O governo Michel Temer avança celeremente para o abismo social. Talvez tenha ficado impactado, em sua recente viagem à Índia, ao constatar que aquele espetacular país tem um bolsão monumental (dezenas, talvez centenas de milhões) de excluídos do mercado de trabalho.
Lembro-me que em outubro de 2014, quando visitei a Índia para fazer conferência em Nova Déli, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, acabava de lançar um "novo" slogan. Dizia que, assim como a China celebrizou-se pelo made in China, a Índia deveria consagrar-se pelo make in Índia. No país das castas e classes, riquezas e vilipêndios, a superexploração do trabalho poderia ser ainda mais intensa que a chinesa.
Temer não pôde ver com os próprios olhos, poucas semanas antes de sua viagem, a greve que foi considerada a maior do país, com mais de 180 milhões de participantes.
No Brasil, o ministro do Trabalho, anteriormente, sugeriu que deveríamos aumentar a jornada de trabalho para 12 horas diárias.
O desemprego, por aqui, não para de crescer - são quase 12 milhões de pessoas e outras tantas entre o subemprego e o desalento.
O eixo central das ações de Temer nas relações de trabalho é implantar a flexibilização completa dos direitos. O sentido essencial do PLC 30/2015 é avançar na terceirização total, por meio da eliminação da disjuntiva entre atividade-meio e atividade-fim. O governo age alegando que está, na verdade, regulamentando o trabalho terceirizado.
Todos sabem o real significado desse ato - a deterioração ainda maior das relações de trabalho, uma vez que os terceirizados receberão menos, trabalharão mais e terão ainda maior subtração de direitos.
Enquanto isso, as empresas contratadas que fornecem os terceirizados poderão continuar fugindo das penalidades por meio de burlas que frequentemente praticam e pelas quais raramente são condenadas.
Vou dar um exemplo emblemático que parece excitar o empresariado, global e tropical. Trata-se do "zero hour contract" (contrato de zero hora), modalidade perversa de trabalho que viceja no Reino Unido e em outros cantos, onde os contratos não têm determinação de horas.
Trabalhadores das mais diversas atividades ficam à disposição e, quando recebem uma solicitação, ganham estritamente pelo que fizeram. Nada recebem pelo tempo que ficam à espera da nova dádiva.
E os capitais informáticos, numa engenhosa forma de escravidão digital, cada vez mais se utilizam dessa pragmática de flexibilização total.
Assim, de um lado deve existir a disponibilidade perpétua para o labor, facilitada pela expansão do trabalho on-line. De outro, propaga-se a precariedade total, que destrói ainda mais os direitos vigentes.
É por isso que, neste mundo do trabalho digital e flexível, o dicionário empresarial não para de "inovar". "Pejotização" em todas as profissões - médicos, advogados, professores, bancários, eletricistas, cuidadoras. "Frila fixos" espalhados nas Redações dos jornais, com "metas" impostas que geram assédios, adoecimentos e depressões.
Isso sem falar nos pilotos da aviação global que já são contratados nos países em que a legislação está em processo de desmonte.
E "trabalho voluntário" em ritmo compulsório na Olimpíada, que enriquece ainda mais as corporações do entretenimento.
Em breve teremos um Brasil com riqueza exuberante no topo, parecido com a Bélgica, e uma miserabilidade social que segue os padrões da Índia. Seremos novamente a Belíndia.
* Ricardo Antune é professor titular de sociologia do trabalho na Unicamp. Escreveu, entre outros, o livro "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo). Texto escrito originalmente na Folha, 24/10/2016