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Como garantir direitos no novo mundo do trabalho

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Rita Casaro 

 

IvaniBramanteDesembargadora Ivani Bramante: “Por que se submeter à Uber se nós podemos ter uma intermediação feita pelo sindicato, no Brasil?”. Foto: Acervo pessoalUm cenário de crescente precarização dos contratos laborais, transformações radicais devido ao avanço das tecnologias de informação e comunicação e crise da representação coletiva causada, entre outros motivos, pela pulverização da mão de obra e teletrabalho. Esse é o panorama no qual Ivani Contini Bramante, desembargadora no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região de São Paulo, propõe o debate sobre como assegurar proteção social e fortalecer o sindicalismo.

 

Para a magistrada, que é doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especialista em Relações Coletivas Comparadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pós-doutora pela Universidade Castilla de la Mancha, é preciso repensar o modelo e estender aparatos como Previdência Social e fundo de garantia a todos os trabalhadores, independentemente da forma de atuação. “Está na hora de revisar tudo, de generalizar a proteção, parar de compartimentar. Todo mundo agora teria direito a uma pauta mínima constitucional. No frigir dos ovos, é todo mundo igual; alguém está explorando essa mão de obra e tendo uma plusvalía desse trabalho humano”, argumenta.

 

Atuando também como professora titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e docente convidada da Universidade de Coimbra, Bramante chama a atenção para a urgência na “reinvenção” das entidades que representam os trabalhadores. Estas, na sua visão, deveriam inclusive atuar como agentes das novas formas laborais. Ela questiona: Por que se submeter a uma plataforma digital estrangeira “se nós podemos ter uma intermediação feita pelo sindicato, no Brasil”?

 

Na sua avaliação, nesse novo mundo do trabalho, atuações como a do SEESP – que representa o conjunto dos engenheiros, de todos os segmentos econômicos, servidores, empregados com vínculo formal ou autônomos – devem ser tornar a tônica dominante, o que coloca a entidade na vanguarda. Outros passos à frente já dados pelo sindicato são a manutenção de uma área de Oportunidades, que busca fazer a ponte entre o profissional e o mercado, e o Núcleo Jovem, que estende os serviços a estudantes. 

 

Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela fala ainda sobre a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que “continua viva”, e a importância da Justiça do Trabalho, alvo frequente de ataques. Destaca a importância do “capitalismo consciente” e da agenda envolvendo compromissos com questões ambientais, sociais e de governança (ESG). Confira a seguir e no vídeo ao final.

 

Como a senhora vê o mundo do trabalho hoje, frente a tantas mudanças causadas pelas tecnologias de informação e comunicação e pela precarização associada à flexibilização da legislação e às novas formas laborais?

Originariamente, o trabalho não era regulado, vigorava a lei do mais forte. O Estado interferiu para regulamentar e assegurar um patamar mínimo de dignidade, secundado pelas mãos do sindicalismo, aparatando esses trabalhadores para uma melhoria da condição social. Mas nós tínhamos uma relação de trabalho em que todos se agrupavam na mesma empresa, sob os olhos do patrão; o sindicato atuando da porta para fora, mas com os dirigentes dentro da empresa, nas comissões de fábrica. As novas tecnologias quebram essa harmonia em que foram arquitetadas as premissas de proteção. Nós começamos com a flexibilização, as terceirizações. As empresas passam a descentralizar seu processo produtivo e o transferem para empresas menores ou autônomos, o que nós chamamos pejotização. Essas questões se agravam ainda mais [com] precarização do trabalho de um lado e modernização da produtividade de outro. As novas tecnologias passam a substituir o homem. Cem homens fabricavam 100 carros; agora, uma máquina produz 100 mil carros. E essas pessoas ficam no desemprego estrutural. Não há políticas adequadas de qualificação, requalificação, reinserção no mercado de trabalho. Nós praticamente não precisamos mais de mão de obra, tudo é feito por robôs e computadores e, quando é necessária, essa mão de obra não precisa estar no local onde os resultados são esperados, é o teletrabalho. Abre-se um fosso muito grande entre o trabalhador informal, que não tem escolaridade, [que executa] serviços manuais, e aqueles que oferecem os trabalhos intelectuais. Antes, nós tínhamos uma seara mediana, [mas] essa camada do meio está desaparecendo. A tecnologia substitui o homem, joga-o na informalidade e na desqualificação profissional. Há empregados com salários altos, porque entendem das novas tecnologias e [as] alimentam, e aqueles braçais que estão [excluídos]. Não há inclusão social, tecnológica ou digital. Muitas pessoas sequer têm computador, e o único meio digital é o celular, que se popularizou. Mas computador mesmo para trabalhar, impressoras e tudo mais, é difícil quem tenha e,  quando tem, não é de qualidade. No Brasil, nós também não temos qualidade na internet. Nós pagamos por 500Mb, recebemos 100, 150, e fica tudo por isso mesmo.

 

Apesar dos avanços tecnológicos, o que se tem é um cenário de piora das condições de vida dos trabalhadores, portanto?
Nós temos todas essas dificuldades hoje e realmente estamos vivenciando uma crise. Nós tínhamos um professor de Direito do Trabalho, que já faleceu, que todos conhecem, que é o professor Amaury Mascaro Nascimento. Ele dizia que a crise acontece quando o novo já nasceu e o velho ainda não morreu. Então, nós temos as formas de trabalho antigas (no local, subordinado, em tempo integral, recebendo salário mensal), que estão querendo sobreviver, e as novas tecnologias, que colocam todo mundo para trabalhar em casa, para quem quiser, na hora que quiser e só recebe pelo tempo trabalhado. E não tem mais aquele aparato das horas em que não se está à disposição do empregador: lazer, férias, descanso, nem as remunerações compatíveis. A jornada de trabalho hoje é excessiva, mas cada um é autônomo. Trabalhamos muitas horas excessivas sem receber hora extra e sem praticar ou ter direito à tal da desconexão. Então, essa é a sociedade do futuro, a que nós escolhemos, para a qual estamos nos encaminhando e sem limitações. Eu não vi nenhum movimento de sindicatos barrando a introdução das novas tecnologias ou exigindo que a plusvalía reverta em prol da sociedade. O governo continua taxando a folha de salário e dando isenção aos insumos das novas tecnologias, quando nós devemos taxar as empresas altamente tecnológicas, porque elas têm uma plusvalía em cima disso e uma produtividade exacerbada sem usar a mão de obra humana. Nós estamos caminhando no sentido inverso daquilo que seria o protetivo social, não é isso? Quantas pessoas hoje estão na informalidade, não recolhem para a Previdência?

 

O que fazer diante disso?

Nós deveríamos ter essas empresas altamente tecnologizadas tirando uma parte para destinar, por exemplo, à Previdência Social, a um fundo de garantia para o trabalhador em geral, autônomos, avulsos, eventuais, intermitentes. Está na hora de revisar tudo, de generalizar a proteção, parar de compartimentar. Todo mundo agora teria direito a uma pauta mínima constitucional. É assim que eu enxergo o futuro do Direito do Trabalho. No frigir dos ovos, é todo mundo igual, alguém está explorando essa mão de obra e tendo uma plusvalía desse trabalho humano. Então, deveríamos equiparar todos, sem fazer distinção nenhuma, de regimes diferenciados.

 

Como fica a representação sindical nesse cenário?
O sindicato precisa despertar para ampliar a representatividade. Por exemplo, hoje nós temos várias áreas sem representatividade, como as de plataformas digitais, quando os sindicatos poderiam ter a sua própria plataforma para impedir que os nossos trabalhadores fossem arregimentados pelas do exterior. Por que se submeter à Uber, que é uma empresa estrangeira, se nós podemos ter uma intermediação feita pelo sindicato, no Brasil? Nós precisamos achar novas soluções e atuações para os sindicatos. Ofertar uma carteira de empregos, por exemplo, servir como um tipo de agência de emprego, intermediário entre o cliente e quem presta serviços. Nós temos que mudar a visão do sindicato, mudar a atuação sindical e ampliar.

 

Se o novo já nasceu e o velho ainda não morreu, como se reinventar, mas também seguir na representação de quem está nas empresas no sistema tradicional, diante dos tantos desafios, especialmente após a reforma trabalhista de 2017, que comprometeu seriamente o custeio das entidades?

O sindicato precisa prestar serviço e [para isso] precisa de dinheiro. Mas antes ele precisa mostrar esse serviço para captar os seus associados. O sindicato representa sócio e não sócio, mas ele tem que ofertar mais serviços para o sócio, para ter um atrativo. Outra coisa muito interessante é que o teletrabalho causa uma implosão, retira o representado sindical da base. Eu tenho hoje engenheiros teletrabalhadores que estão morando em Portugal, na França, em outros lugares do Brasil e prestando serviço para várias empresas espalhadas pelo País. O sindicato nem sabe como arregimentar e trazê-los para dentro da sua base. Então, implode a base territorial e o coletivismo [em que] nós reunimos todas as pessoas no mesmo local e existe uma consciência de classe. Quando eles estão pulverizados, não tem como arregimentar esse pessoal; são subterrâneos, não sei quem são e onde estão, principalmente se forem autônomos. É necessário ter um novo modo de controle de quem são esses trabalhadores e arregimentá-los pela profissão. O Sindicato dos Engenheiros já tem um pé na frente, porque já representa por profissão, [que é regulamentada e] tem um cadastro no conselho de classe. Cada categoria vai ter que se ajeitar, mas o principal ponto é buscar associados mostrando que tem atrativos de serviço na era moderna, para a era moderna, junto com essa questão das novas tecnologias.

 

Nesse contexto, qual o papel da Justiça do Trabalho?
A velha senhora CLT continua viva, e tantas foram as reformas que ela agora é atualizada. Claro, precisamos de novas atualizações para enfrentar o momento atual. A CLT tem mesmo que acompanhar a evolução política, social, econômica, cultural e tecnológica. É necessário uma lei que venha regulamentar o trabalho nas plataformas digitais, assim como o teletrabalhador transnacional. Eu não tenho como dar ordens pela CLT para um trabalhador que está em Portugal, embora brasileiro, com uma tomadora de serviço da China. Às vezes, o nosso trabalhador está sendo contratado por uma empresa estrangeira e trabalhando online. Como operacionalizar tudo isso, [se] a Justiça do Trabalho tem uma jurisdição presa ao território nacional? Nós vamos ter dificuldade no futuro; talvez tenhamos que ter uma ordem global.

 

Frequentemente se ouve a discussão sobre o fim da Justiça do Trabalho...
JE578 EntrevistaDestaques 03
A Justiça do Trabalho já sofreu várias e várias investidas. Todas as vezes, ela ressurge das cinzas, igual a Fênix. E, às vezes, mais fortalecida. Então, vamos aguardar a cena dos próximos capítulos. Uma coisa é certa: a sociedade se auto-organiza em torno do capital e do trabalho. Se não tiver trabalho, não movimenta o capital. Quem consome é o trabalhador. É pelo consumo que nós criamos as necessidades, e daí vem a produtividade. Ninguém acordou para isso ainda, que sem trabalho não tem capital? Não adianta colocar 100 homens na rua, no desemprego, e colocar um robô que faz 100 mil carros. Quem é que vai comprar esses 100 mil carros, se o indivíduo não tem o salário? A relação trabalho-capital é cíclica. Ora, o capital está em alta e explora demasiadamente o trabalho, mas quando começa a ver que pode implodir, volta atrás e faz concessão. Quando eleva um pouco o trabalho e acha que está fazendo concessões em demasia, volta e retira as concessões. Isso sempre aconteceu, desde a Revolução Industrial. Tivemos o trabalho em baixa com a Revolução Industrial, o Estado entrou, regulou, aí tivemos a harmonia, depois desregulou de novo, porque nós tivemos várias revoluções tecnológicas. E nós só estamos passando por mais um momento. Chega uma hora em que vai equalizar novamente essa relação. Sem harmonia, não há Estado democrático de direito, não há nem sequer conformação em Estado capitalista produtivo. Se nós queremos continuar sendo um Estado democrático de direito e capitalista produtivo, o capital necessariamente haverá que fazer concessões ao trabalho, sem o qual ele não sobrevive. Essa é a lógica. E essa lógica acompanha toda a humanidade. A não ser que nós voltemos à estaca zero do trabalho escravo.

 

Ou seja, é preciso construir sociedades mais justas.
É isso, capitalismo consciente. Esse é o slogan que o sindicato tem que pregar, dar um selo social às empresas que cumprem as normas coletivas, a ordem jurídica, que têm compliance. Existe a ESG, essa sigla inglesa que significa desenvolvimento sustentável, ambiental e social, que está ligada à Agenda 2030 da ONU. Agora, na Europa, eles incluíram mais uma letra, que é a “I”. Então, agora é ESG+I, que significa que capitalismo consciente é aquele que cumpre todas as normas, [mas] não basta, tem que realmente mostrar que a empresa faz a diferença na sociedade, no planeta, que causa impacto positivo. Então, por exemplo, entre duas empresas que produzem, se uma delas já está usando energia solar, esta está causando impacto. Quando a empresa contrata uma [pessoa com] deficiência, fiscaliza a não discriminação, a proteção da mulher destacadamente, está causando impacto positivo na sociedade e no planeta. E isso é um capitalismo consciente. Isso tudo agora é uma nova lição que o sindicato deve abraçar, na minha concepção modesta. É preciso começar a trabalhar a Agenda 2030 da ONU, as convenções internacionais da OIT, o cumprimento das decisões da Corte Interamericana, que crucificaram o Brasil várias vezes por conta de trabalho escravo, e cuidar dessa questão da violência no ambiente de trabalho, a discriminação, o assédio moral e sexual, [manter] o patamar mínimo de dignidade. E defender com unhas e dentes essa última bandeira nossa, que é a Constituição Federal.

 

Assista à íntegra da entrevista

 

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