do convênio, Fernando Berssaneti, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Poli, conta que a ideia também é produzir muitos artigos sobre o tema para publicar em revistas científicas. Atualmente, dois alunos de mestrado e um de doutorado atuam diretamente com o convênio. Devido à pandemia, ainda não estão sendo realizadas visitas técnicas in loco. Mas está sendo feito um levantamento de material de pesquisa em outros países, como Noruega, Alemanha e principalmente na China, onde se concentram os fabricantes desse tipo de tecnologia. Dados do setor de 2019 dão conta que a frota da China possuía 105 mil dos 115 mil ônibus elétricos em operação no mundo. No Brasil, segundo a plataforma E-bus Radar, existem atualmente 350 unidades, sendo a grande maioria trólebus.
Entre os pontos elencados por ele que serão objeto do estudo estão: melhores rotas e itinerários para esse tipo de veículo, quantidade de ônibus necessária, dificuldades para implantação, locais para instalação dos postes de recarga, durabilidade da bateria. “É um estudo de viabilidade técnica, portanto, devemos identificar desafios para as empresas e até melhorias que precisam ser feitas pelas montadoras. Neste momento, estamos estudando a questão técnica. Depois, haverá um estudo econômico do que é mais viável”, detalha Berssaneti.
Desafios
De acordo com o docente, que é engenheiro de produção, especialista em gerenciamento de projetos e produto e em gestão de qualidade e produtividade, o grande desafio desse tipo de ônibus são as baterias, que armazenam a energia elétrica. O único fabricante instalado no País, a BYD, afirma que uma carga de bateria, que leva cerca de quatro horas, garante uma autonomia de 240km ao veículo. Tempo muito maior se comparado ao abastecimento de um ônibus a diesel, que leva cerca de 15 minutos.
“É preciso ir a campo, ver como essa bateria se comporta em subidas e descidas, andando na periferia de São Paulo, onde o que não falta é buraco. Além disso, checar se as informações do fabricante são válidas. A temperatura ambiente, o trajeto, a velocidade, a distância entre os pontos de partida e chegada, a qualidade do pavimento, tudo isso influencia. Vamos entender essas variáveis e também fazer experimentos ou simulações computacionais”, explica Berssaneti.
Desde novembro de 2019, 17 ônibus elétricos modelo padron (tradicional), com capacidade para 70 passageiros, estão operando em fase de teste pela Transwolff, na linha “6030-10 Unisa Campos 1 – Terminal Santo Amaro”, na zona sul da cidade. De acordo com Saura Neto, uma única carga na bateria tem sido suficiente para as cerca de 15 horas que a linha roda diariamente – o que equivale a 180km. Ele conta que para a escolha da linha levou-se em conta a menor distância entre a garagem e a rede de distribuição de energia elétrica, para que o investimento na estrutura de alimentação não fosse alto.
Para a implantação dos elétricos são necessárias adaptações nas garagens que, no caso da Transwolff, consistiu na instalação de um carregador para cada veículo e foi feita pela BYD, que também alugou as baterias para o operador. “Esse modelo de locação geralmente é feito por terceiros, como um investidor que compra os ônibus e aluga para os operadores. É um novo modelo de negócio, que é a grande aposta do Banco Mundial. Dessa forma, reduz o custo da aquisição do ônibus, que dobra de valor se for com a bateria. No caso de São Paulo, foi feita uma exceção, em que a montadora fez um contrato de aluguel com a Transwolff”, explica Adalberto Maluf, presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE) e diretor de marketing e sustentabilidade da BYD Brasil. Atualmente, o valor de um ônibus padron movido a diesel gira em torno de R$ 600 mil. Já o elétrico custa R$ 1,2 milhão, incluindo a bateria.
A primeira licitação de ônibus elétrico do País foi realizada pela administração municipal de São José dos Campos em 2020, para a compra de 12 veículos superarticulados. Depois, houve uma segunda licitação para a operação do corredor de ônibus. “A Prefeitura separou as licitações e vai disponibilizar os carros para o operador. Existem novos modelos de negócio, que podem usar linhas de crédito específicas”, detalha Maluf. “Obviamente é uma mudança de paradigma, o que gera uma resistência grande dos operadores, que vão ter que deixar de comprar e vender ônibus”, completa.
Saura Neto não deu detalhes sobre os resultados dos testes comparativamente. No entanto, adianta que o ônibus vem realizando bem o trajeto da linha, que não possui aclives e declives acentuados. “Fizemos alguns testes prévios e também rodou sem problema. Mas só com um tempo maior é que poderemos ter informações mais precisas. Quanto mais passageiros, quanto mais aclives, maior a exigência de energia do veiculo, o que consome mais bateria”, observa.
O técnico da SPTrans conta que com a renovação da frota, para veículos a motores mais modernos, de Euro 3 para Euro 5, já foi registrada em março deste ano uma redução significativa de emissão de material particulado (63,92%) e NOx (43,78%), se comparado a dezembro de 2016.
“É preciso testar os veículos nas condições operacionais da cidade. Desde que a Transwolff comprou os ônibus, não foram divulgados os dados sobre o andamento dos testes: o que está dando certo e o que está dando errado”, observa Francisco Christovam, assessor especial do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss).
Outro ponto que o preocupa é a ausência de uma política nacional. “Não existe um plano, um programa de redução, uma definição do papel de cada agente, quem se responsabilizará pelos custos. Não existe ninguém dentro da Prefeitura cuidando desse assunto, levantando possibilidades de recursos financeiros necessários para que as empresas possam fazer essa substituição dos ônibus”, lamenta Christovam.
Quem também aponta a ausência de uma política nacional, com incentivos para a ampliação da produção dos veículos no País, é Marco Antonio Saltini, vice-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea): "A Europa optou pela eletrificação por não ter muitas alternativas, como nós aqui. Com isso, tem dado altos incentivos para que as frotas sejam trocadas por veículos elétricos. O Brasil até agora não sinalizou que fará isso. Não tem uma política de eletromobilidade com metas e definições.”
Ele pontua que a Anfavea defende aproveitar todas as alternativas possíveis e adequadas à legislação. “Na prática, significa não necessariamente adotar de imediato um veículo elétrico. Pode ser um híbrido elétrico e com motor a diesel ou movido a gás, com biogás, entre outras opções. Se focarmos uma única rota tecnológica, o risco é haver um impacto maior no investimento, o que pode gerar aumento de custo para a sociedade”, completa.
Alternativas
O Euro 6 é uma classe tecnológica de motor em uso na Europa desde 2013. No País, só poderá ser importado a partir de 2023. “É um motor de mecânica fina. A queima do diesel é feita com maior precisão, com sistema de filtragem no escapamento melhor, que reduz ainda mais as emissões de material particulado e óxido de nitrogênio”, explica Olímpio de Melo Alvares Junior, engenheiro mecânico, fundador e secretário executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
Conforme ele, há alternativas em desenvolvimento que, combinadas com o Euro 6, poderão substituir o combustível fóssil e atender a nova lei. São elas: ônibus elétrico, a diesel movido a HVO (sigla inglesa para Hydrotreated Vegetable Oil – óleo vegetal hidrotratado) e a gás movido a biometano. “Suponho que essas três alternativas serão o grosso para as reduções de emissão. São essas tecnologias que competirão entre si para ganhar espaço. Não só na frota de ônibus, mas de caminhão de lixo, de ônibus escolar, vans”, afirma o engenheiro mecânico formado pela Poli, que trabalhou 26 anos na como gerente de desenvolvimento do programa de controle de emissões veiculares na Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb).
O HVO é um combustível feito de óleo de soja que roda em motor a diesel. Vem sendo apresentado na Europa e nos Estados Unidos como uma das alternativas promissoras para a transição energética. Usado em escala pequena ainda, o óleo é similar ao Amyres, biodiesel sintético produzido a partir de cana-de-açúcar que permitia que o combustível tivesse emissão zero de CO2 fóssil.
“O Amyres acabou se mostrando inviável por custar seis vezes mais. Agora, o HVO tem um processo de combustão idêntico ao diesel fóssil, só que é feito a partir da soja. Ao contrário do biodiesel que conhecemos atualmente, não provoca danos ao motor se usado numa quantidade maior. Então, é possível usar 100% de HVO em qualquer motor a diesel convencional”, afirma o especialista.
De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o diesel comercial atualmente é composto por 87% de diesel fóssil e 13% de biodiesel feito geralmente de óleo de soja. “Acima desse índice, há repercussões técnicas no funcionamento do motor, devido à instabilidade do biodiesel, que tem efeito corrosivo, causa formação de borra, trazendo mais problemas mecânicos. Além disso, aumenta as emissões de NOx, apesar de baixar o material particulado”, explica Alvares.
Para ele, teoricamente, “seria quase possível atender as metas da lei”. E enfatiza: “Os elétricos estarão mais desenvolvidos, com aplicações testadas e consagradas. As baterias terão preços menores. Os operadores vão perder o medo de investir, porque o ônibus elétrico dá um retorno financeiro mais competitivo.”
Segundo Alvares, o custo de manutenção do veiculo elétrico representa 30% do de um ônibus a diesel. Além disso, o custo de operação é mais baixo, já que a eletricidade é cerca de 35% do preço cheio do diesel. Isso compensará o investimento, somando o tempo total de vida do ônibus.
Davi Martins, líder de projeto internacional do Greenpeace e engenheiro mecânico, também é otimista em relação às tecnologias disponíveis para o cumprimento das metas de redução. Ele reforça que enquanto os elétricos demandam um investimento inicial maior, por outro lado, necessitam de menos peças para reposição. Além disso, como tem que ter pontos de carregamento nas garagens, é possível gerar energia limpa a partir de painéis solares, que contam com diminuição de imposto e abatimento em conta com o excedente produzido injetado na rede. Ou, ainda, armazenar para consumo próprio.
Comitê Gestor
Para acompanhar a evolução das frotas e garantir o cumprimento das metas, a Lei 16.802 criou o Comitê Gestor do Programa de Acompanhamento da Substituição de Frota por Alternativas mais Limpas (Comfrota). Este é formado por cerca de 50 representantes do governo, empresas e sociedade civil. O SEESP é uma das entidades que o integra, ao lado de várias outras.
No entanto, segundo o representante do Greenpeace, há ainda morosidade ao funcionamento do Comfrota: “Apesar de São Paulo ter dado um passo importante na criação da lei, a Prefeitura tem feito um trabalho lento e ineficiente. Demorou para estabelecer o comitê. Demora para marcar as reuniões. Com a pandemia, chegou a ficar mais de seis meses sem atividade."
Para Davi Martins, essa lentidão resultou em menos investimento em melhorias no transporte coletivo sobre pneus, como a ampliação dos corredores de ônibus. Por conta disso, há uma tendência de perda de espaço, dando lugar ao transporte individual. "A pandemia agravou a situação, que já era ruim. O transporte coletivo sempre fez parte da solução nas cidades inteligentes, mais humanas e menos poluentes”, lamenta.
Confira o webinar na íntegra:
Foto do destaque na matéria – Rovena Rosa/Agência Brasil
( Matéria atualizada às 12h, em 13 de maio de 2021)