Faceta da onda de privatizações que dominou o País nos anos 90, a piora na qualidade do atendimento ao consumidor ainda não foi solucionada. Prova disso é que serviços essenciais como água, luz e telefone lideraram o ranking de reclamações no Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) em 2007, conforme consta do site desse órgão. O tema volta à tona e ganha corpo no setor elétrico com a discussão da alteração da Resolução 456/2000, a qual estabelece as condições gerais de fornecimento de energia e rege as relações entre os consumidores e as distribuidoras.
A proposta da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) para atualização do texto é considerada pelos órgãos de defesa do consumidor um retrocesso. Tais organismos, assim como o SEESP, expuseram suas preocupações em audiências públicas realizadas nos meses de abril e maio em cinco capitais do Brasil, incluindo São Paulo. A expectativa agora é de que a proposta apresentada pela Aneel incorpore suas contribuições e seja, portanto, repensada.
O setor elétrico
Para o sindicato, como conta seu diretor, Carlos Augusto Ramos Kirchner, a despeito de a norma sugerida apresentar como ponto positivo a “exigência de estrutura mínima das concessionárias de postos fixos para atendimento pessoal dos usuários do serviço público”, os reveses na questão do direito do consumidor são muitos. Como ponto principal, causou-lhe estranheza e grande apreensão o fato de não ter sido sequer mencionado na proposta de aprimoramento da resolução o CDC (Código de Defesa do Consumidor). A entidade aponta em suas sugestões à agência “a necessidade de enfatizar sua aplicabilidade. A condição de desigualdade entre concessionária e consumidor é gritante, talvez mais nesse do que em outros serviços públicos. O de energia elétrica envolve conhecimentos técnicos que a grande maioria da população desconhece”. Nesse contexto, o SEESP considera de suma importância que a Aneel reconheça que o usuário é a parte mais frágil nas relações de consumo e deve estar amparado por lei específica. “É um grande equívoco concluir que o CDC atrapalha, pelo contrário, ele é um grande aliado do aprimoramento dos serviços públicos.”
Como especifica a técnica do Procon-SP, Fátima Lemos, no caso da energia elétrica, tem como particularidade ser monopólio natural. Ela complementa: “São serviços públicos essenciais, ligados à dignidade humana, e têm que ser prestados de forma contínua, adequada e universal, independentemente de renda e a todas as regiões do País. A regulação deve convergir com o CDC.” Flávia Lefèvre Guimarães, advogada, consultora da Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor) e membro do Conselho Consultivo da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) representando o consumidor, destaca que o código é expresso quanto a contemplá-los. Assim, acrescenta, “toda lei ou normas das agências têm que estar de acordo com seus preceitos”.
Nesse sentido, sobre a Resolução 456, ela observa que uma das suas distorções ao tratar de procedimentos no caso de possíveis fraudes foi mantida na nova proposta da Aneel. “Mesmo que a pessoa não esteja presente, a concessionária fica autorizada a retirar o relógio de medição e não é obrigada a avisar com antecedência. Achamos que na minuta agora isso estaria alterado, o que é pleito antigo nosso, mas não aconteceu.” Na concepção de Lefèvre, trata-se de garantir o direito de defesa ao usuário para que só então, depois do contraditório, tenha o serviço suspenso. Para Kirchner, a retirada do medidor e inclusive cobrança de conta pelo consumo mínimo ou médio estimado depois de 30 dias é um absurdo. Na sua ótica, “essa situação estimula o desperdício”, ao propiciar a cobrança sem a aferição propriamente dita. Além do que, como constata o diretor do SEESP, é obrigação da distribuidora colocar o medidor. “A ela cabe ação ativa de reparar o problema.” Na mesma linha, Lefèvre observa que é seu dever fiscalizar eventuais irregularidades, quando muitas vezes peca nisso e posteriormente exige pagamento de retroativo em relação ao período em que o consumo diminuiu por ter sido feito um “gato”. A nova proposta deveria limitar a cobrança, conforme a consultora da Proteste, a no máximo 24 meses e, mesmo assim, se a prestadora de serviços puder comprovar a fraude. Como está, concorda Kirchner, a fórmula premia a ineficiência de distribuidoras na fiscalização e repassa esse custo aos cidadãos. Ao encontro dessa idéia, o procurador da República em São Paulo, que responde pela defesa do consumidor, Alexandre Gravonski afirma que tais empresas acabam por “não se preocupar em inspecionar irregularidades a tempo de impedir sua continuidade, porque vão cobrar retroativamente por três anos”. Diante disso, Gravonski conclui que a Aneel, sob a alegação de diminuir fraudes e a inadimplência e aumentar a receita, está estimulando o corte e nivelando por baixo os consumidores.
Outros equívocos
Segundo o Procon-SP, “as concessionárias de energia são responsáveis pela instalação e manutenção do medidor e, portanto, devem assumir esse ônus com base na teoria dos riscos”. Para Lemos, tais enganos invertem a lógica do CDC. “A boa-fé tem que balizar a relação entre as partes e a finalidade social da energia não está colocada na proposta de resolução.”
No texto em discussão, há ainda equívocos, diz Gravonski, como a ausência de definição de mecanismos que obriguem a concessionária a prestar informações por escrito ao consumidor. Por exemplo, caso seja acusado de fraude ou seja efetuada cobrança indevida, “falta informação sobre o direito de o consumidor pedir perícia”. Questão relevante ainda é a tentativa de ampliar a multa por atraso de 2% para 5%, quando, conforme Lemos, há entendimento legal de que o patamar atual é suficiente. Essa alteração é incluída por Marcos Pó, assessor técnico do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), na lista de grandes problemas constantes da nova proposta. Ele enumera entre os demais a exigência de pagamento de taxa de religação mesmo que o consumidor apresente a conta paga no momento do corte e que se configure falha da distribuidora. Na avaliação do SEESP, a cobrança proposta sem a contraprestação do serviço público nesse caso e no de retirada de medidores é ilegal.
Não obstante o procedimento de suspensão do fornecimento por falta de pagamento seja legal, para Lemos deveria ser a última medida e não a única, como ocorre atualmente. “Até que ponto o corte não traz enorme dano ao sistema? Porque não negociar e evitar isso e constrangimentos?”, questiona. Hoje, como acrescenta Lefèvre, a postura da concessionária é unilateral. “A pessoa não consegue se enquadrar nos planos de parcelamento apresentados e acaba sendo jogada numa situação de irregularidade. Isso tinha que estar contemplado na norma, tem muito conflito e sério, merecia atenção da agência.” Sem contar que, para o SEESP, a suspensão do fornecimento sem prévio aviso em separado e de forma inadequada, como acontece hoje, não é correta. O sindicato condena ainda que a agência aponte que, se o usuário não receber sua fatura de energia, caberá a ele o ônus de ir atrás da distribuidora para obtê-la. “Caso não o faça, estará sujeito a multa, o que é absurdo.”
Nessas situações, como lamenta Pó, geralmente os maiores penalizados são os mais pobres. Entre os abusos cometidos – e não considerados na reforma da Resolução 456 –, a ação na periferia quando do corte ou fiscalização de possível irregularidade. “A empresa age de maneira intimidatória, chega a quebrar a entrada do registro para averiguar se há fraude e por vezes já vai com a polícia. E às vezes o consumidor não tem problema de pagamento e a religação demora.” Essas arbitrariedades, confirma o assessor do Idec, se agravaram após as privatizações e, conseqüentemente, pipocam reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor. Aumentos extraordinários – que no setor de energia elétrica superaram os 380% entre 1994 e 1998, como aponta Lefèvre – e cobranças de taxas que o consumidor desconhece, o modo call center adotado pela iniciativa privada nos diversos segmentos, em detrimento do atendimento, a ineficiência na fiscalização estão na lista que torna os cidadãos reféns de prestadoras de serviços públicos.
Telefonia no topo
Em 2007 a campeã das queixas no Procon-SP, como no ano anterior e em diversos outros, foi a Telefônica. Tal empresa teve um incremento de 95% em relação a 2006 no número de demandas de consumidores não atendidas nem mesmo com a primeira intervenção desse órgão e que necessitaram de abertura de processo administrativo para serem resolvidas. Entre as reclamações mais comuns, Pó relaciona a má qualidade na prestação de serviços e os aumentos exorbitantes no valor da assinatura de telefonia fixa – que no momento da privatização era de cerca de R$ 13,00 e hoje mais que triplicou. Conseqüentemente, como informa Lemos, muitos usuários novos foram postos à margem da anunciada universalização. “Embora depois de dez anos a expansão dos serviços tenha sido equacionada (o que era no início o argumento para a elevação dos preços), as empresas não deram o salto de qualidade que deveriam ter dado. As informações não são claras, contratos não são enviados e há cobranças de múltiplas ofertas de forma incisiva, muitas vezes não cumpridas.”
Soraya Misleh