Soraya Misleh
O sistema metroferroviário paulista enfrenta um processo de desmonte que não é de hoje, mas tem se agravado. A expressão mais acabada é a diminuição do quadro de pessoal e ameaça de privatização das linhas públicas restantes, o que impacta o desenho urbano e a qualidade de vida na Capital. Esta é a avaliação geral de especialistas ouvidos pelo Jornal do Engenheiro.
anunciou uma série de concessões no sistema, entre as quais leilão da Linha 1 – Azul no ano de 2025, e intenção de avançar nesse modelo também para as demais ainda sob operação do Metrô-SP (2 – Verde, 3 – Vermelha e 15 – Prata/monotrilho).
O governador do Estado, Tarcísio de Freitas,
Adotado a partir do final dos anos 2000, o modelo denominado Parceria Público-Privada (PPP) foi inaugurado com as Linha 4 – Amarela e 5 – Lilás, em concessões conjuntas com uma série de linhas ferroviárias da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e a Linha 17 – Ouro (monotrilho). A Linha 6 – Laranja, em construção desde 2013 e com promessa de início de operação em 2026, é a primeira concessão desde a construção.
Ao todo, conforme informação no site da companhia, São Paulo conta seis linhas que perfazem 104,4km de extensão e 91 estações, “por onde passam 5 milhões de passageiros diariamente”.
A pesquisa “O melhor de São Paulo”, realizada pelo Datafolha, elegeu o metrô como o melhor serviço público da cidade em 2023, o que é colocado em xeque com a pretensão de ampliar as privatizações.“Em meio às difíceis condições de mobilidade cotidiana que as pessoas enfrentam em São Paulo, ainda assim, o metrô é avaliado pelos passageiros como o melhor sistema de transporte. No entanto, ao longo das últimas duas décadas vem se acentuando sua degradação, em função da diminuição dos investimentos por parte do Governo do Estado de São Paulo, em particular, com a redução do quadro de funcionários, o que vem precarizando o serviço prestado à sociedade paulistana. Para muitos pesquisadores da área, trata-se de uma estratégia de sucateamento do sistema de modo a ideologicamente justificar a concessão desse serviço público às empresas privadas”, observa o geógrafo Ricardo Barbosa da Silva, coordenador do grupo Rede Mobilidade Periferias e professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus zona leste.
Perda de conhecimento técnico
Segundo o diretor do SEESP e engenheiro do Metrô-SP por 47 anos, Nestor Tupinambá, nos últimos quatro anos saíram cerca de 2.500 empregados da companhia, sem que houvesse reposição dessa mão de obra. “Falta gente nas oficinas, nas plataformas, na segurança etc..” Para ele, trata-se de um “sucateamento planejado”. Esse volume, diz, iniciou-se com Planos de Demissão Incentivada (PDIs) e se seguiu com dispensas indiscriminadas. De acordo com sua estimativa, na última década, o quadro de pessoal contava por volta de 8 mil funcionários e foi reduzido em cerca de 30% no período.
Conforme Tupinambá, diante da complexidade e sofisticação das técnicas utilizadas, demoram-se muitos anos para qualificar o engenheiro para aplicá-las com eficiência. “Esse saber, difícil de se encontrar no mercado, está se desfazendo. A empresa perde seu cérebro.” Ele adverte que com as privatizações “ficaremos à mercê de empresas, muitas estrangeiras, que tentarão, desde o projeto, vender equipamentos de seus países e/ou de empresas coligadas. Não teremos capacidade de decisão, a reboque de seus interesses, que raramente coincidirão com os da nossa sociedade”.
Especialista na área de transporte, a engenheira Ana Odila de Paiva Souza corrobora que tem-se perda da herança de conhecimento técnico. Consultor no setor e seu colega de profissão, Peter Alouche estava na equipe que construiu essa história e não deixa margens quanto ao know how acumulado, agora ameaçado: “O Metrô-SP tem 50 anos de vida. O estudo de implantação da rede foi muito bem feito. À época éramos uma equipe pequena. Todos os equipamentos instalados eram o que havia de mais avançado no mundo e fizemos nossa própria especificação, um processo altamente tecnológico. O objetivo era operar com absoluta confiabilidade, conforto e segurança ao usuário. Era uma equipe muito coesa.” Esse percurso começou a ser desviado dos trilhos nos anos 2000: “Veio a Linha 4, quisemos fazer o que havia de muito mais avançado, totalmente automatizada. Aí decidiu-se que ia ser privatizada, foi catastrófico.”
Para Souza, o principal prejuízo é a quebra do conceito de rede. Segundo atesta Alouche, a concessão trouxe prejuízos não só à operação e manutenção integradas, como acabou por resultar na divisão da equipe. Parte viria a ser contratada pela concessionária, fragmentando a categoria dos metroviários, o que, na sua opinião, deu início a uma “degradação psicológica” do quadro de pessoal. Diretor do SEESP e especialista em mobilidade, Emiliano Stanislau Affonso Neto endossa: “Quando cheguei no Metrô em 1983 o que me chamou a atenção era que a companhia não admitia ‘caixas pretas’: quando um sistema era inserido na operação, exigia cópia de todos os programas fonte.” O índice de eficiência, de acordo com ele, era resultado do grande conhecimento do corpo técnico, transformando o Metrô em referência nacional e internacional.
Todavia, como reitera Souza, essa “cultura metroviária" vem se perdendo, assim como o conhecimento que deveria ser transmitido para novas gerações e passado para outros modos de transporte. “Com a ideia do governo de privatizar todas as linhas, há muito tempo não se renova o quadro”, ratifica. Para Alouche, a alternativa para reverter esse processo de degradação seria criar uma agência pública independente regulatória do sistema de transporte, com poder de ação e decisão, treinamento de pessoal e capacidade financeira para orientar os investimentos em melhorias.
Caso nada seja feito, a engenheira lamenta: “Isso vai desorganizar o sistema. Sempre dizia que o objetivo era que o sistema de ônibus alcançasse o nível do que é o metroviário, agora pode chegar, mas pelo rebaixamento deste.” E acrescenta: “Não consigo imaginar São Paulo sem o sistema de metrô conforme o que se conhece hoje; sua importância é fundamental para a organização da cidade.”
Requalificação urbana
Desde seus primórdios, o metrô paulistano tinha por conceito características urbanas, com estações mais próximas umas das outras e um intervalo entre trens de 90 segundos. É o que descreve o superintendente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP), Luiz Carlos Mantovani Néspoli, conhecido como Branco, para quem, em comparação com os sistemas de trens suburbanos, essas características implicariam melhorias tanto para os passageiros quanto para a cidade. “Embora também constituído de via própria, não haveria passagens de nível (cruzamentos com o sistema viário), ao contrário das ferrovias, permitindo um melhor controle do tráfego dos trens, confiabilidade nos tempos de viagem, inimaginável pela população da época. Características muito mais favoráveis se comparado com o modo de operação dos ônibus. Da mesma maneira, para o meio urbano, a entrada do metrô não causaria divisão da cidade (seria preponderantemente em subterrâneo ou elevado), e as estações seriam concebidas para também requalificar o espaço urbano, como de fato o foram.”
De acordo com Alouche, o metrô “rejuvenesceu a Capital, impactando-a positivamente”. A inauguração da Linha 1, a primeira do Brasil, em 1974, impulsionou, como assegura, o crescimento da cidade. Na sua avaliação, a degradação do sistema compromete essa trajetória, agravando muito o problema de mobilidade por ausência de integração dos diversos modos de transporte.
Barbosa lembra que em importantes grandes cidades no mundo o metrô é um serviço público essencial, administrado pelo governo. “É por meio dos transportes que as pessoas têm o direito de acessar os demais serviços e oportunidades em uma metrópole como São Paulo. Já a iniciativa privada, por sua natureza – e sem juízo de valor de minha parte –, visa transformar o transporte em uma mercadoria como fonte de lucro.”
Ele complementa: “Isso não quer dizer que o sistema estatal de metrô não tenha problemas. Há uma lentidão histórica no crescimento de sua rede que, inclusive, vem ocorrendo de maneira desigual no território paulistano. No entanto, ao invés de o Estado assumir a sua incompetência de expandir o sistema, repassa essa responsabilidade às empresas.” É nesse cenário, como relata, que ganham força as chamadas parcerias público-privadas, pontuando: “Porém, ao que parece, a iniciativa privada não quer parcerias e, sim, privilégios. Esses termos precisam ficar nítidos para a sociedade. Pois vendem a ideia de que a iniciativa irá construir as próximas linhas, mas será para valer isso?”
Como resposta, o coordenador do grupo Rede Mobilidade Periferias traz o exemplo das linhas concedidas. Conforme descreve, o Estado arcou com a maior parte dos recursos da construção da Linha 4 – Amarela e, ainda, garante em contrato uma remuneração sem riscos à concessionária. “Talvez as pessoas não saibam, mas aumentando ou não a tarifa de transportes, anualmente a empresa recebe reajuste do Governo de São Paulo. Não por acaso, as linhas estatais que carregam mais passageiros são as que recebem a menor remuneração do Estado. Então, todo argumento daqueles que defendem a privatização porque o Estado não tem como arcar com os custos da expansão, no mínimo, não se sustenta ao choque da realidade.”
Modelo insustentável
Ele vaticina: “Do jeito que se apresentam essas propostas de concessão creio que seja um modelo insustentável para o futuro, e a sociedade inteira poderá pagar conta muito cara.” Na sua concepção, não obstante, falta uma participação social mais efetiva para deixar nítida a proposta de concessão do Metrô. “Nesse quesito, o que já não era bom, com a concessão, parece ficar mais distante ainda”, lamenta.
Para ilustrar, Barbosa menciona “a falta de diálogo da empresa com os moradores e sociedade civil organizada do bairro do Bixiga na construção da Linha 6 – Laranja: “Se não fosse a organização e luta destes, estariam em risco os achados arqueológicos do Quilombo Saracura. É um tratamento completamente diferenciado em relação aos moradores do bairro de alto padrão de Higienópolis, que inclusive conseguiram mudar a localização original da estação.” Sem diálogo e transparência necessárias, como destaca, será a população pobre e periférica, que mais depende do transporte coletivo de alta capacidade, que mais sofrerá com a concessão do metrô à iniciativa privada. “Isso porque, se o objetivo for tornar meramente uma operação lucrativa, vai gerar muito possivelmente demissões de funcionários, diminuição da manutenção dos serviços, lotação de passageiros e aumento das falhas no sistema”.
Ele acredita que, “no fundo, a população tem essa noção, porque já sofre com a concessão de alguns serviços essenciais, onde as empresas cobram um alto preço e não trazem em contrapartida um retorno à altura. É só ver os exemplos das tarifas de energia e, mesmo, as constantes falhas de linhas do metrô e da CPTM concedidas à iniciativa privada. É fundamental uma abertura ao diálogo democrático, de modo que as pessoas possam se conscientizar sobre o modelo proposto, considerando que uma decisão dessa natureza vai impactar tanta gente e por um bom tempo”.
Tupinambá considera que a Capital, assim como a Região Metropolitana, precisa urgentemente de mais transporte sobre trilhos. “Mas a transferência de controle a diversas empresas gera uma ‘torre de Babel’. É triste ver ignorados 50 anos de quebrar a cabeça em que chegamos a soluções próprias, inéditas, para uma megalópole como São Paulo.” Conforme ele, a mobilização da população seria a única possibilidade de defesa do metrô público, o que demandaria ter consciência dos fatos e dados da realidade. Caso contrário, “caminhamos para o cadafalso cegamente”.
Recolocar nos trilhos
Na avaliação de Barbosa, neste momento, ao invés da privatização, a sociedade poderia estar debatendo a melhoria desse serviço público, “inclusive entendendo melhor a necessidade de estabelecimento de um Sistema Único de Mobilidade, efetivamente público e acessível” a toda a população, “fazendo valer o artigo 6º da Constituição Federal, que trata o transporte como um dos direitos sociais”. Portanto, salienta: “É fundamental pensar um planejamento de mobilidade mais aberto e democrático à população, como forma de propor melhores formas de integração do metrô com outros sistemas de transporte motorizados, com as bicicletas, com os pedestres, tornando mais acessível, justa e democrática a vida em São Paulo”.
Segundo frisa Affonso Neto, em cidades grandes como São Paulo a boa mobilidade é imprescindível, o que depende de sistema estruturante de alta capacidade integrado aos de média – Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs) e ônibus – e interligado ao transporte individual, em que trechos de até 3km de distância poderiam ser feitos por bicicleta, meio não poluente.
Na sua concepção, o que deveria se buscar é a construção de novas centralidades na Capital, reduzindo deslocamentos e a distância entre trabalho-moradia-lazer. A esse redesenho urbano, o metrô tem papel fundamental. “No início as estações eram locais para receber passageiros, daí a preocupação em se integrar o metrô com o sistema de ônibus. Se olhar o que está acontecendo no mundo, estas avançaram para embriões de novas centralidades, trazendo comércio, escolas, postos de saúde e novas residências para seu entorno.”
Ele finaliza citando o resultado de estudo americano que mostra que “a cada bilhão de dólar investido no transporte público voltam de cinco a seis para a economia”, ou seja, impacta-se diretamente o crescimento local. “Um sistema bom de mobilidade vai diminuir a poluição, contribuindo para conter os efeitos do aquecimento global, e garantir melhor qualidade de vida na cidade”, conclui.
Foto no destaque: Linha 1 – Azul do Metrô-SP. Crédito: FlyBlue/Wikiwand