Soraya Misleh
Dez anos depois da quinta edição, começam os preparativos para a realização da 6ª. Conferência Nacional das Cidades, marcada para ocorrer em novembro próximo, no Distrito Federal. Sob o tema “Construindo a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano: caminhos para cidades inclusivas, democráticas, sustentáveis e com justiça social”, trata-se de instrumento fundamental para fortalecer a participação cidadã de modo a se avançar nesse processo, mas os obstáculos a serem superados não são triviais.
Reunião do Conselho Nacional das Cidades. Foto: JD VasconcelosÉ o que reconhece o Ministério das Cidades. Por meio de sua Assessoria Especial de Comunicação Social, o órgão elenca entre os principais desafios nas conferências “garantir a ampla participação da sociedade civil e o engajamento de gestores municipais e estaduais, em um país com mais de 5 mil municípios, grande diversidade cultural e econômica, superando as desigualdades regionais no acesso à informação”. Ainda, como complementa, assegurar que “as propostas discutidas sejam efetivamente implementadas”, nos âmbitos municipal, estadual e nacional.
Seus resultados, como espera o Ministério, devem ser incorporados às políticas públicas e, sobretudo, compor a minuta de projeto de lei relativa à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, em debate no Conselho Nacional das Cidades.
Convocada inicialmente para ocorrer no ano passado, por meio da Portaria do Ministério das Cidades no. 175, de 28 de fevereiro de 2024, a sexta edição foi adiada em função da tragédia com as inundações no Rio Grande do Sul, uma vez que o estado e os municípios gaúchos afetados não teriam condições de participar ativamente do processo.
Retomada em 2025, encontra-se agora na fase preparatória das conferências municipais, a se realizarem até 30 de junho. Nestas, serão eleitos os delegados para as conferências estadual e distrital, a acontecerem entre 1º. de julho e 15 de setembro, quando serão escolhidos os representantes para a Conferência Nacional das Cidades.
Etapa municipal
Caos na mobilidade urbana em São Paulo. Foto: Paulo Pinto/Agência BrasilNa capital de São Paulo estão ocorrendo encontros regionais desde o início de fevereiro como preparação para a etapa municipal, marcada para acontecer em 26 e 27 de abril próximo, no Memorial da América Latina. Conforme informa a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo (SMUL), por meio de sua Assessoria de Imprensa, serão 15 encontros regionais ao todo na Capital, abrangendo seus 96 distritos.
“São espaços de diálogo onde a população pode discutir e propor soluções para temas estratégicos como mobilidade, meio ambiente e mudanças climáticas, habitação e gestão democrática. O objetivo é ampliar os debates e consolidar propostas ao pleno da 8ª Conferência da Cidade”, explana.
Discutir soluções inovadoras que enfrentem os problemas locais e construir propostas concretas para as instâncias estadual e nacional estão no horizonte, como afirma ainda a SMUL.
João Moreirão, membro do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) e do Conselho Participativo da Casa Verde/Limão/Cachoeirinha, no entanto, acredita que o poder público na Capital tem falhado na gestão democrática do processo. Além da baixa participação popular, menciona que propostas feitas por representantes da sociedade civil nem sempre são levadas em conta. “Num desses encontros, na zona leste, unindo três subprefeituras, havia 53 pessoas, sendo 28 representantes da Prefeitura e assessores de vereadores”, lamenta.
Ao propugnar a correção dessa rota para a efetividade do processo, ele defende a importância da realização das conferências com o objetivo de apresentar diretrizes gerais às políticas de desenvolvimento urbano. Entre os graves problemas a se fazer frente, na Capital, Moreirão observa que enquanto tem havido redução no crescimento demográfico e explosão da especulação imobiliária, é notável o aumento no número de pessoas em situação de rua – de 60 mil para 80 mil. Nestor Tupinambá, diretor do SEESP e seu representante no processo da conferência, salienta ainda que São Paulo sofre com poucas áreas verdes e muita impermeabilização, o que agrava os impactos resultantes do aquecimento global.
Oitenta mil pessoas encontram-se em situação de rua na Capital. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil“É fundamental resolver a questão da moradia e garantir preservação ambiental. É preciso combater as desigualdades, reduzir os impactos das mudanças climáticas e ter uma cidade socialmente justa”, assevera Moreirão.
A necessidade de ter em mãos o diagnóstico dos problemas, de modo a apresentar soluções, é ponto focal para ele. “Isso não está sendo devidamente discutido, e é o que deve ser feito”, vaticina.
Gestão democrática
Assegurar gestão democrática vai ao encontro do princípio que rege as Conferências das Cidades.
Quem pontua é o professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Anderson Kazuo Nakano, segundo o qual sua realização é parte de um modelo de democratização dos debates sobre políticas públicas no País instituído a partir da Constituição Federal de 1988.
Essas conferências ganham ainda maior relevância, conforme ele, dado o fato de mais de 85% da população brasileira se encontrar em áreas urbanas, onde “há um acúmulo de déficits”. “Temos dívidas sociais, ambientais, espaciais, profundas desigualdades e segregações socioespaciais, principalmente nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas, que precisam ser discutidas, analisadas, para que se forme um quadro importante de referência”, complementa.
Da esquerda para a direita, José André de Araújo, Nestor Tupinambá e Anderson Kazuo Nakano. Fotos: Acervos pessoais / Soraya Misleh (diretor do SEESP)Esse é o caminho, ainda de acordo com Nakano, para que “se possa formular e implementar políticas urbanas, habitacionais e socioambientais adequadas”. Assim, resume: “Para isso servem as conferências. Então precisa fazer um processo de verdade de discussão, de participação social democrática, que englobe os diferentes segmentos da sociedade, grupos de interesse e perspectivas.” Ao encontro disso, Tupinambá pleiteia a retomada do orçamento participativo para a efetiva gestão democrática da cidade.
Com esse horizonte, José André de Araújo, membro do CMPU e do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), defende uma participação e planejamento populares perenes. Na mesma linha, seu colega no CMPU, Benedito Roberto Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia da Grande São Paulo e Interior, propugna a transformação do Conselho das Cidades em um espaço deliberativo, “com garantia em lei, para que não seja extinto numa canetada, como aconteceu nos últimos dois governos”.
A avalizar sua importância, ele, que participou de conferências anteriores, observa que estas tiveram como resultado prático a definição de diretrizes para diversos marcos legais, associados às políticas de habitação, mobilidade e saneamento. Entre as conquistas, enumera a aprovação da lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a articulação popular para garantir a participação de associações comunitárias em programas de habitação social como o Programa Crédito Solidário e o Minha Casa Minha Vida – Entidades, bem como a articulação e o fortalecimento das entidades para lutarem pela garantia de assistência técnica pública e gratuita para projeto e construção à população de baixa renda (Lei Federal no. 11.888/2008).
Para a sexta edição, sua expectativa será aprovar uma agenda para as cidades brasileiras que “leve em conta a inclusão das grandes parcelas de periferias e fortaleça os movimentos sociais como legítimos interlocutores da pauta urbana”. Além disso, defende uma participação mais igualitária nas conferências, levando em conta gênero, raça e orientação sexual, rumo a cidades mais inclusivas e solidárias.
Velhos e novos desafios
Enchentes no Jardim Pantanal, problema de décadas que se aprofunda com os eventos climáticos extremos. Foto: Letycia Bond/Agência BrasilA demanda por ampla e perene participação popular é central em face dos enormes desafios a serem enfrentados na construção das políticas públicas. “No caso das cidades, além de problemas herdados de décadas de urbanização desigual, com muitas áreas em estado de profunda precariedade e grandes contingentes populacionais em situação de vulnerabilidade e pobreza, temos hoje as questões voltadas para a emergência climática, com profundos impactos tanto do ponto de vista econômico quanto social e funcional”, detalha Nakano.
Os eventos extremos, cada vez mais intensos e frequentes, em função do aquecimento global, demandam, segundo o professor da Unifesp, que “as políticas urbanas, habitacionais e ambientais sejam pensadas de maneira muito entrelaçada”. Para Tupinambá, nessa direção, as conferências devem garantir o alinhamento das políticas públicas com os objetivos da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), a se realizar em novembro próximo, na cidade de Belém (PA).
Ainda entre os “novos desafios”, Nakano elenca mudanças globais profundas nos processos sociopolíticos, revolução tecnológica digital e informacional com profundos impactos nas relações sociais, modos de vida, vínculos comunitários e comportamentos, mais superexploração do trabalho e decorrentes desalento e desagregação social.
Esses problemas se agravam com a sobreposição de velhos desafios ainda não superados e que se aprofundam. Exemplo é o processo de gentrificação em várias regiões, lembrado por Araújo, que têm levado à expulsão de famílias carentes de determinados locais, sem o devido processo legal e amparo habitacional. Não bastasse o alarmante déficit habitacional de mais de 6 milhões de domicílios no Brasil, isso resulta em aumento ainda maior de populações em áreas de riscos.
Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, uma das mais de 12 mil favelas e comunidades urbanas do País. Foto: Rovena Rosa/Agência BrasilSua perspectiva é que, com a conferência, discuta-se a fundo regularização fundiária, rumo à criação de um fundo nacional que possa garantir os recursos para tanto e cooperação técnica com os municípios. “Só na cidade de São Paulo temos cerca de 610 mil famílias que moram em núcleos informais urbanos. É uma demanda muito grande não só na Capital, mas também em todo o Estado e Brasil”, aponta. E continua: “Isso dificulta o acesso a saneamento básico, a água potável, a iluminação pública e domiciliar, inibe a chegada de várias políticas públicas e não permite a cidadania plena. A regularização fundiária é primordial para garantir os equipamentos públicos e permitir a proteção e recuperação ambiental.”
Outro desses desafios diz respeito à mobilidade urbana. Especialista no tema, como engenheiro do Metrô-SP por 47 anos, Tupinambá elenca entre as diretrizes fundamentais a serem incluídas como resultado da Conferência Nacional das Cidades uma reivindicação que não é nova, mas infelizmente continua atual: a prevalência do transporte público coletivo sobre o individual.
Além disso, ele está empenhado em apresentar propostas factíveis para os outros desafios prioritários às cidades, como habitação, saneamento, engenharia de manutenção, meio ambiente, resiliência e adaptação às mudanças climáticas. Estas estão elencadas no projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”. Iniciativa da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), com a adesão do SEESP, sua última edição, lançada em 2024, debruça-se justamente sobre o tema das cidades inteligentes. Ou seja, como explicitado na publicação, aquelas que funcionam de forma adequada, assegurando bem-estar à sua população.
Os engenheiros na história das conferências
A 1ª. Conferência Nacional das Cidades aconteceu em outubro de 2003. De lá para cá, outras cinco ocorreram, até serem suspensas em 2017 e agora finalmente retomadas. O SEESP participou desde o início, colocando a competência técnica dos engenheiros a serviço de melhorar a vida nas cidades. Laerte Mathias em sua última atividade sindical, na 5ª. Conferência Estadual das Cidades, em setembro de 2013. Foto: Acervo SEESPTeve, assim, papel decisivo na luta por assistência técnica à habitação social, na aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana e outras conquistas. Entre seus representantes, os diretores Laerte Conceição Mathias de Oliveira e Alberto Pereira Luz.
Personalidade atuante para assegurar desenvolvimento, qualidade de vida e bem-estar à população, Laerte faleceu em 12 de outubro de 2013, aos 54 anos de idade, vítima de um acidente automobilístico. Membro do Conselho Nacional das Cidades desde 2004, representando a Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) no segmento dos trabalhadores, ele integrava o Comitê Técnico Nacional de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades e a Executiva Nacional no processo de organização da Conferência Nacional das Cidades.
Antes do acidente que ceifou sua vida precocemente, mostrava-se confiante no avanço das discussões para que o transporte público fosse considerado como direito social, mas, em suas palavras, “não qualquer transporte, e sim o de qualidade, com pontualidade e não poluente”. Defendia, ainda, um sistema de informação em tempo real para os usuários, assim como o controle social para que todos pudessem acompanhar as planilhas e planejamento de projetos em mobilidade urbana.
Outra frente de luta em que estava engajado era o Fórum Suprapartidário por uma São Paulo Saudável e Sustentável, criado em 2012 para tratar de assuntos pertinentes à renovação do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade paulista – o qual infelizmente não avançou como deveria. Fazer jus ao seu legado e assegurar gestão democrática ao desenvolvimento urbano sustentável e justo está na ordem do dia nesta sexta edição.
Imagem no destaque: Enchente na Capital em janeiro deste ano. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil