Rita Casaro
Incentivar a capacidade de inovar desde o jardim de infância, garantindo um ensino de engenharia que preserve a criatividade dos alunos e os prepare para enfrentar os desafios complexos do mundo real. Essa é a proposta da professora associada da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP) e vice-coordenadora do Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas, Roseli de Deus Lopes, para garantir alto nível aos quadros técnicos que produzirão os avanços necessários à melhoria das condições de vida da população brasileira e bons resultados às empresas.
Responsável pela concepção e viabilização da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), ela é coordenadora-geral da iniciativa que há 21 anos estimula estudantes da educação básica a desenvolverem projetos de pesquisa. Hoje também integra a diretoria da Associação Brasileira de Educação em Engenharia (Abenge).
Vice-diretora do Instituto de Estudos Avançados (IEA), Lopes defende um programa de Estado, com investimentos de longo prazo e indicadores de resultados, que garanta o fomento à ciência básica, a promoção da educação de qualidade e busque eliminar o hiato existente entre as teses produzidas nas universidades e a concretização dos produtos com potencial de gerar riqueza à sociedade.
Em entrevista ao Jornal do Engenheiro, a professora falou ainda sobre a necessidade de ampliar a diversidade de gênero e racial nas escolas de engenharia, assegurando a todos a possibilidade de ascensão na carreira. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Em março último aconteceu a mais recente edição da Febrace. Que balanço a senhora faz da feira?
Foi uma felicidade imensa poder voltar ao modo presencial. Nós ficamos três anos só via internet, fazendo a apresentação dos trabalhos, as avaliações, as arguições e a mostra pública. Este ano a gente fez em duas rodadas. Foram 500 projetos finalistas, que se apresentaram via internet em janeiro. Desses, a gente selecionou 225 para se apresentarem ao vivo na Cidade Universitária. O evento foi no InovaUSP, então há o valor simbólico também de poder estar no Centro de Inovação da USP, isso é muito importante, receber esses jovens que estão iniciando suas carreiras em ciência e tecnologia, já trazendo suas descobertas, suas invenções. E foi muito bacana ver que, a cada ano, o potencial deles de conseguir realizar projetos mais avançados, de maior complexidade, aumenta. A gente está aí há 21 anos na estrada e se surpreende quando os jovens aprendem a fazer boas perguntas, a usar os métodos que a gente utiliza nas pesquisas científicas e tecnológicas, como eles, ainda tão jovens, na educação básica, são capazes de desenvolver projetos melhores do que muitos que a gente vê em mestrados e doutorados nas nossas universidades.
Quais as perspectivas futuras?
Ao longo de 21 anos, a gente foi desenvolvendo uma série de estratégias, porque o nosso objetivo é fazer com que esse tipo de trabalho chegue lá na ponta, em cada uma das nossas escolas. Que as escolas percebam que muito mais do que o aluno decorar alguns conteúdos, que ele não sabe exatamente se vai precisar e como vai aplicar, aprenda a identificar os problemas, a aprofundar a compreensão em busca de soluções; aprender a aprender, a como enfrentar desafios. Para o ano seguinte, o que se pretende é aumentar a abrangência. A gente já recebeu, ao longo de 21 anos, finalistas de mais de 1.300 municípios diferentes. Mas o Brasil tem mais de 5.600 municípios, então a gente ainda tem uma estrada longa a percorrer, de fazer com que essa semente chegue. Porque quando essa semente chega numa escola, quando você consegue ter alguém que desenvolve um projeto a ponto de ser selecionado para a Febrace ou para a rede de feiras afiliadas, que são cerca de 120, esse trabalho, normalmente, acaba tomando mais espaço dentro da escola. Tem algumas escolas que começaram com um ou dois projetos sendo desenvolvidos com um orientador e depois acabaram, no bom sentido, contaminando a escola inteira. Tem algumas que conseguem realizar esse tipo de atividade envolvendo todos os alunos. Não é uma tarefa fácil, porque você sai do convencional, passa a permitir que os alunos façam perguntas que às vezes os professores não sabem ainda como responder. Então, o professor perceber que isso é importante é a mensagem que a gente está levando para todas as escolas, e em algumas já está tomando corpo. Nossa expectativa para o ano que vem é conseguir mais
parceiros. Agora em maio, vão em torno de 15 alunos para os Estados Unidos, que foram selecionados na Febrace, para a International Science and Engineering Fair (Isef), que este ano será em Dallas. Eles vão estar com alunos do mundo inteiro. E tão importante quanto mostrarem o projeto que estão desenvolvendo é conhecer essas outras pessoas que têm um propósito como o deles, que é de investir em ciência e tecnologia para resolver os problemas do mundo. Então eles fazem amigos e conexões que, às vezes, trazem desdobramentos ao longo da carreira. Uma ex-aluna nossa aqui da Poli, que tinha sido finalista na Febrace, depois de concluir o curso de engenharia, foi fazer doutorado direto na Universidade da Pensilvânia com um orientador que ela conheceu por meio de uma premiação da feira, que foi um acampamento científico na Coreia do Sul. Faz parte da estratégia da Febrace criar novas conexões.
A senhora é vice-diretora de uma das instituições mais renomadas da USP, que é o Instituto de Estudos Avançados. O que faz o IEA e qual a importância dele para a sociedade?
A USP tem as unidades de ensino que acabam sendo as mais conhecidas, com os cursos de graduação e de pós, como a Escola Politécnica, por exemplo, mas tem alguns institutos especializados, que têm alguma missão específica. O IEA é um deles, focado principalmente em pesquisas que envolvem interdisciplinaridade e multidisciplinaridade, que precisam de pessoas de áreas de conhecimento diversificadas. Tem o foco maior em estudos e pesquisas com implicações em políticas públicas. É o que as empresas não fariam sozinhas. Então, com uma estrutura muito enxuta, a gente consegue rapidamente ter não só as pessoas especialistas nas diversas áreas temáticas necessárias para cada projeto, para cada programa, que sejam da própria USP, mas também articular colaboradores, pesquisadores não só da academia, mas também as pessoas que detêm o conhecimento de uma determinada área na sociedade. A gente tem mecanismos para fazer essas articulações para que essas pessoas sejam valorizadas, reconhecidas na universidade, que participem dos projetos. É um lugar muito diferenciado, tem sido um momento muito feliz da vida. A cada conversa, a cada reunião, é uma oportunidade para aprender sobre assuntos diferentes e de grande complexidade. E hoje, para você fazer pesquisas de impacto, principalmente em larga escala, é muito importante que tenha esses ambientes onde se conectam pessoas que são de áreas diferentes. O começo da conversa é difícil, porque às vezes você usa as mesmas palavras com significados diferentes, mas a gente consegue ter resultados muito relevantes. Eu estou aqui na diretoria, junto com o professor Guilherme Ary Plonski; além do prazer de trabalhar com uma pessoa especial como ele, estar no IEA tem sido um momento da minha carreira especialmente importante.
Houve no Brasil, nos últimos anos, redução dos recursos destinados a C&T. Por que isso é um problema para o desenvolvimento nacional e para o bem-estar da população?
É muito importante essa sua pergunta, a gente precisa ter políticas de Estado, que são estratégicas e de longo prazo. E hoje o mundo é muito mais desafiador do que já foi, é tudo muito rápido, a competição global é exacerbada. Os investimentos em educação, ciência, tecnologia e inovação são absolutamente fundamentais. E tem esse nome, é investimento, não é gasto. Para que a gente consiga ter retorno garantido, com desenvolvimento econômico e, principalmente, social, precisa ter políticas de longo prazo muito bem avaliadas, com indicadores claros, para a área de educação, ciência, tecnologia e inovação, esse é o caminho. Eu fui da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e, olhando a história, vê-se que lá atrás teve – e o País é jovem, portanto, esse lá atrás foi no século passado. Ali, um grupo de pessoas que se reuniu criou a SBPC e um movimento forte em defesa da ciência e da tecnologia, alguns ministérios, fundações de apoio à pesquisa e também os indicadores de avaliação nas universidades. Tudo isso junto fez com que o Brasil conseguisse se posicionar muito bem na geração de conhecimento. Então, quando a gente vai olhar os indicadores de ciência em publicações, o Brasil tem posição entre a 12ª e a 13ª. Quando olha inovação, está na posição 60ª. A gente consegue fazer ciência e tecnologia básica, mas para isso virar produto para a sociedade, tem um buraco no meio. As empresas conseguem fazer engenharia de produto, de mercado, mas tem um buraco no meio, que é justamente o que viabiliza a inovação. Esse buraco é entre as teses, os protótipos e o produto, [até o qual] você tem um caminho longo. E existe um pedaço aí no meio que precisa de apoio público também. Porque as empresas, para conseguirem sobreviver, acabam se limitando. A gente teve um processo muito forte de desindustrialização do Brasil; muitas das empresas acabam se limitando a trazer alguma coisa semipronta de fora, colocar na caixa e vender. Não conseguem dar conta do ciclo completo. Nos últimos anos, houve redução dos investimentos drástica, foi um desmonte, as bolsas estavam com valores insignificantes. Felizmente, agora a gente está vendo uma luz. As bolsas estão sendo recuperadas, pessoas com competência e que entendem do assunto nas áreas relacionadas, como Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) etc..
Ponto fundamental à retomada da industrialização, então, é essa aproximação entre universidades e setor produtivo?
Por exemplo, na Universidade de São Paulo, nossa Pró-reitoria de Pesquisa mudou de nome, e agora [inclui] Inovação porque se entendeu que é preciso dar essa sinalização, tanto interna como externa, de que há um papel de chegar mais perto das empresas, das indústrias, para que elas consigam ser inovadoras. Existem várias entidades, outras universidades, indo por esse mesmo caminho, mas a gente precisa acelerar. É muito importante a gente estar no ranking de ciência de ponta, mas é igualmente importante que a gente crie os mecanismos para engajamento para que essa ciência se converta em produtos e processos que resolvam os problemas não só no Brasil, mas em outros países. Na Febrace, há 21 anos, quando a gente criou o slogan, colocou junto com o nome “criatividade e inovação”. Porque começa lá no jardim da infância o incentivo à criatividade, à autoconfiança de que eu posso não só melhorar o que já existe, mas fazer coisas novas.
Qual o papel da educação em engenharia nesse processo de eliminar o buraco entre ciência e inovação, promovendo geração de riqueza e bem-estar?
Eu estou agora na Abenge, que é a Associação Brasileira de Educação em Engenharia. A gente precisa rever os nossos cursos de engenharia, porque eles eram muito focados em conteúdos e habilidades técnicas. Eu posso, sob demanda, aprender uma determinada técnica ou me aprofundar em alguma coisa, mas se eu não tiver uma visão mais sistêmica, a capacidade de trabalhar com pessoas que sejam de outras áreas, eu consigo entender profundamente qual é o problema? Então, desde os primeiros anos dos cursos, é [preciso] engajar esses alunos. Primeiro, mantendo a criatividade deles, permitindo que possam fazer perguntas que, às vezes, não são as mesmas que os professores querem fazer naquele momento. Ter um ambiente que permita que eles possam fazer algumas coisas que sejam do seu interesse, ter laboratórios abertos, um ecossistema de inovação disponível para que possam se desenvolver. Dentro dos cursos, fazer com que consigam enxergar a conexão com o mundo real de algumas coisas nas quais eles não têm muito interesse, mas que a gente sabe que são importantes. Em vez de pegar um problema de mentirinha só para aprender uma técnica, acaba surtindo muito mais efeito quando traz uma empresa, uma entidade ou uma comunidade com um problema de verdade. Quando eu pego um problema de verdade, não vou conseguir resolver facilmente, vou precisar me aprofundar, e aí há motivação para aprender algumas disciplinas, aprofundar-se em algumas técnicas e conteúdos. A base conceitual sólida precisa ser trabalhada ao longo do currículo, mas as oportunidades práticas têm que estar ali, junto com a teoria. Há algumas disciplinas aqui na Poli em que a gente tem as empresas como parceiras de duas formas. Com alguém que seja especialista e possa fazer esse diálogo com os nossos alunos para um aprofundamento da compreensão do problema e colaborando com recursos para que, quando o aluno vai fazer uma determinada atividade, ele não nivele por baixo. [Para que possa] fazer uma viagem de campo para investigar melhor o problema, comprar algum material que não está disponível na universidade, alugar algum equipamento. Não é fazer alguma coisa mais básica, só para tirar uma nota, mas realmente atingir o objetivo que foi colocado. Para as empresas, o recurso é muito pequeno perto do ganho, seja porque o aluno vai conseguir desenvolver uma solução ou porque vai ser um excelente profissional que provavelmente será contratado por ela.
Outro desafio é aumentar a diversidade racial e de gênero nas escolas e no mercado de trabalho de engenharia. Como avançar nesse campo?
A pauta da diversidade, colocando mais mulheres na engenharia, é já antiga, mas ainda tem muito trabalho para ser realizado. Na Poli, a gente tem em torno de 20% de meninas, dependendo da área específica, às vezes menos do que isso. Na Engenharia Química, às vezes, tem mais, mas em alguns anos, na Naval, por exemplo, não entra nenhuma. E isso é muito ruim. É importante falar na diversidade num amplo sentido, não só na questão das mulheres, porque a diversidade traz riqueza. Num primeiro momento pode parecer mais difícil, porque para convergir, quando tem pessoas e olhares diferentes, vai demorar mais, mas com certeza vai chegar numa solução melhor. Há vários estudos nacionais e internacionais que mostram isso. Não é só uma questão de justiça social, é também uma questão de melhor desempenho econômico, principalmente quando se fala de engenharia, porque desenvolve processos e produtos para as pessoas; se eu tenho uma melhor compreensão de quais são as necessidades, vai ter um resultado melhor. Há uma busca das instituições de ensino de excelência por aumentar a diversidade. Na USP, tem a Pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento, por exemplo, que foi criada recentemente, justamente para conseguir nos ajudar nessa direção. Na questão dos alunos ingressantes, mas também nos quadros de funcionários e de docentes da universidade, porque a gente tem uma série de barreiras, algumas culturais, que fazem com que algumas pessoas não consigam ter ascensão na carreira. Em algumas áreas, mesmo quando você vê presença de mulheres e de mulheres negras, no topo da carreira a proporção não se mantém. O Brasil é ainda um país muito machista, onde tarefas de cuidado do lar, da família, dos idosos acabam incidindo muito mais fortemente sobre a mulher. É um país violento também, tem a questão de feminicídio etc.. Então isso mostra que há muitas questões que precisam ser melhoradas em relação à convivência, ao respeito das pessoas pelas pessoas, seja na questão de gênero, no sentido mais amplo, não só masculino e feminino, seja de raça e etnia. O respeito é uma das coisas que têm que ser muito trabalhada, e as instituições de pesquisa precisam dar o exemplo. Não pode ficar só no discurso, tem que ser na ação, nos indicadores. E conseguir mostrar o que está fazendo: quais são os programas e os resultados. A Abenge tem o GT de mulheres em engenharia e atualmente tem uma presidente mulher, que é a professora Adriana Tonini. A presença de mulheres nos postos maiores, nas entidades e na direção das escolas de engenharia, ainda é muito recente. Na Poli, teve uma mulher vice-diretora e uma diretora, que foi a professora Liedi Bernucci, agora superintendente do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas). São pessoas que nos inspiram e que a gente precisa usar como exemplo para atrair as mulheres para essas carreiras, e que elas consigam alcançar postos de destaque para se possa efetivamente ter uma mudança, um aprimoramento nas nossas instituições.
Assista ao vídeo da entrevista