Jéssica Silva
A ida ao trabalho, à escola ou o retorno à casa têm sido cada vez mais desafiadores para os paulistas que dependem dos trens metropolitanos das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda. Operadas pela Via Mobilidade desde o início de 2022, ambas apresentaram no primeiro ano de gestão da concessionária, em média, uma falha a cada três dias. Queda de energia, lentidão, fumaça, abertura incorreta das portas dos trens e até descarrilamentos têm sido noticiados pela mídia e denunciados pelos usuários nas redes sociais.
As ocorrências no período somaram 166, quase cinco vezes mais que nos dois anos anteriores. Em 2020 e 2021, sob administração da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), houve 34.
As linha 8 (Itapevi-Capital) e 9 (Osasco-Grajaú) têm, juntas, mais de 70 quilômetros de extensão e transportam aproximadamente 1 milhão de pessoas por dia. Apesar de centenárias, não é possível alegar que as falhas se devem por serem vias antigas, já que foram reformuladas. É o que salienta Carlos Alberto Requena, arquiteto e urbanista especialista em engenharia ferroviária. “Nos anos 1970, a então Fepasa pegou as linhas da Sorocabana e colocou tudo abaixo, construiu uma linha totalmente nova. Nos anos 2000, com a dinamização do eixo sul, a 9, antiga linha C, foi reformulada mais uma vez. Foi tirada toda a infraestrutura, colocado lastro novo, trilhos novos”, diz.
Requena atuou por 23 anos na CPTM, tendo passado pela área de supervisão geral de manutenção. Para ele, o “calcanhar de Aquiles” da linha 9 é a energia elétrica.
“O sistema é subdimensionado, recebe menos energia do que precisaria. Quando se tem excesso de trens numa infraestrutura deficiente é a mesma coisa que colocar numa tomada vários benjamins, sobrecarrega-se o sistema elétrico, cozinham-se os fios, provoca-se fuga de tensão, picos de energia. Isso pode ser uma das fontes dos problemas que culminaram no gravíssimo evento de descarrilamento”, avalia.
Somente em 2023 ocorreram quatro descarrilamentos nas linhas 8 e 9, todos próximos de áreas de Aparelhos de Mudança de Via (AMV), em que muitos componentes são sensíveis a alta tensão e desgaste, conforme o especialista.
“Pode ter falhas de comunicação ou na socaria [lastro compactado que sustenta os dormentes]. O lastro [material da infraestrutura feito de rochas] é um problema crônico. Se não está estabilizado, se não tem drenagem suficiente, ele cede com a passagem do trem. Mas é aí que entra a confiabilidade da manutenção”, afirma Milton Zilocchi, profissional técnico em agrimensura e estrada, com mais de 30 anos de experiência em ferrovias.
Esta última, que impede que graves acidentes como o descarrilamento ocorram, é estipulada em contrato e depende, segundo ele, da gestão. “Não é um problema de engenharia, as pessoas sabem o que tem que ser feito. O que compromete o trabalho são as decisões administrativas. Para consertar todo um circuito da via e ter a confiabilidade de que o trecho inicial não apresentará problemas antes que se chegue ao final, precisa de tempo. A forma como fazem os contratos impede as grandes obras”, critica.
Quando a confiabilidade é baixa, conforme os especialistas, a medida para evitar acidentes é reduzir a velocidade na via, o que equivale, na visão de Zilocchi, a “assumir que as coisas não estão boas”.
Medidas necessárias
Multada e cobrada pelo Governo e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, a Via Mobilidade apresentou, em fevereiro último, um plano de ação com investimento de R$ 519 milhões em melhorias. Em abril, após ter rescisão de contrato cogitada pelo MP, a empresa anunciou mais R$ 117 milhões à adequação da via permanente (trilhos e dormentes) e R$ 87 milhões para obras em estações e plataformas, em reconciliação com os órgãos. Vale ressaltar que a concessionária é responsável pelas linhas pelo prazo de 30 anos, de acordo com leilão público realizado em abril de 2021.
Para o engenheiro civil Elcio Kazuaki Niwa, pós-graduado em Infraestrutura de Via Permanente e especialista em linhas de média e alta velocidade, a gravidade do descarrilamento, que implica feridos e até possíveis mortes, também atinge o patrimônio público. “O governo estadual deveria ter uma fiscalização mais detalhada do serviço”, enfatiza. E defende: “Seria interessante discutir [a criação de] uma autoridade metropolitana de transporte, uma agência com corpo técnico para acompanhar material rodante, vias permanentes, que pudesse trazer à população uma resposta mais célere, um acompanhamento de contrato, das concessões.”
Requena ratifica: “Desde um dos primeiros descarrilamentos que aconteceram, não se formou uma comissão para vistoriar o que houve e assim evitar que se repetisse. Assim como na aviação existe o Cenipa [Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos], é urgente a criação de algum órgão, uma estrutura similar que assuma as investigações de acidentes e incidentes no transporte coletivo de alta capacidade.”
Niwa chama atenção ainda para o fato de que, no processo de privatização das linhas 8 e 9, muitos trabalhadores qualificados terem sido desligados da CPTM, resultando em perda de conhecimento técnico especializado, adquirido e aprimorado continuamente no exercício da função.
Essa expertise, na avaliação do vice-presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Jundiaí, José Augusto de Moraes, que atuou por 26 anos na CPTM, requer estudo e prática ao longo de muitos anos; muitos erros, tentativas, iniciativas, discussões. “A ferrovia é muito complexa, tal qual o ser humano”, reforça.
O profissional qualificado, de acordo com Requena, é o melhor “fusível para acidentes”. “O erro de um cálculo de desgaste de trilho não só pode causar acidentes, como dar um prejuízo enorme para a empresa, porque é um dos produtos mais caros”, complementa Zilocchi.
Os especialistas descartam rumores de sabotagem nos transportes por ex-funcionários da CPTM, como chegou a afirmar, sem qualquer prova, Rodrigo Garcia, então governador do Estado, após ser questionado sobre os problemas nas linhas 8 e 9. “Acusar alguém, de qualquer companhia que seja, de intencionalmente fazer algo com potencial de causar acidentes é muito grave e de uma leviandade cruel. Se por acaso, numa investigação séria e isenta, chegar-se à conclusão de que houve sabotagem é diferente. Mas especular é muito grave”, aponta Requena.
Zilocchi provoca: “Quando há competência, programa de modificações para melhorias que beneficiam os usuários, quando se cria sinalização, plano de via, projetos e implantações e tudo isso é deixado de lado, quem sabotou? Dinheiro público jogado fora é um tipo de sabotagem.”
SEESP diz não à privatização da CPTM
A preocupação com manutenção e segurança dos usuários foi destacada pelo vice-presidente do SEESP, Celso Atienza, durante audiência pública contra a privatização da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), realizada no dia 24 de abril último, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). A iniciativa dos mandatos dos deputados estaduais do PT Maurici, Simão Pedro e Luiz Claudio Marcolino reuniu entre os participantes ferroviários, especialistas, engenheiros e técnicos do setor.
O chefe do Executivo paulista, Tarcísio de Freitas, pretende dar continuidade à privatização da companhia, tendo incluído a Linha 7-Rubi (Brás-Jundiaí) na licitação do Trem Intermetropolitano (São Paulo-Campinas), cujo leilão está marcado para 28 de novembro deste ano. Além disso, durante entrevista coletiva no Palácio dos Bandeirantes para apresentar o balanço dos 100 dias de seu governo, ele anunciou a contratação da International Finance Corporation (IFC), membro do grupo do Banco Mundial, para viabilizar estudos a nova rodada de concessões de linhas da CPTM. Nesse pacote, estão na mira a 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), a 11-Coral (Luz-Estudantes), a 12-Safira (Brás-Calmon Viana), a 13-Jade (Eng. Goulart-Aeroporto de Guarulhos) e a futura linha 14 Ônix, que deve ligar Guarulhos ao ABC. Segundo informações no site da CPTM, a média de passageiros transportados por dia útil nas linhas em operação é de 1,48 milhão (dados relativos a novembro de 2022).
Atienza foi categórico durante a audiência ao afirmar que, em nome do SEESP, representava ali "um esforço pela não privatização", considerando esta uma luta não apenas dos ferroviários, mas de toda a sociedade. Nesse sentido, lembrou ainda a mobilização para impedir a desestatização da Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp), também incluída nos estudos a serem apresentados pela consultoria do Banco Mundial. "Sabemos que o poder privado não vai atender as necessidades de quem mais precisa", pontuou o vice-presidente do sindicato. E cobrou que o estudo do IFC "passe necessariamente pela nossa análise, para a gente discutir os problemas de manutenção, responsabilidades civil e penal".
Também sugeriu levantar o histórico das empresas já privatizadas. Engenheiro de segurança do trabalho, ele alertou para as falhas que vêm ocorrendo e acidentes nas linhas 8 e 9, operadas pela Via Mobilidade - na sua ótica, "fruto da má gestão". E completou: "Não tem uma política da empresa voltada para a engenharia de segurança, que é o que vai dar condições de operabilidade e segurança dos trabalhadores."
Foto no destaque: Diário do Transporte/Ádamo Bazani