Rita Casaro
Até o final de novembro deve ser colocado sob consulta pública o Plano Estadual de Energia 2050, iniciativa do Governo do Estado de São Paulo a cargo da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil). Também chamado de “Race to zero”, o projeto tem o objetivo de propor medidas que efetivamente reduzam as emissões de gases de efeito estufa no território paulista, contribuindo com a meta global de evitar o aquecimento do planeta além de 1,5°C acima da temperatura média da época pré-industrial.
“É um projeto bastante estratégico porque é um suporte para a atuação na área de energia, perseguindo a meta da pegada de carbono tão próxima de zero quanto possível; busca definir as políticas públicas para impulsionar a ação dos agentes econômicos rumo ao atendimento das diretrizes e metas. É importante frisar que esse é um plano de Estado, não de governo”, destaca Dorel Soares Ramos, coordenador da equipe executora do trabalho pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP).
Professor do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétrica da instituição, além de sócio da MRTS Consultoria e Engenharia Ltda., ele está à frente da missão, que atualmente encontra-se em sua segunda fase, de modelação quantitativa. Ramos relata que, nesta etapa, estão sendo feitas simulações para averiguar as demandas no setor elétrico, em transportes e de energia térmica e possibilidades de oferta menos poluentes, além do desenho de cenários econômicos.
Trabalhando com cinco eixos estruturantes – socioambiental, tecnológico, infraestrutura, mercado e regulatório –, o PE 2050 é guiado ainda pelos chamados quatro Ds: descarbonização, digitalização, descentralização e diversificação. Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Ramos detalha o esforço que que vem sendo empreendido. Entre outros aspectos, ele enfatiza as oportunidades que a busca por sustentabilidade deve representar à engenharia nacional e aos seus profissionais. Confira os principais trechos a seguir e a íntegra no vídeo ao final.
O que é o Plano Estadual de Energia 2050 e o que motivou a sua elaboração?
Ele tem um codinome, que é o “Race to zero”, que se abrevia PE2050RTZ. Nasceu pela necessidade de o próprio Governo do Estado, não o atual, mas o anterior, fazer uma revisão do último plano de longo prazo, elaborado e trazido a público em 2012. [Esse] tinha como horizonte 2020 que, a essa altura, já é passado. Então, já estava com a validade vencida e tinha sido feito num momento em que questões climáticas, sustentabilidade, transição energética, nada disso estava na pauta. Teve seu valor evidentemente, norteou as ações durante algum tempo, mas não olhava, por exemplo, a redução da pegada de carbono, que é o mote principal do PE2050. Daí, surgiu a necessidade de se pensar numa revisão. O que de fato acelerou o processo foi a intensificação das mudanças climáticas, cada vez mais agressivas, e a conscientização de que nós devemos caminhar num processo de transição energética, buscando um futuro que acomode esses impactos que nós estamos sentindo. Dentro desse contexto, nasce uma campanha global chamada “Race to zero” e também “Race to resilience”. Ou seja, a gente vai buscar o zero na pegada de carbono lá em 2050, que é um horizonte global, e fazer um sistema como um todo que seja resistente a grandes impactos. Então, o plano tem como principal objetivo [essa campanha] à qual São Paulo aderiu em 2021. Em junho de 2022, iniciaram-se efetivamente os trabalhos. É um projeto bastante estratégico para o Estado porque é um suporte para a atuação na área de energia, perseguindo a meta da pegada de carbono tão próxima de zero quanto possível. O projeto busca definir as políticas públicas para impulsionar a ação dos agentes econômicos, que são os que fazem as coisas acontecerem, rumo ao atendimento das diretrizes e metas do plano. É importante frisar que esse é um plano de Estado, não de governo. Obviamente, cada governo que assuma [fará] o que entender para as atualizações que forem pertinentes. Mas são ajustes, o importante é não perder de vista o plano como um todo, [que] é técnico e está associado a um acordo global.
Como vem sendo desenvolvido?
Está sendo desenvolvido em duas fases. Ele teve uma primeira qualitativa, de julho até meados de novembro [de 2022]. Em dezembro, começamos a segunda fase, que tem uma substância mais quantitativa. A gente está revisitando as premissas e partindo para modelos matemáticos de simulação para que tenha substância quantitativa que possa permitir ajustes. Por enquanto, não apareceu nenhuma mudança radical em relação à nossa análise qualitativa, mas [está sendo feito] aquele ajuste fino. Desde a fase inicial até agora, a gente teve quatro importantes blocos de atividade. O primeiro foi um grupo que desenvolveu o diagnóstico. Um outro grupo criou uma visão de futuro consistente com os objetivos do plano. O terceiro bloco é de prospecção, [a identificação] das trajetórias mais adequadas para se sair do ponto que foi diagnosticado como inicial e chegar àquele da visão do futuro desejada. E, finalmente, existe o outro bloco, que se chama “posicionamento”: a partir disso, quais são as políticas públicas e macroações que o Estado deve adotar. É uma equipe que participa do projeto estratégico para dar suporte; a decisão, obviamente, é uma prerrogativa do Estado.
Quais os caminhos propostos para atingir a meta desejada?
Para chegar à pegada zero, preciso ver quanto é que eu vou estar consumindo na indústria, em transporte, nos vários setores, para poder diagnosticar os remédios. Foi feito um estudo específico por uma empresa especializada, a LCA Consultores, também com suporte da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e foram gerados cenários econômicos compatíveis com o que a gente enxerga mais de perto, até 2030, mas fazendo uma evolução consistente até 2050. A partir disso, a gente faz a modelagem e procura ver a demanda do setor elétrico, de transportes e da energia térmica. E faz a sinalização da oferta, [verificando] que alternativas nós temos para fazer o atendimento, sempre caminhando na direção de minimizar as emissões. [E há] um balanço de emissões, [sob responsabilidade de] outro grupo de trabalho, [composto por] pessoas especializadas. O grupo técnico faz as simulações, recomenda um determinado caminho; o de balanço [checa] como ficam as emissões. A partir daí se fazem as estratégias de mitigação dos gases de efeito estufa.
Em que etapa está o trabalho atualmente?
Nós tivemos já três workshops de divulgação do projeto e haverá o quarto para coletar as primeiras impressões dos agentes, [de organizações] como o Sindicato dos Engenheiros, que têm formadores de opinião. Depois disso, vamos preparar a primeira versão do plano, que vai ser colocado em consulta pública no final de novembro para, durante dezembro e talvez alguns dias de janeiro, os agentes fazerem as suas contribuições que, depois, serão todas devidamente analisadas. É bem provável que um verde radical vá dizer que só tem que ter verde daqui para a frente; o outro vai dizer que o gás é o combustível da transição e tem que usar até 2050; as grandes petrolíferas estão sem abrir mão do combustível fóssil, tentando esverdear um pouquinho. Nós temos que ter o bom senso de fazer o balanço disso tudo sem adotar nada radical. É muito importante eu frisar aqui que nós estamos com toda a liberdade intelectual, a Secretaria não impõe nada. Não tem nada pré-definido, nós não temos viés.
Quais são os eixos estruturantes que guiam o projeto?
O projeto tem cinco eixos estruturantes, que são muito importantes. O primeiro está associado ao próprio objetivo, meio ambiente e social, que é chegar à pegada de carbono zero e, se não chegar, faz-se a captura de carbono, que é uma tecnologia que já está começando e vai estar, evidentemente, em escala muito mais comercial lá na frente. Mas o social também: como a sociedade pode se beneficiar das atitudes que serão tomadas, não só por conter a mudança do clima, mas [também relativas ao] funcionamento da hidrovia, usos múltiplos de água. Por exemplo, tem que privilegiar a captação para saneamento antes da geração de energia elétrica, porque para essa nós temos outras alternativas. O segundo é tecnológico e aí vem a questão do impulso em pesquisa, desenvolvimento e inovação. É analisar as melhores opções, inclusive aquelas que são disruptivas em relação ao que a gente imagina que vá acontecer, por exemplo, na área de hidrogênio. O terceiro eixo, que é muito importante, é a infraestrutura. Considera-se a infraestrutura existente, que será usada da melhor forma, não a deixar ociosa e, a partir disso, da forma mais eficiente possível, propor alterações. O outro eixo é de mercado, a partir [de onde] os agentes vão visualizar novos modelos de negócio para viabilizar investimento e o desenvolvimento da própria cadeia produtiva. Finalmente, o último é o regulatório, porque de nada adianta os outros quatro estarem bem orquestrados, se a legislação não permite que você faça. Então a gente tem olhado da forma mais intensa possível a questão regulatória.
Que questões ganham destaque no estudo?
[Há] os grandes temas. A eletricidade, [olhando-se] as fontes renováveis, a ideia de garantir o suprimento confiável para o Estado de São Paulo, a questão dos biocombustíveis que vai ganhando ênfase, o gás natural [de cujo potencial] não se vai abrir mão. Não podemos deixar de falar que o consumo de energia mais eficiente e mais verde que tem é não consumir, a eficiência energética. Não adianta só aumentar a oferta, primeiro vamos consumir bem. Posso trocar chuveiro elétrico por aquecimento solar nas residências. Por que não criar políticas públicas que viabilizem isso? E também dentro dos eixos temáticos, há a questão do balanço de emissões. [Há ainda] os vetores de transformação. A gente está considerando no trabalho o que chamamos de setor energético, porque entra transporte, energia elétrica e térmicos, quando queima o gás para produzir calor, por exemplo, e usa na indústria; não virou energia elétrica em momento nenhum. Então a gente chama de setor de energia 4Ds: descarbonização; digitalização, envolvendo Internet das Coisas, big data, inteligência artificial; e descentralização – em vez de grandes empreendimentos, [para os quais] no Estado não tem mais potencial, fazer geração distribuída. Tenho ex-alunos que têm empresas que fazem o que se chama de condomínio solar: compra um terreno razoável nas proximidades de uma cidade no interior de São Paulo, coloca lá até 5MW, que é o que a legislação prescreve, e vende cotas na região. Então, o cara na padaria, que comprou uma cota, vai ter desconto na conta de luz sem precisar ter o painel sobre o seu próprio telhado. Isso está proliferando em termos de Brasil. E há o “prossumidor” que, com os incentivos adequados, vai ter sua própria geração e colocar até armazenamento. Se na regulação fizer tarifa dinâmica, ele vai ver a cada momento quanto custa a energia, que terá preços variáveis ao longo do dia, e pode armazenar a do sol do meio-dia às 14 horas e usar no período da noite. O último D é diversificação, nossa matriz não vai ter só solar, eólica, hidrogênio, biometano de gás natural ou hidroelétrica. Ela tem que ser diversificada.
Que estimativa de redução das emissões em São Paulo já é possível fazer?
O que está por trás do objetivo de reduzir a pegada de carbono é aquela meta de que se consiga, no final do século XXI, ter a temperatura média do planeta, no limite, 1,5 °C, acima da temperatura média da época pré-industrial. Evidentemente, esses cálculos são muito complexos e são revisitados a cada ano. No caso do Estado de São Paulo, a gente visualizou que consegue, em relação ao que eu chamo da posição laissez-faire, se não fizesse nada, [teríamos a possibilidade] de reduzir 70%. Mas nós não terminamos, estamos na fase de simulação, então, evidentemente a gente tem possibilidade de ter reduções até mais importantes, inclusive gerando créditos de carbono, o que vai permitir que os agentes no Estado de São Paulo possam atuar também nesse mercado e viabilizar seus investimentos. Eu estou sendo mais verde e vendo o crédito de carbono para o cara na China que tem que fazer geração a carvão, porque também não dá para jogar o carvão fora, já que não tem meios energéticos de atender toda a demanda só com combustível hidroelétrico, por exemplo.
Qual a sua opinião sobre o papel do hidrogênio verde nessa transição energética?
No plano, nós estamos preferindo chamar de hidrogênio de baixo carbono, porque hidrogênio, na verdade, é uma aquarela, inclusive proveniente do gás. Nós não queremos cinza, mas azul, outras cores são aceitáveis. Se hoje ainda tem uso incipiente e produção pequena em relação às necessidades, tende a evoluir bastante. Em 2050, 30 anos à frente, vai ser competitivo e ter um papel importante na nossa matriz. No Estado de São Paulo, nós não temos potencial de vento para competir com o Nordeste ou mesmo com o Sul em terra, mas o offshore, como está aqui próximo, pode ser competitivo, porque se produz a 50km da costa. E nós temos uma vantagem que nossa costa é relativamente plana, não tem aquele inconveniente visual que atrapalha a praia. E você pode fazer com estrutura fixa, chegar a profundidade de 50m. No litoral tem sol abundante também, então pode fazer o projeto híbrido e, a partir dali, produzir hidrogênio, amônia, e sempre com valor agregado para não virar exportador de sol e vento. Tem que desenvolver economia, exportar o produto mais finalizado, industrializado, não simplesmente botar hidrogênio no tanque e mandar embora. Gerar emprego aqui, não lá fora, inclusive para os nossos engenheiros. Vai abrir muito as possibilidades e o mercado.
O projeto que busca sustentabilidade deve então gerar também oportunidades para os engenheiros?
Sim, o plano como um todo, desde redes elétricas, redes inteligentes, resposta à demanda. Em São Paulo você tem as hidrelétricas que já estão lá, mas elas têm área de reservatório importante, em que você pode fazer projetos híbridos, hidrossolares com painéis flutuantes na superfície do reservatório. A área não é relevante comparada à do reservatório e você pode ter no centro de carga, nos pontos relevantes. Porque lá no passado foi possível fazer a hidrelétrica, hoje em dia não seria. Uma Porto Primavera você não faria nunca; foi feita na época do decreto-lei. Mandava fazer e acabou: “vai encher o reservatório tal dia, não esteja lá”. Isso ficou no passado, o mundo era outro. Agora a gente, evidentemente, vai caminhar na direção, por exemplo, de aproveitar as hidrelétricas que já existem, colocando energia solar junto delas.
Qual a perspectiva para os investimentos a serem feitos a partir das recomendações do PE2050?
Eu reputo que o Estado que tem que ser o regulador. Você não vai pedir ao agente econômico interessado se autorregular. É você sair de férias, deixar o lobo tomando conta do galinheiro e ainda deixar a chave em confiança. Ele tem que ser fiscalizador, ser formulador de políticas e catalisador do desenvolvimento. Eu dou exemplo aqui do Investe São Paulo, que já tem cerca de R$ 18 bilhões articulados, que não são do Estado, vêm do setor privado, mas o Estado está apontando o caminho. O setor empresarial vai responder aos estímulos. Por exemplo, você vê os incentivos fiscais que levaram o setor eólico a se desenvolver [rapidamente] na região Nordeste. O grosso do investimento tem que ser privado, é dentro desse contexto que a indústria se insere, respondendo aos objetivos do próprio plano sempre. Não vai entrar uma indústria altamente poluente. Não tem espaço para isso.
E mesmo no cenário de descarbonização, as reservas de petróleo e gás seguirão relevantes?
No caso do Estado de São Paulo, muito mais do que o petróleo, existe o gás na Bacia de Santos, que a gente pode usar para produzir hidrogênio, na indústria, para substituir chuveiro elétrico. Eu vou deixar o gás todo lá? Isso não é viável. Precisamos reduzir a pegada de carbono, o que não significa abolir o gás. Por exemplo, no setor de transporte, [do qual vêm] mais de 30% dos gases de efeito estufa, não é viável, no curto e médio prazo, você imaginar que a frota pesada pegue aquilo que é diesel hoje e tudo fique esverdeado, [usando] hidrogênio, por exemplo. No futuro pode até ser. Mas se você trocar diesel por gás já está dando um salto grande na direção adequada, que é descarbonizar; o gás é muito menos poluente que o diesel. E o gás é considerado mundialmente o combustível da transição. Então o gás da Bacia de Santos ainda vai ter uso por um bom tempo, nas próximas duas ou três décadas.
Assista ao vídeo da entrevista