Soraya Misleh
A necessidade de um trem regional entre São Paulo e Campinas para desafogar as rodovias, ante iminente saturação, é objeto de debates há mais de duas décadas. Agora o Trem Intercidades (TIC) atendendo esse percurso promete finalmente sair do papel, porém o projeto definido não encontra aclamação entre especialistas. Estes se dividem entre os impactos positivos à mobilidade na macrometrópole e ao desenvolvimento regional, críticas pontuais e a percepção de perda do vagão da história.
Licitado ao consórcio formado pela estatal chinesa CRRC e a holding brasileira Comporte em leilão de parceria público-privada no dia 29 de fevereiro último, o TIC tem investimento estimado em R$ 14,2 bilhões, sendo 60% aporte público, e previsão de início de operação em 2031. Conforme a Assessoria de Comunicação da Secretaria de Parcerias em Investimentos do Estado de São Paulo (SPI), visa “a ligação de Campinas a São Paulo, com parada em Jundiaí, em 64 minutos, com intervalos de 15 minutos entre os trens”. Cada um, ainda segundo a Pasta, “poderá levar até 860 passageiros, com valor médio de passagem de R$ 50,00”. O percurso total será de 101km.
Além do TIC, a assessoria informa que no projeto estão incluídos o Trem Intermetropolitano (TIM) e a Linha 7-Rubi da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM): “O TIM, que será interligado à Linha 7, terá 44km de extensão, ligando Jundiaí e Campinas, com paradas em Louveira, Vinhedo e Valinhos. Todo o percurso será feito em até 33 minutos, com passagem no valor médio de R$ 14,05. Já para a Linha 7-Rubi, que também será administrada pela nova empresa entre as estações Barra Funda e Jundiaí, está prevista sua requalificação, incluindo a redução de intervalos [entre os trens].”
Hoje esta última já faz esse percurso, mas avança para Luz e Brás, na Capital, o que deixará de ocorrer. Sua inclusão no projeto do TIC e privatização das linhas da CPTM têm sido questionadas pelos sindicatos de trabalhadores do setor, inclusive o SEESP. O tema foi inclusive objeto de audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo em abril de 2023. Em plebiscito popular com 879.431 votantes, cujos resultados foram divulgados em novembro último, 99,975% afirmaram ser contra a privatização dos transportes e também do saneamento. Houve apenas 0,014% favoráveis e 0,011% abstenções.
Ganhos à macrometrópole
Segundo a informação oficial, a expectativa com o TIC é de transporte diário de 550 mil pessoas, no primeiro ano de operação conjunta. “Ao todo 11 cidades serão beneficiadas”, aponta a assessoria da SPI. “Com isso, o Governo do Estado prevê menos veículos circulando nas ruas, tornando o projeto sustentável e com menos emissão de poluentes, pois todos os trens utilizados serão elétricos”, acrescenta a assessoria da SPI. Ainda, a “escolha do trajeto entre Campinas e São Paulo ocorreu por já existir estrutura ferroviária no local, com áreas pertencentes aos governos estadual e federal, o que permitiu uma redução dos custos para implementação do projeto”.
O secretário municipal de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Campinas, Marcelo Coluccini, defende sua importância, tanto do ponto de vista da mobilidade quanto ao meio ambiente. A cidade, observa, é um polo regional, em que moradores de municípios vizinhos vêm para trabalhar, estudar e obter atendimento em saúde. Além disso, enfatiza, “hoje são quase 600 ônibus fretados que saem de Campinas e vão para São Paulo todos os dias, e vice-versa, além dos ônibus de carreira que partem da rodoviária. Com o trem, isso diminuirá e haverá menos emissão de CO2”.
Presidente da Delegacia Sindical do SEESP em Campinas, Antonio Areias Ferreira observa que o trem atende a uma demanda regional antiga, uma vez que o município, assim como Jundiaí, se transformou, em alguns pontos, em cidade-dormitório: “A pessoa mora aqui e trabalha em São Paulo.” O resultado é muito congestionamento, custo elevado de deslocamento e exaustão. Com o TIC, avalia, diminuirá o fluxo nas estradas e o cansaço, garantindo mais produtividade, qualidade de vida e saúde.
“Os trens regionais são importantíssimos para a macrometrópole paulista”, corrobora Emiliano Stanislau Affonso, diretor do SEESP. Ele lembra que dados da Pesquisa Origem e Destino entre 2007 e 2017 já mostravam que os dez principais eixos rodoviários estavam ficando saturados e entrariam em colapso entre 2025 e 2030. “É o que estamos presenciando hoje. A Rodovia Bandeirantes tem cinco faixas de cada lado, todas ficam paradas. E uma das coisas que o estudo apontava era a necessidade de retomar o transporte de passageiros e de cargas pelo modal ferroviário”, detalha. Para ele, embora com bastante atraso, o TIC vai nessa direção, com impactos positivos sobre a qualidade de vida e a economia.
Coluccini atesta que haverá ganhos à economia local, uma vez que deve incrementar também o turismo entre os municípios. Tudo isso resultará, garante, na revitalização da área central de Campinas, onde se situa a antiga estação ferroviária (hoje estação cultural), que será o destino do TIC. Com a chegada do trem, segundo o secretário, haverá outros usos no entorno. Ele informa que já há planejamento e projetos para implantação de um parque público ambiental que “funcionará como indutor dessa revitalização”, um hub de inovação e uma área habitacional que incluirá prédio do programa federal “Minha Casa Minha Vida”. “A ideia é que tudo isso fique pronto até 2030-2031, juntamente com a entrada em operação do TIC”, prevê. A Prefeitura Municipal de São Paulo também foi procurada pela reportagem para que apresentasse os impactos à Capital com o Trem Intercidades, contudo, sua assessoria sugeriu que se buscasse o Governo do Estado.
Poderia ser melhor
A macrometrópole, como lembra o presidente da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP), Ailton Brasiliense, concentra 2/3 da população do Estado e é responsável por 2/3 de seu Produto Interno Bruto (PIB). Ante o desmonte do sistema ferroviário no País, ele é categórico: “Estamos muito atrasados, é um projeto tardio, mas necessário e equilibrado. Optou-se por atender a malha que já existia com esses traçados. Espero que seja a primeira iniciativa, dê certo e sirva de referência para outras.” É a promessa do Governo do Estado, que afirma estar trabalhando num projeto de interligação, por linha férrea, entre grandes cidades no Estado. “Além do TIC para Campinas, já foi qualificado o projeto do TIC para Sorocaba e existe a proposta para ligação a São José dos Campos e Baixada Santista.”
Não obstante, a proposta anterior para o Trem Intercidades São Paulo-Campinas, pontua Emiliano Affonso, era que este alcançasse perto de 200km/h, seguisse até Viracopos e o percurso fosse feito em 40 minutos. Também haveria vias separadas para cargas e passageiros. Além de não se estender até o aeroporto, o diretor do SEESP observa que “o leilão atual prevê vias compartilhadas em alguns pontos, o que aumenta os riscos, além de velocidade máxima de 140km/h e trajeto em 64 minutos. É ruim? Não. Mas poderia ser melhor com a tecnologia que temos hoje”.
Vice-presidente da Associação dos Engenheiros de Metrô de São Paulo (Aeamesp), Ayrton Camargo e Silva ratifica: “Estudei esse projeto de ligação ferroviária São Paulo-Campinas quando era diretor de planejamento da Emdec [Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas]. Na época [entre 2001 e 2004] era o Expresso Bandeirantes, diretamente para Viracopos. Defendemos articulação macrometropolitana.” Além da extensão até o aeroporto, o que os especialistas defendem que deveria estar no escopo agora, o projeto inaugural abrangeria, de acordo com seu relato, trem metropolitano e um novo terminal no terreno do pátio ferroviário.
O local se tornou uma espécie de camelódromo ou shopping popular, recebendo a alcunha atual de estação cultural. “Quando o projeto do TIC voltou à pauta do governo estadual, decidiu-se pela reativação da estação ferroviária abandonada no pátio [da ex-Fepasa], que conta 300 mil metros quadrados de área e hoje está em operação parcial pela Rumo [para transporte de cargas].”
A despeito de considerar o TIC “superimportante”, por melhorar a mobilidade, segurança no trajeto e garantir previsibilidade, ele critica o fato de estar incluído no projeto prolongamento futuro da Linha 7 até Campinas. Segundo destaca, embora com menos conforto e maior tempo de viagem, algo como duas horas, a passagem será mais barata. “Seriam dois sistemas concorrentes.”
Na sua concepção, ao invés disso, seria prioritário estender o Trem Intermetropolitano até Sumaré ou Americana. Conforme ele, Campinas é origem ou destino de 80% de todas as viagens feitas diariamente na região, “exclusivamente pelo modo rodoviário, resultando em congestionamentos e desperdício de combustível”. O TIM, frisa, “resolveria esse gargalo”. Outra ponderação feita por Camargo é quanto à ausência de se pensar uma macropolítica de desenvolvimento regional, com uma visão integrada entre as cidades.
Sem alta velocidade
O consultor de transporte público Peter Alouche é bem mais crítico ao projeto: “Teria que ser alta velocidade. Se fizesse São Paulo-Campinas em 15 minutos seria um sucesso. É um trem retrógrado, com tecnologia dos anos 1960 e 1970, lento e que atravessa zonas verdes.” Ele lembra que hoje há no mundo Trens de Alta Velocidade (TAVs) por exemplo entre cidades da França, à velocidade média de 400km/h, assim como em países como Japão e China.
Na sua análise, na retomada das ferrovias, o Brasil deveria investir na “modernidade”, fazendo um TAV entre São Paulo e Rio de Janeiro, que poderia ter uma parada por exemplo em São José dos Campos.
Esta é também a visão do diretor do SEESP Nestor Tupinambá, para quem "fazer uma obra dessas, para as principais cidades paulistas, com trens a 140km/h, é desperdício". Ele explica: "No mundo, Europa, Japão e China andam a 300 ou 400km/h nos de longo curso. Em Xangai os 30km até o aeroporto são percorridos por um trem de levitação magnética que faz 430km/h. Andei nele em 2009. Essas vias podem ser levadas ao oeste do Pais, ao Sul e ao Nordeste. O Brasil tem dimensão continental, e trens de alta velocidade são desejáveis."
Camargo pondera: “Na Companhia Paulista de Estradas de Ferro [que funcionou de 1868 a 1971], a velocidade média era de 120km/h. Estamos voltando aos anos 1950, o que é ótimo, porque hoje estamos na idade das cavernas, dos congestionamentos.”
Imagem no destaque: Antiga estação ferroviária de Campinas. Foto: Arquivo Prefeitura de Campinas