Jéssica Silva
Conforme o Plano de Mobilidade 2021/2024, a Prefeitura Municipal de São Paulo pretende implantar o primeiro modo de transporte coletivo por embarcações na cidade, o chamado “Aquático”. Localizado na Represa Billings, na zona sul, com cerca de 3km de extensão, constituirá a primeira fase do sistema de transporte público hidroviário.
Atualmente em fase de desenvolvimento e estudos de viabilidade, o “Aquático” será integrado aos demais sistemas de transportes, contará com atracadouros e terminais de ônibus para permitir a transferência dos usuários entre os modais. Segundo a São Paulo Transporte S/A (SPTrans), a implantação do “Aquático” – no custo total de R$ 122 milhões – reduzirá o tempo de deslocamento dos moradores entre as regiões da Estrada da Cocaia e o bairro de Pedreira, localizados próximos à represa, além de beneficiar também a região do Grajaú. Estima-se que a demanda será de 10 mil passageiros por dia útil.
“O que me parece ser a questão chave é que é preciso estar integrado com todo o sistema de transporte público, que se possa usar o Bilhete Único, valer os mesmos critérios tarifários”, avalia o consultor Frederico Bussinger.
O engenheiro, ex-secretário municipal de transportes na Capital, é grande defensor das hidrovias: “se você somar os rios Tietê e Pinheiros, a Represa Billings e a Taiaçupeba, São Paulo é quase uma ilha, isso é um privilégio. E a navegação de serviço já existe, o que não existe é a navegação comercial, mas se tem potencial para isso.”
Seguindo esse raciocínio, Bussinger resgata o projeto do hidroanel metropolitano. A conexão entre as represas e rios daria a São Paulo cerca de 170 a 190km de águas navegáveis, que auxiliariam também no abastecimento dos municípios e controle de cheias.
O projeto teve um estudo de pré-viabilidade técnica, econômica e ambiental iniciado em 2009 e conta, desde 2011, com o Grupo de Pesquisa em Projeto de Arquitetura de Infraestruturas Urbanas Fluviais (Grupo Metrópole Fluvial), do Laboratório de Projeto do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP).
“O que já temos é o Tietê navegável da estaca zero do hidroanel, que é na barragem de Edgard de Souza (Santana de Parnaíba), até a barragem móvel da Penha. Temos informações de que será feita obra de desassoreamento da barragem da Penha até São Miguel Paulista, o que vai permitir que essa hidrovia do Tietê, já com cerca de 50km, ganhe mais 14km de navegação”, conta Alexandre Delijaicov, professor da FAU-USP e coordenador do Grupo Metrópole Fluvial.
Com previsão de implantação total até o ano 2040, o hidroanel desafogaria as rodovias com o transporte de cargas, resíduos urbanos e hortifruti além do transporte de passageiros, segundo o professor. “A coisa mais importante para qualquer região metropolitana é ter alternativas de mobilidade”, defende Delijaicov.
Para que tudo saia do papel de forma planejada, no entanto, ele defende que é preciso consolidar a carreira de Estado para engenheiros e arquitetos, luta permanente do SEESP e da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE). “Se a gente valoriza a cultura de projetos, nas obras públicas é preciso debate técnico e político, isso tem que ser feito por profissionais adequados e na perspectiva de política de Estado, não a cada quatro anos”, aponta o professor.
Água à vista
Segundo estudo da Confederação Nacional do Transporte (CNT) de 2019, o Brasil utilizava para o transporte comercial, seja de cargas ou passageiros, apenas 19 mil km dos 63 mil km totais da malha hidroviária. Nas regiões hidrográficas Amazônica e Tocantins/Araguaia estão as maiores extensões navegáveis, com cerca de 16 mil km e 1,4 mil km respectivamente.
Apesar do potencial, o mesmo estudo sinalizava pouco investimento público no modal. Em 2018 foi de R$ 173,70 milhões, enquanto em 2009 – o ano de maior investimento – foram aplicados R$ 831,79 milhões. A título de comparação, o estudo de pré-viabilidade do hidroanel metropolitano indica valores para implantação de infraestrutura básica de R$ 2,5 a 3 bilhões. As inversões compensam. “Nós intuímos que só o transporte dos sedimentos de dragagens dos fundos dos canais justificaria 40% dos investimentos nas obras”, pontua Delijaicov.
Outro setor que seria beneficiado pelas águas é o da construção civil, que movimenta cargas de 110 milhões de toneladas por ano na Região Metropolitana de São Paulo. “Em Paris, por exemplo, a maior parte dessa carga é transportada hidroviariamente. Facilita-o o fato de que as concreteiras estão localizadas na margem dos rios, reservando-se às betoneiras apenas a distribuição do concreto usinado”, conta Bussinger.
O principal problema da utilização das águas como meio de transporte, na avaliação de Claudio Senna Frederico, diretor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), está em como se tratam os rios no Brasil. “A cidade está literalmente de costas para eles. Ambientalmente são nossos despejos de esgoto e de águas pluviais com lixo. As atividades e moradias se afastam deles e, ainda por cima, são construídas marginais expressas que os afastam mais”, afirma.
Ainda que a despoluição dos rios não seja condição para viabilizar as hidrovias urbanas, considerando o transporte de cargas, há uma relação dialética, conforme avalia Bussinger. “Se você não navega, sequer você tem olhar para o rio. Se você navega por qualquer que seja o motivo, para transportar passageiros ou carga, você passa a ter mais atenção sobre”, pondera.
Nesse sentido, o engenheiro argumenta que o sistema hidroviário “precisa ser incluído nos planejamentos [públicos], e isso não vem acontecendo. Precisa ser pensado como parte do sistema de transporte”. Senna pactua: “A falta de atenção que ainda se tem é resultado da falta de um projeto permanente de logística, com recursos assegurados e uma gestão competente e respeitada.”
Exemplo nacional
França, Holanda, Alemanha e demais países europeus são referência no imaginário coletivo quando o assunto é um barco em meio a grandes cidades. “Nos Estados Unidos, a Tennessee Valley Authority (TVA) foi a coluna vertebral com a qual o Roosevelt [presidente Franklin Roosevelt] estruturou o New Deal [programa de recuperação econômica instituído nos anos 1930, após a crise de 1929], que gerava renda para a população inteira em um dos vales mais pobres da época. Países como o nosso se inspiraram muito nesses projetos, como no caso da Hidrovia Tietê-Paraná”, relata Delijaicov.
A Tietê-Paraná é a única no País considerada uma hidrovia urbana por ser, em sua totalidade, sinalizada e acompanhada. Em seus 800km dentro do Estado, do total de 2.400km de extensão, é administrada pelo Departamento Hidroviário (DH) da Secretaria dos Transportes do Estado de São Paulo.
Esse grande corredor aquático abrange os estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais, uma região de 76 milhões de hectares, segundo dados do DH. Parte do sistema de transporte multimodal de exportação, gera quase a metade do produto interno brasileiro.
“Antes da pandemia, transportávamos 9 mil toneladas de grãos por ano”, conta o diretor do DH, José Reis. Na visão dele, ainda é possível expandir a navegação pelos afluentes do Rio Tietê. “Entendo que entre esse trajeto da divisa do Estado de São Paulo com Mato Grosso do Sul, na divisa do Tietê com o Paraná até a cidade de Pederneiras, nós poderíamos ter mais portos intermodais para distribuição de vários outros produtos”, avalia.
O único “calcanhar de Aquiles”, nas palavras do engenheiro, é na região de Nova Avanhandava. “Nesse local há um pedral [conjunto de rochas e pedras] que na crise hídrica aflora, e isso impede a navegação. Em virtude da última crise hídrica, nós ficamos parados por oito meses", conta Reis, segundo o qual não é a primeira vez que a obra é descontinuada. O mesmo ocorreu entre 2015 e 2016.
A obra de ampliação do canal de Nova Avanhandava, para redução do risco de interrupção da navegação em períodos de estiagem, estimada em R$ 303,5 milhões, aguarda aprovação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para ser retomada, conforme o DH.
Nesse sentido, o diretor chama atenção à falta de recursos para obras necessárias. Uma opção, segundo ele, seria cobrar pelo uso da hidrovia. “O transporte realizado na Hidrovia Tietê-Paraná, de produtos como soja, milho, madeira e outros, é feito por empresas privadas. O Estado sequer recebe qualquer recurso, quaisquer tarifas. Essas empresas utilizam os rios, fazem todas as eclusagens, sem estender qualquer valor de taxa ou pedágio ou algo semelhante”, critica.
A hidrovia urbana ainda realiza turismo fluvial, na eclusa de Barra Bonita. “O passeio pode ser feito rio acima, até o encontro com o Rio Piracicaba, e rio abaixo, em trecho com maior presença de pássaros e vegetação. As viagens duram de duas a três horas, passando pela eclusa e por pontos históricos e paisagens naturais exuberantes”, descreve o DH.
Um destaque na atração é a transposição da barragem de Barra Bonita, em que a embarcação é elevada por um desnível de cerca de 25 metros. No ano de 2019, o turismo fluvial recebeu mais de 110 mil passageiros.
A valorização das águas, na avaliação de Delijaicov, resulta em benefícios tangíveis e intangíveis. Ele vislumbra: “A gente deixa para as gerações futuras a ideia de educação ambiental, de se ter prazer e saber respeitar as águas urbanas.”
Foto no destaque: Grupo Metrópole Fluvial/ FAU-USP / Arte: Eliel Almeida