Jornal da USP*
O embate entre modelos de gestão públicos e privados no Brasil vem crescendo nos últimos anos. Pauta antiga, a privatização de serviços e entes públicos vem tomando ares novos. Em 1990, vimos a criação do Plano Nacional de Desestatização, o PND, que repensa a posição do Estado em questões econômicas, tornando a magnitude e o escopo da privatização significativamente maiores.
As medidas avançaram ao longo dos anos. Em 94, o setor siderúrgico passou para a administração privada. Em 97, foi a vez da mineradora Vale do Rio Doce, atual Vale S.A., que anos depois se envolveria em dois dos maiores desastres ambientais do País. Chegando na virada do milênio, nos anos 2000, a lista já era extensa: as 12 principais holdings, representando a transferência do setor telefônico para a iniciativa privada, Centrais Elétricas Geradoras do Sul S/A (Gerasul), a malha ferroviária paulista, companhias elétricas estaduais de Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Pará, Rio de Janeiro, entre outras.
Na década de 90, o Brasil estava alinhado com a tendência mundial, que também era privatizante. No entanto, estudos recentes indicam um retorno generalizado ao modelo de gestão pública. Atualmente, cerca de 90% dos sistemas de água no mundo são de gestão pública. O levantamento é do banco de dados Public Futures, coordenado pelo Instituto Transnacional (TNI), na Holanda, e pela Universidade de Glasgow, na Escócia. O estudo também apontou que, entre 2000 e 2019, houve mais de 1.400 casos de reestatização de serviços públicos, com a maior parte deles na Europa.
Para o professor Guilherme Grandi, da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), a experiência europeia com privatizações de serviços essenciais foi negativa. Ele exemplifica a situação com o caso da cidade de Paris, capital da França. “A reestatização dos serviços de água e esgoto de Paris se deu entre 2007 e 2008. Não foi renovada a concessão da empresa que geria o serviço. A privatização vinha desde os anos 80 e se mostrou ineficaz no que diz respeito à ampliação e melhoria do serviço. Se descobriu também que a empresa estava muito mais preocupada em distribuir dividendos do que investir na sua capacidade de tratamento de água e esgoto.”
O docente afirma que a reestatização de serviços é uma resposta da sociedade ao modo de operação privado. “O capital privado coloca a lucratividade do seu investimento sempre à frente do benefício e dos retornos sociais. Essa é a regra básica da acumulação capitalista: primeiro vem o lucro, depois a provisão adequada do serviço e a saúde da população. Os casos recentes de reestatização de serviços de saneamento, transporte e energia elétrica em países europeus consistem em respostas a essa dinâmica dos mercados. Isto, e o próprio nome já diz, são serviços essenciais. Portanto, o Estado tem que garantir a boa provisão deles, mesmo quando quem os fornece é a iniciativa privada”, argumenta.
Leva de privatizações
Além de Paris, citada pelo professor, outros 267 casos de reestatização de serviços de fornecimento de água foram registrados em 37 países diferentes, afetando mais de 100 milhões de pessoas ao redor do mundo. A agenda brasileira não acompanhou o restante do mundo. Nos últimos anos, uma nova leva de privatizações tomou corpo. As ações agora se concentram justamente no setor de serviços de saneamento básico. O caso mais recente é o da Sabesp, Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. Em sessões conturbadas, a Câmara Municipal de São Paulo debateu o projeto de privatização, que já havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado.
O professor Pedro Forquesato, também da FEA-USP, explica o projeto. “Os serviços considerados de utilidade pública podem ser objetos de diferentes modelos de privatização, não? O mais comum é por concessão, quando o poder concedente do Estado lança um edital de licitação e as empresas interessadas disputam, visando a atender às exigências que constam nesse edital. A lei que aprovou o projeto de privatização da Sabesp autoriza o Executivo estadual a negociar sua participação nas ações da empresa, abrindo mão do controle da estatal.” “A ideia do governo é que, por ser uma sociedade que tem uma ligação com o Estado, a Sabesp teria várias restrições nas operações que poderiam gerar, nessa visão, uma menor eficiência econômica. Uma empresa privada não precisaria atender a essas demandas burocráticas, e por isso seria mais eficiente “, continua.
Forquesato afirma que é difícil prever os resultados do processo. “Mesmo assumindo que vá existir um ganho de eficiência no serviço da companhia sendo privado, não há evidências que nos façam crer, a princípio, que esse ganho de eficiência se converteria em uma redução na tarifa paga pelo cidadão. Isso teria que ser observado pelos órgãos reguladores, afinal, a empresa pode converter esses lucros em remuneração interna, entre outros destinos para o excedente”, finaliza.
*Texto por Regis Ramos, sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira