Jéssica Silva
No início deste ano a empresa de motorista por aplicativo 99 decidiu, unilateralmente, iniciar o serviço de mototáxi na capital paulista. Este foi o início de um imbróglio judicial e debate que se arrasta ao fechamento desta edição do Jornal do Engenheiro e aponta tanto para os riscos da medida quanto para a premência de se reverter a prevalência do transporte individual sobre o coletivo, o qual deve ser garantido à população com melhor qualidade.
Com a atividade suspensa até então pelo Decreto Municipal nº 62.144/2023, a ação da 99 se apoiou na Lei 13.640/2018, que fala sobre o transporte remunerado privado individual de passageiros, gerando um conflito com a Prefeitura Municipal de São Paulo. No final de fevereiro, as empresas obtiveram parecer favorável da Justiça. Após mandado de segurança movido pela 99, a 8ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu pela inconstitucionalidade do decreto de 2023, sob a justificativa de que cabe ao município regulamentar, não proibir o serviço.
A movimentação acendeu um alerta sobre os perigos da atividade numa metrópole como São Paulo. Em nota conjunta, o SEESP, o Instituto de Engenharia, a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e a União Internacional de Transporte Público (UITP) destacaram os principais impactos nas áreas de segurança pública, mobilidade urbana, saúde e eficiência do transporte coletivo. “A introdução do serviço de mototáxi tende a aumentar os acidentes, resultando em mais vítimas e sobrecarga no sistema de saúde pública”, enfatizam as entidades.
Em 2024, o Estado de São Paulo registrou 6.099 óbitos em acidentes de trânsito, sendo os moticiclistas mais de 40% das vítimas fatais (2.628). Só na Capital, estes somaram 485, mais de uma morte por dia, de acordo com o Sistema de Informações Gerenciais de Sinistros de Trânsito (Infosiga) do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-SP). Na visão das entidades, a implementação do serviço representa um grande retrocesso ao sistema de transportes do município, afetando gravemente, além da segurança, a gestão de recursos públicos.
Leia na íntegra a nota pública sobre os riscos do serviço de mototáxi em São Paulo
“Ao assinar esse manifesto, o SEESP cumpre seu papel de defensor da segurança, da mobilidade urbana eficiente e da saúde pública”, atesta o coordenador do Conselho Assessor de Transporte e Mobilidade Urbana do sindicato, Jurandir Fernandes. O engenheiro ressalta ainda que é fundamental que os governos priorizem o transporte coletivo – ponto amplamente defendido pelas entidades na nota. “Para realizar 28 milhões de viagens por dia na região, a solução não é motocicleta. Tampouco se deve pensar no uso intensivo do automóvel, porque ele consome muito espaço viário, gasta muita energia, polui e gera acidente. A solução é investimento em transporte público e na melhoria da infraestrutura para uma mobilidade ativa”, concorda o superintendente da ANTP, Luiz Carlos Mantovani Néspoli.
Jurandir Fernandes (à esquerda), Luiz Carlos Mantovani Néspoli e Francisco Christovam.
Fotos: Beatriz Arruda e Divulgação ANTP (ao centro)Em todo o País, o serviço de mototáxi é prestado pelas empresas de app em mais de 3.400 municípios, conforme levantamento apresentado pelo diretor executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, em artigo de sua autoria.
“Na maioria dessas cidades, esse transporte é feito sem nenhuma normatização e com total desrespeito à Resolução Contran [Conselho Nacional de Trânsito] nº 940, de 28 de março de 2022, que disciplina o uso obrigatório de capacete, para o condutor e para o passageiro, em motocicletas, motonetas, ciclomotores, bem como em triciclos e quadriciclos motorizados”, frisa Christovam.
Segundo a Secretaria Executiva de Transporte e Mobilidade Urbana do Município de São Paulo (Setram), o transporte individual remunerado de passageiros sem autorização é proibido na Capital pelas leis 15.676/2012 e 16.344/2016. A despeito da sentença no TJ-SP, o serviço de mototáxi seguia suspenso até o fechamento desta edição, já que decisão em segunda instância da 7ª Câmara de Direito Público do mesmo tribunal considera válido o decreto de 2023. Por meio do Departamento de Transportes Públicos (DTP), conforme a Secretaria, “equipes de fiscalização atuam em diferentes períodos do dia, garantindo o cumprimento das normas legais”.
“A Prefeitura está com uma campanha que alerta sobre os riscos, reforçando sua política de preservação da vida e segurança no trânsito. A proibição dessa modalidade de transporte por decreto municipal de 2023 visa exclusivamente o cuidado com a saúde e a vida da população”, ratifica a Pasta.
App x ônibus
A Pesquisa Origem e Destino 2023 do Metrô de São Paulo constatou que cada vez mais os passageiros da região metropolitana têm trocado o transporte coletivo pelo individual de aplicativo, principalmente em pequenas distâncias para integração a outros modais. O aumento no transporte por táxi ou app no período avaliado pela pesquisa, de 2017 a 2023, foi de 137%.
“Vou geralmente duas vezes na semana para o trabalho presencial, então priorizo o carro por app. Não é o mais rápido, mas é o mais cômodo. Não uso mais o ônibus”, confirma o gerente de produto de dados Felipe César. O trajeto, que atualmente faz pelo transporte individual, é de aproximadamente quatro quilômetros até a estação de trem Cecap, da Linha 13-Jade.
Para sair do centro de Diadema até o metrô Jabaquara, na zona sul da Capital, Juliana Silva, auxiliar administrativa, também opta por transporte individual de aplicativo. “Não é todo dia, mas às vezes me dou esse mimo”, conta, destacando que na opção tem mais conforto. Quando utiliza o ônibus, ela tem que andar cerca de um quilômetro até o terminal para pegar o modal que vai até o metrô.
Na visão do coordenador do Conselho Assessor de Mobilidade do SEESP, falta investimento e celeridade dos governos para um transporte público coletivo de qualidade. “Temos o conhecimento e a expertise para desenvolver projetos eficientes e adequados às necessidades de cada cidade. É inaceitável a apatia e a morosidade do setor público em relação à falta de espaço próprio para os ônibus na cidade de São Paulo”, avalia Fernandes. E pontua: “Os congestionamentos não afetam apenas o centro da Capital, mas também as periferias e toda a região metropolitana, onde o perigoso sistema de mototáxi tem crescido como uma alternativa desesperada à falta de transporte público eficiente.”
Para Néspoli, é necessário expandir corredores de ônibus. “Isso vai elevar a velocidade média e, portanto, reduzir o tempo de viagem para o passageiro, como também melhorar as condições de regularidade nas linhas, reduzindo a possibilidade de ‘sanfonamento’, que é a chegada simultaneamente ao ponto de parada de dois ônibus da mesma linha, ficando um tempo enorme para a chegada do seguinte”, ensina.
Ele sugere a criação de “linhas troncos em corredores com melhor infraestrutura, com cobrança externa para agilizar o embarque e o desembarque, alimentadas nos extremos por linhas locais”. “Essas medidas irão permitir maior fluidez dos ônibus na via, menor tempo de viagem e maior regularidade na espera dos ônibus nos pontos. Portanto, maior conforto aos usuários”, explana o superintendente.
Felipe César (à esquerda), Juliana Silva e Gilberto Almeida dos Santos. Fotos: Acervos pessoaisPrecariedade
A regulamentação ou proibição do serviço de mototáxi na Capital entrou na pauta dos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo, com audiência pública realizada em 7 de fevereiro último. O tema ainda foi citado pelo presidente da Casa, Ricardo Teixeira, para abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as mortes de motociclistas no trânsito da cidade.
Na audiência, a representante da 99, Irina Cezar, alegou que a plataforma tem “dezenas de ferramentas de segurança”, incluindo alerta de velocidade com punição ao motociclista que não acatar o aviso. Já o representante da Uber, Pedro Medeiro Santos, mostrou a disponibilidade da empresa em discutir regulamentação para “retornar as atividades”, travadas por decisão judicial.
No entanto, o presidente do Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), Gilberto Almeida dos Santos, o “Gil”, critica a forma como as plataformas estão propondo o serviço, sem considerar critérios do Código Brasileiro de Trânsito e da Lei nº 12.009/2009 – que regulamenta o exercício das atividades dos mototaxistas e motoboys e dispõe sobre regras de segurança para o serviço remunerado. “Nem a Uber nem a 99 observam esses parâmetros, não se preocuparam com a segurança nem de quem vai ser transportado nem dos condutores”, afirma.
“Para dirigir ônibus, van escolar, é preciso horas de treino, exames toxicológicos periódicos, fiscalização maciça. Estamos falando de um modelo de negócio predatório ofertado por essas empresas que não é o ideal nem para carros, porque não há uma garantia de que aquele motorista é qualificado e está respaldado por direitos trabalhistas”, adverte Gil.
Em sua análise, há precarização do trabalho. “De início, anunciam um esquema de indicação atrativo para o motociclista ganhar mais. Depois, ele é mal pago, tem que se dedicar mais de 12 horas por dia para ter uma certa renda e, ainda assim, não consegue fazer manutenção na moto, porque não ganha o suficiente para isso; é o que já acontece com os carros”, frisa.
Em minuta entregue à Câmara, o SindimotoSP propõe que seja aberta a discussão sobre regulamentação do serviço, com a criação de grupo de trabalho com a participação de trabalhadores e sindicatos, observando a Lei 12.009, as resoluções 943 e 930 do Contran, que tratam do tema, e critérios como idade do motociclista, cilindradas da moto, equipamentos de segurança, seguro de vida, entre outros.
Foto no destaque: Paulo Pinto/Agência Brasil