Soraya Misleh
Como anunciou durante sua campanha eleitoral, o governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), já estuda a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado (Sabesp), maior empresa do setor da América Latina e terceira maior do mundo. A despeito de ser lucrativa, eficiente e referência internacional, como enfatizam especialistas ouvidos pelo JE, a ameaça, que não é de hoje, ganha corpo e preocupa engenheiros.
O SEESP tem se somado a demais organizações de trabalhadores da empresa e da sociedade civil em defesa do saneamento na luta para barrar a desestatização. Na ótica da presidente de sua Delegacia Sindical em Sorocaba e engenheira da Sabesp há 28 anos, Fátima Blockwitz, não há qualquer justificativa plausível para privatizar a companhia, o que trará retrocessos na meta de universalização do saneamento básico no Estado até 2030.
Segundo dados da empresa, em relação a abastecimento de água, o índice de 100% já foi atingido, abarcando os 372 municípios por ela operados – atendendo, no total, como informa Blockwitz, 28,4 milhões de pessoas. Quanto a esgotamento sanitário, a coleta alcança 90% (25,2 milhões de paulistas) e desse montante, 77% com tratamento.
Lei 14.026/2020. Esta instituiu o novo marco legal do setor em todo o País, o qual abre caminho às privatizações no segmento, como atesta João Carlos Gonçalves Bibbo, vice-presidente do SEESP e engenheiro da Sabesp há 46 anos. “O marco empurra para isso, a partir do momento que dá à empresa privada o mesmo direito de acesso ao poder concedente que as públicas”, corrobora a consultora e pesquisadora em saneamento Samira Bevilaqua. Ela se refere ao fato de que as últimas, após o vencimento dos contratos de programa, para continuarem a prestar o serviço, deverão participar de processo licitatório a partir da nova lei, podendo concorrer inclusive com grandes conglomerados estrangeiros.
A meta de universalização apresentada pela Sabesp antecipa em três anos o prazo nacional de 2033 para tanto, determinado pela
A Sabesp, garante Bibbo, renovou os contratos com os municípios antes da aprovação da Lei 14.026/2020. Independentemente disso, é a bola da vez entre as privatizações pretendidas pelo governador eleito. Para o professor colaborador do Programa de Planejamento e Gestão de Território da Universidade Federal do ABC (UFABC), Ricardo de Sousa Moretti, isso tem a ver com a visão sobre o saneamento: “Há duas maneiras muito diferentes de olhar. Uma como somatório de obras de infraestrutura [simplesmente] e outra como o conjunto dessas obras com o objetivo de atender a saúde pública.” Essa última concepção vem do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), instituído formalmente em 1971, o qual “tentou garantir especialmente investimentos em água e esgotamento sanitário”.
Já pela ótica que norteia a privatização do setor, leva-se em consideração a viabilidade de obras de infraestrutura a partir do retorno financeiro obtido com as tarifas. Moretti, que é também membro do Conselho de Orientação do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), detalha: “Isso traz grandes dificuldades ao saneamento no Brasil, nos locais onde não é considerado bom negócio, que são os de grande carência e representam os desafios da universalização. É o que ocorre regionalmente na Amazônia, em que as distâncias são enormes, os investimentos são muito caros, a densidade populacional é muito baixa. Isso ocorre também nos municípios pequenos de todo o Brasil e especialmente de São Paulo, nas favelas, nas áreas rurais que margeiam cidades pequenas e grandes.” Secretário executivo do Ondas e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários, Edson Aparecido da Silva corrobora: “Em que pese o alto nível de cobertura, quem não tem água e esgoto são as pessoas que vivem em favelas, morros, assentamentos precários, periferias das cidades, áreas rurais.”
Moretti questiona: “O remédio para o problema seria transformar cada vez mais o saneamento em negócio? É o contrário, tem que ser visto como ação pública para diminuir os gastos gigantescos com saúde. Onde se tentou privatizar as iniciativas foram muito mal. Trata-se de monopólio natural de um serviço essencial. Afinal, é possível escolher o provedor de água e esgoto? Se não se fornece água à população, o colapso é questão de dias.”
Diante desse quadro, ele é categórico: “Deixar o serviço nas mãos de empresa privada e imaginar que vai investir na universalização não é só loucura, como também estratégia de saúde pública kamikaze. A iniciativa privada quer pegar lugares onde o saneamento já está resolvido, vai entrar onde é lucrativo, mas a demanda se dá onde o investimento é pouco rentável.”
Papel social
Blockwitz lembra que a Resolução A64/292 da Organização das Nações Unidas (ONU) declara “o acesso à água limpa e segura e o saneamento básico como direitos humanos fundamentais”. A engenheira revela alinhamento da empresa pública paulista com esse princípio: “A Sabesp tem uma tarifa social [aplicável para desempregados e famílias com renda até três salários mínimos], em que as pessoas pagam um valor simbólico, totalmente subsidiada pela companhia.”
Silva observa que esta se encontra em risco caso se leve adiante a desestatização. A conclusão se baseia no que ocorre no estado do Rio de Janeiro após a privatização de sua Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), em 30 de abril de 2021 – que resultou no seu fatiamento em três blocos: a “tarifa social” da empresa hoje é de R$ 45,00, enquanto a da Sabesp é de R$ 20,00.
O impacto se vê também na “tarifa normal residencial” no estado fluminense, atualmente em R$ 110,00, enquanto a empresa paulista cobra R$ 65,00. “A possibilidade de aumentos abusivos é muito grande”, salienta. O engenheiro aposentado da Sabesp e consultor em saneamento Rodolfo Costa e Silva ratifica e desmonta argumento de que o órgão regulador conteria esse processo: “As agências são muito frágeis, e pode se estabelecer elevação de preços crescente.”
Na mesma linha, Moretti ressalta: “A tarifa vai aumentar, assim como as dificuldades para que a empresa cumpra seu papel voltado à saúde pública. Quem vai pagar a conta é o conjunto dos cidadãos. A privatização é muito ruim para o consumidor, tétrica para a população mais pobre e péssima política pública para o Governo do Estado, que perderá o controle da empresa, o que vai reverter em gastos extorsivos com saúde pública. Além disso, deixará de receber algumas centenas de milhões de reais em dividendos. Vai entregar a galinha dos ovos de ouro.”
Bibbo traz outro exemplo de por que não privatizar: “Na pandemia de Covid-19, a Sabesp não cortou a água de ninguém, não cortou a água da população de baixa renda que não pagou a conta. Principalmente seus funcionários sabem que a Sabesp é uma empresa de engenharia e de saúde preventiva. Se não fosse a companhia de saneamento, o volume de internações por doenças de veiculação hídrica seria muito grande, a um custo super elevado [ao Sistema Único de Saúde – SUS]. Empresa privada quer lucro, a Sabesp quer atender a população.”
O secretário executivo do Ondas lembra a importância do papel social da companhia: “Quase 21% da população do Estado está inscrita no CadÚnico [Cadastro Único para Programas Sociais], segundo o Ministério das Cidades, em processo de vulnerabilidade, e mais de 10% encontram-se na extrema pobreza.”
E complementa: “A empresa, enquanto estatal, tem desempenhado papel importante no Estado de São Paulo principalmente no que diz respeito ao atendimento de parcela significativa da população que vive em pequenas cidades.” Conforme ele, do total de localidades abarcadas pela Sabesp, 245 têm até 20 mil habitantes; 54 têm entre 20 mil e 50 mil; e 31, entre 50 mil e 100 mil.
Para garantir o saneamento nesses destinos, a companhia utiliza o mecanismo do subsídio cruzado. Quem explica é Blockwitz: ““Sua receita operacional líquida é de R$ 12 bilhões ao ano, e a capacidade de investimento em 2021 foi de R$ 6 bilhões. A capital de São Paulo e a Baixada Santista são os dois pontos onde a Sabesp mais fatura, inclusive porque tem uma infraestrutura já montada ali. Esse dinheiro subsidia o investimento no interior do Estado, cria condições para que invista em cidades que não dão lucro.”
Para ilustrar, ela conta sua experiência: “Assim que entrei na Sabesp, em 1994, fui mandada a Guapiara para fazer o sistema de tratamento de esgoto. O Rio São José passa no meio da cidade, as crianças brincavam no meio daquela água suja. O esgoto era lançado diretamente no rio, daí fomos fazer essa obra, que incluiu seis estações elevatórias e tanques em concreto armado. Se a Sabesp puser no papel, duvido que tenha retornado o investimento. Uma empresa privada não vai fazer isso.” Guapiara tem, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 17.998 habitantes.
A estrutura tarifária, como explica Bevilaqua, é hoje calculada pela agência reguladora, a Arsesp, com base no subsídio cruzado. “Os mais ricos dão o suporte aos mais pobres. Com a privatização, vai se dividir o filé e o osso, que são os municípios mais difíceis, menos lucrativos, e os que mais precisam de investimento.”
Os pequenos enfrentam dificuldades grandes, como se demonstrou recentemente, quando o Governo do Estado criou as Unidades Regionais de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário (Uraes) para que fossem operados em bloco, a partir da Lei 17.383/2021, numa tentativa de regionalizar o mecanismo do subsídio cruzado, implementando-o entre os municípios de determinada área. “Eles tinham prazo de adesão a essas unidades, mas esta foi bem ínfima, não houve resultado positivo”, informa a especialista.
Uma das dificuldades encontradas, ainda segundo Bevilaqua, é a falta de estrutura e capacitação técnica para que elaborassem seus planos de saneamento, que balizariam o serviço. Diante de tamanha fragilidade, em caso de privatização, esses municípios, analisa a consultora, “terão os serviços mais caros para tornar viável a universalização, com consequências sociais, raciais, para a população preta, mais excluída social e geograficamente, para quilombolas, povos originários”.
Silva enfatiza: “A lógica presente na operação pública é inversa à do setor privado, que prefere atuar nos grandes e médios municípios e, de preferência, em que a necessidade de investimento, sobretudo em redes coletoras e de tratamento de esgoto, seja menor.”
Desmonte do setor
Para Costa e Silva, privatizar a empresa vai culminar em aumento tarifário e queda na qualidade do serviço, com incremento no risco de veiculação de doenças e crescimento da mortalidade infantil.
O dano ao País será gigantesco, com o desmonte ainda de todo o setor de saneamento. Pelo gigantismo da companhia, ele acredita que a companhia está na mira de empresas do exterior, que deixariam de adquirir produtos e serviços no Brasil. De acordo com ele, a Sabesp é definidora do tamanho do mercado nacional: “Há centenas de milhares de profissionais de engenharia trabalhando em várias empresas que fazem hidrômetros. Isso acontece com tubos, peças especiais, consultoria, com diversos serviços prestados.”
Costa e Silva alerta que toda a cadeia produtiva vai quebrar se a companhia vier a ser entregue para algum grupo estrangeiro. “China, França, esses países fabricam esses produtos, e a Sabesp [privatizada] pode passar a comprar tudo de fora. Projeto, consultoria, tecnologia andam de avião [em referência a possível contratação do exterior]. O trabalhador vai ser prejudicado. A tendência é que a alta técnica seja demitida para dar lugar a mão de obra mais barata.” Ele continua: “Os danos tecnológicos e na geração de empregos são gigantescos. Em 30 anos [padrão de vigência dos contratos de concessão] não vai ter mais faculdade de engenharia sanitária no Brasil. Isso é um crime contra a pátria, desestrutura todo o saneamento paulista.”
Tendência global
O consultor lembra que isso aconteceu na Argentina com a privatização para grupo francês, obrigando o governo a reestatizar a empresa. Blockwitz destaca, portanto, que a venda da Sabesp não deveria sequer estar na pauta, haja visto que “vai na contramão de tudo o que tem acontecido no mundo com as privatizações”. Ela cita os inúmeros exemplos negativos mundo afora que fizeram com que, até o momento, 270 cidades em diversos países reestatizassem o saneamento, entre elas Nova York, Paris, Barcelona e Berlim.
No Brasil também há casos afins que revelam o equívoco dessa decisão, como Tocantins, em que o saneamento voltou às mãos do poder público. Neste estado, como detalha Silva, a companhia do setor, que atuava em 125 cidades, foi entregue à iniciativa privada em 1998. Doze anos depois, a empresa que assumiu o serviço passou a prestá-lo apenas em 47 municípios. “Devolveu os 78 menores ao poder público, que em 2013 teve que criar uma autarquia estadual para operar o que não era de interesse da iniciativa privada. Isso pode acontecer aqui”, alerta o secretário executivo do Ondas. Ele menciona ainda outro mau exemplo em âmbito nacional: “A Iguá Saneamento, que presta serviços em São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso, resolveu vender 11 concessões nos municípios pequenos para focar somente nos de médio e grande porte.”
a situação de Manaus, privatizada no ano 2000, que se encontra entre as 100 maiores cidades do Brasil e na 89ª. colocação em relação às condições do saneamento. “A capital cercada de água tem cerca de 600 mil pessoas sem acesso a ela. Os atendimentos são pífios, com apenas 10% de coleta de esgoto.” Além de estar muito aquém da universalização, Blockwitz lembra que Manaus “tem a tarifa mais cara da região amazônica”.
Também como mostra do fracasso desse modelo no setor, Silva apresenta
O Piauí, em que a privatização se deu em 2018, enfrenta o mesmo drama. “São 220 municípios, sendo que 210 não têm 20 mil habitantes. Tem-se uma água mais ou menos potável, quase toda sem cloro. Arrisco dizer que o povo daquele estado paga o mesmo preço do paulista”, lamenta Costa e Silva.
O governador eleito Tarcísio de Freitas não precisa sequer olhar além do Estado de São Paulo para concluir que esse modelo é desastroso. Em Itu, no interior, a remunicipalização foi o caminho adotado em 2015, após fracasso na gestão da crise hídrica pela empresa privada. Já a Sabesp atuou com excelência diante de tal situação: “Quando ocorreu a crise hídrica no Estado, conseguimos sair dela porque sua equipe viabilizou tecnicamente um estudo para melhor distribuição de água, interligando todo o sistema produtor da Sabesp e conservando durante a noite a pressão da rede, para evitar vazamentos. A base da empresa é a engenharia, seu corpo técnico é o melhor do Brasil e da América Latina”, orgulha-se Bibbo. Ele estima que hoje haja em torno de 12 mil funcionários, dos quais cerca de 900 profissionais da categoria.
Preservar a empresa
Lutar contra a privatização da Sabesp, na visão de Costa e Silva, é defender a engenharia e a tecnologia nacionais. Para Moretti e Silva, o caminho deveria ser preservá-la enquanto empresa pública. “A companhia é muito competente, tem equipe técnica fantástica, executa trabalho de excelência e dá lucro bilionário. Cumpre com sua função social, mas precisa melhorar. O grande desafio é fortalecê-la, não privatizá-la”, afirma o professor da UFABC. Na sua ótica, a empresa poderia ampliar seu olhar voltado à saúde, por exemplo atuando em parceria com a Prefeitura de São Paulo na instalação de banheiros públicos.
Leia aqui a Palavra do Murilo sobre essa luta da engenharia
Na mesma linha, o secretário executivo do Ondas traça a estratégia que recomenda ao governador eleito: manter a maioria das ações sob controle do poder público [hoje 50,7% em suas mãos e 49,3%, de investidores privados] e “desenvolver política de saneamento básico para o conjunto dos municípios paulistas, não só os operados pela Sabesp. Colocá-la a serviço da universalização do acesso, utilizando universidades, instituições e outras empresas públicas, como Daee [Departamento de Águas e Energia Elétrica] e Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo]”. Ter, assim, uma política de Estado em que a companhia apoiaria aquelas cidades que operam diretamente o serviço.
Bevilaqua propugna a participação social na decisão e discussões como fundamental: “Hoje temos a ouvidoria, as audiências e consultas públicas, que são muito importantes, mas não totalmente eficazes. A população tem que saber o que está em jogo, entender quais são os riscos, para que haja mobilização.”
Bibbo revela que o sindicato está buscando audiência com Tarcísio de Freitas e sua equipe para apresentar informações técnicas que mostram por que a companhia não deve ser privatizada. Segundo ele, deputados eleitos em 2 de outubro último concordam com essa diretriz, como afirmaram em encontros com os engenheiros no SEESP, durante ciclo de debates em meio à campanha eleitoral. Além disso, o vice-presidente da entidade informa que já há pesquisa junto aos usuários, a qual revela que “estão contentes com o serviço prestado pela empresa, são a favor de não privatizá-la”. E conclui: “A Sabesp é patrimônio do povo paulista, não do governo de plantão.”
Foto no destaque: Reservatório da Sabesp/Divulgação
Será um absurdo uma eventual privatização da SABESP. Todos perdem e a população será a maior prejudicada.